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1968, o ano que nunca começou?

O mais rebelde dos anos começou como uma festa de jovens ricos. E não teve estofo para balançar a política ou a economia

Por Gustavo Ioschpe
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 30 abr 2008, 22h00

O ministro da Juventude da França foi a Nanterre inaugurar instalações esportivas da universidade. Daniel Cohn-Bendit interpelou o visitante, querendo saber por que o Ministério da Educação não fazia nada para acabar com o que Dany chamava de “problemas sexuais” – o banimento à presença de homens nos dormitórios das mulheres, e vice-versa. O ministro sugeriu que, se o aluno estava com problemas sexuais, ele poderia se aliviar pulando na magnífica piscina que acabara de ser inaugurada.

Cohn-Bendit, de família alemã, reagiu à provocação dizendo que isso era o que a Juventude Hitlerista costumava dizer. A universidade quis expulsá-lo em janeiro de 1968, os estudantes reagiram em protesto, e estava aceso assim o estopim do movimento que cresceria e se agitaria até desembocar nos protestos de Paris em maio daquele ano, na série de greves que deixaria a França parada e que se irradiaria para outros países, marcando o que parecia ser um momento absolutamente revolucionário, subversivo, um divisor de águas.

Parecia, mas não foi. E o caso que deu início aos distúrbios exemplifica bem a natureza dos eventos daquele ano e também as razões pelas quais, em última análise, a herança definitiva de 1968 foi a sua iconografia pop e alguns slogans memoráveis (“Sejamos realistas, exijamos o impossível”). O 1968 francês foi uma versão ampliada dos conflitos de gerações que acompanham as relações humanas desde sempre. Uma nova geração aflora e precisa solapar a autoridade das predecessoras. Em 1968, porém, esse conflito veio cercado de fatores conjunturais que alimentariam essa querela.

Em primeiro lugar, havia a demografia. Com a devastação da 2a Guerra Mundial e o clima de otimismo que se seguiu a ela, a geração concebida nos primeiros anos do pós-guerra foi excepcionalmente numerosa. Não era mais um mundo de adultos, em que os jovens precisavam esperar pacientemente o seu turno: parecia que o planeta poderia ser reinventado e dominado por seus donos precoces. Junto com a superioridade numérica, veio a riqueza. O boom econômico do pós-guerra gerou uma prosperidade jamais vista antes e que só seria superada, em alguns países, 30 anos depois. Isso desidratou a revolução de seu combustível fundamental: o desejo dos revolucionários de inverter a estrutura econômica de sua sociedade.

O vasto e crescente mercado de trabalho funcionava como uma apólice de seguro para os estudantes revoltosos – e para os operários que se juntaram a eles: a ameaça do desemprego praticamente não existia. O Partido Comunista Francês declarou que os eventos de 1968 eram uma festa, não uma revolução. Estava certo.

Finalmente, houve uma inédita expansão dos sistemas educacionais dos países europeus. A geração dos pais dos revoltosos costumava abandonar a escola depois de terminar o ensino primário e obter as competências básicas para sobreviver. A nova geração estava concluindo o ensino secundário em grandes números e começava a popularizar o acesso ao ensino universitário. Em poucos momentos da história o contraste entre gerações havia sido tão severo: filhos instruídos, criados em ambientes pacíficos de classe média convivendo com pais traumatizados pelos terrores da guerra e pouco intelectualizados. Na geração dos pais de Cohn-Bendit, a universidade era privilégio de uma minoria irrisória e não havia muito dinheiro pra investir em piscinas. Tudo tinha mudado. E por isso mesmo nada mudaria.

Conseqüências mirradas

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Os ventos de Paris sopraram no resto da Europa, causando impactos diferentes. Enquanto na França as greves acabaram em um mês, na Itália, que tinha graves problemas trabalhistas, os conflitos entre patrões e empregados duraram um ano. Na Alemanha, a rebelião juvenil trouxe à tona a incômoda convivência da geração anterior com o nazismo.

Mas o resultado final foi tímido. As estruturas de poder, político e econômico, permaneceram intocadas. Não mudaram nem nos países em que a adesão ao espírito de 1968 se deu em torno de questões mais concretas, como os EUA e o Brasil.

Para os americanos, 1968 veio no contexto de lutas importantes pelos direitos civis das minorias, especialmente a negra. E também de protestos contra a Guerra do Vietnã. Também foi o ano em que Martin Luther King e Bobby Kennedy foram assassinados.

No Brasil, 1968 marcou o recrudescimento do regime militar e a radicalização dos seus opositores, que migravam cada vez mais para a guerrilha. Foi a salva inicial dos anos de chumbo da ditadura militar que viriam. Mesmo assim, pouco restou do espírito de 1968 no país. A guerrilha foi derrotada e a ditadura conduziria o Brasil pelo milagre econômico dos anos 70, caindo de podre nos anos 80 por conta de sua própria inépcia.

O denominador comum da maior parte dos movimentos de 1968 foi o flerte com o marxismo, ainda que na sua linha “esquerda festiva”. E é sintomático que, no mesmo ano em que a juventude encontrava Marx, ali ao lado, na então Checoslováquia, tanques da União Soviética acabavam com a Primavera de Praga (uma tentativa de democratizar o país), deixando claro para a molecada da Europa Ocidental o modus operandi da ditadura comunista.

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Dez anos depois, a China abraçaria o capitalismo. Em 20, seria a vez da Europa Oriental e da União Soviética. O líder do movimento estudantil brasileiro é hoje um político cassado pelo envolvimento com o mensalão. A aristocrata Caroline de Bendern, que apareceu na foto icônica do movimento como a nova Marianne (símbolo da Revolução Francesa), foi deserdada pelo tio rico e hoje vive num casebre. Também processou o autor da foto ali em cima por não receber pelos direitos de imagem. E perdeu. Os jovens envelhecem e, com eles, sua rebeldia. Mesmo sem repetições, essa história já tem mais cara de farsa.

 

Barriga cheia

As finanças bombavam em 1968. E isso deixou os mais radicais sem força para se rebelar contra a estrutura econômica. Confira neste gráfico, que estima o PIB anual por habitante, no mundo, entre 1920 e 1970 (em dólares de hoje).

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Ano – 1920

PIB per capita – US$ 1 579

Ano – 1930

PIB per capita – US$ 1 873

Ano – 1940

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PIB per capita – US$ 2 240

Ano – 1950

PIB per capita – US$ 2 680

Ano – 1960

PIB per capita – US$ 3 750

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Ano – 1970

PIB per capita – US$ 5 420

Fonte J. Bradford DeLong, Departamento de Economia da Universidade de Berkeley (EUA).

 

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