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1969 – O ano das últimas gravações

Na iminente desintegração, os Beatles poucas vezes estiveram tão unidos.

Por Alexandre Carvalho
Atualizado em 12 jun 2020, 13h56 - Publicado em 1 nov 2019, 16h49

Um duelo eleitoral que só podia acontecer na Califórnia – de Hollywood e dos hippies. Concorrendo ao governo do Estado estava, pelos conservadores, o ex-ator (e futuro presidente) Ronald Reagan. Já defendendo as causas dos “ultraprogressistas” estava Timothy Leary, o profeta do LSD. Claro que Lennon simpatizava mais com o guru da droga. Tanto que o convidou a cantar no refrão de “Give Peace a Chance”, quando estava com Yoko, em Montreal. Na ocasião, John perguntou ao candidato se podia ajudar em alguma coisa, e Leary encomendou uma música para seus comícios. O slogan da campanha era “Come together, join the party” (venha junto, entre para a festa).

Lennon topou, pegou o violão na mesma hora, cantarolou uns versos incluindo o bordão e entregou uma fita demo para o amigo. Só que a ambição de transformar a Califórnia num grande paraíso dionisíaco teve um fim abrupto: a polícia jogou Leary na cadeia por porte de entorpecentes. Então John mudou a música. “Come Together” perdeu seu lema partidário e virou faixa de abertura do que seria o último álbum gravado pelos Beatles (embora tenha sido lançado antes de Let It Be, o que explicaremos no capítulo seguinte). Timothy Leary ouviu Abbey Road na cadeia e achou um desrespeito que Lennon tivesse usado (e modificado) a canção que era o tema de sua aventura na política. Inconformado, fez com que uma reclamação chegasse a John. “A resposta teve o típico charme e a sagacidade de Lennon”, contaria o ex-candidato. “Disse que ele próprio era um alfaiate, e eu era um cliente que pediu um terno e nunca mais voltou. Então ele o vendeu para outra pessoa.”

Ela nasceu como uma canção para os comícios de Timothy Leary, guru do LSD. (Images Press/Getty Images)

A grande marca do instrumental é a dobradinha baixo-bateria. John Lennon começa cantando rapidamente, de maneira indecifrável, “Shoot me” (que podia ser tanto “atire em mim” quanto “injete em mim”). Junto com a fala vêm palmas e uma batida original de Ringo, fazendo repique no chimbau para depois rolar sobre os tambores repetidamente. Uma virada em sincronia com a linha de baixo jazzística de Paul, à moda de New Orleans – muito sampleada por rappers americanos.

Uma interpretação frequente do que virou aquela canção é a tentativa de Lennon descrever cada um dos Beatles – embora referências a McCartney sejam confusas. Na letra, Harrison seria a figura sagrada de cabelo até os joelhos. Starr é o cara que “tem de ser bonito, porque é tão difícil de enxergá-lo” (lá atrás, na batera). O próprio Lennon tem “galochas de morsa”, um piscar de olhos à canção “I Am the Walrus”, dele mesmo. Mas há um verso especialmente significativo da época, expressão do desafogo de sentir-se prestes a ser liberado do vínculo com os outros três: “One thing I can tell you is you got to be free” (uma coisa que eu posso te dizer é que você precisa ser livre).

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Na época de Abbey Road, os Beatles viviam em reuniões de negócios na Apple Corps – uma rotina exasperante, já que não entendiam metade da burocracia. Foi um período especialmente difícil para George, envolvido com filosofias que pregavam o desapego ao mundo material. Num raro intervalo, Harrison estava no jardim da mansão de Eric Clapton com um violão na mão. “O alívio de não ter de ver todos aqueles contadores idiotas era maravilhoso.” Foi quando a caminhada ao ar livre encheu sua cabeça de analogias. O escritório teria a frieza de um inverno que parece durar anos. E momentos de ócio eram como a primavera trazendo o sol de volta. Dá para imaginar a luz desse sol se expandindo pelas ruas quando George canta “os sorrisos retornando aos rostos”. Uma força poética que resistiu ao tempo: 50 anos após aquele passeio, “Here Comes the Sun” é a música dos Beatles mais ouvida no Spotify.

“I feel that ice is slowly melting.” (Terry O'Neill/Getty Images)

Mais um vaudeville de Paul, e de um humor negro peculiar. A letra é sobre um estudante de medicina serial-killer. Maxwell enfia seu martelo de prata na cabeça de uma namorada, de uma professora e até do juiz que decide condená-lo. Quem não achou graça foram os outros Beatles: o perfeccionismo de McCartney fez com que a gravação se estendesse além da conta. “Levou malditas semanas para ficar pronta”, reclamou Ringo – que não era reclamão.

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Era bem incomum: John insistindo para cantar uma composição de Paul. Ele achava que essa tentativa de rhythm and blues da Louisiana estava entre as melhores criações do parceiro – mas que sua voz rascante seria mais adequada. McCartney discordou. Era ciumento de suas obras e quis que o próprio vocal soasse com o de um bluesman. Para isso, passou uma semana inteira cantando a plenos pulmões, até atingir o padrão New Orleans de rouquidão.

Frank Sinatra – que não era fã de rock’n’roll – rendeu-se à beleza desta canção. Mas cada show do crooner na época rendia um soco no baço de George Harrison, o autor: Sinatra a anunciava como sua composição preferida “de Lennon e McCartney”. Mas calma: havia lógica nesse raciocínio. “Something” é tão boa quanto as grandes criações dos parceiros. E George sabia disso – como comprovou sua atitude no estúdio. “Foi algo que eu nunca tinha visto”, apontou o engenheiro de som Geoff Emerick. “George nunca tinha dito a Paul o que fazer.”

Na letra, o compositor hesita quanto a uma paixão de momento. A garota o atrai como nenhuma outra, mas ele desconfia de que esse sentimento não vai passar disso: “você me pergunta se meu amor vai crescer? Eu não sei”. A melodia no verso se desloca entre cinco notas, mas o vocal suave e as guitarras tornam o conjunto altamente harmônico.

Primeiro lado A de George num single dos Beatles, “Something” tornou-se a segunda canção mais regravada da banda: perde apenas para “Yesterday”.

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Com mais um minuto, daria para cantar “Faroeste Caboclo” nos 7min47 deste hardblues de Lennon. Considerando que “Revolution 9” é só um experimento, “I Want You” é a canção mais longa dos Beatles – ganha de “Hey Jude” por 40 segundos (versões ao vivo, em que o público não para com o na-na-na-na…, não valem). E, mesmo com esse tempo todo, John surpreende com uma letra minimalista, que repete: “Eu te quero / Eu te quero tanto / Isso está me enlouquecendo”. Mas canta com o desespero de um maníaco – o que vale cada microssegundo.

“It’s driving me mad.” (Andrew Maclear/Getty Images)

A escolha de um cravo – tocado por George Martin – como instrumento principal transporta a canção de Lennon para o barroco. E a viagem no tempo ganha em beleza com John, Paul e George, sentados em semicírculo, cantando juntos em múltiplas camadas. O que se tem é uma harmonia de nove partes: as vozes de três Beatles multiplicadas por três em diferentes melodias sobrepostas. Dá a impressão de se estar na igreja ouvindo um coral entoar uma canção romântica que oferece explicações para o estado das coisas até concluir: o amor é antigo, o amor é novo, o amor é tudo… o amor é você.

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Se os Beatles fossem um país, Ringo seria ministro da Marinha. Depois do sucesso cantando as aventuras dentro de um submarino amarelo, ele mesmo compôs um country infantil sobre um idílico jardim de polvos – com guitarra solo marcante de Harrison e uma ajudinha dos amigos nos backing vocals. Nesse refúgio, haveria felicidade e segurança para sempre. Um psicólogo talvez visse um impulso de morte nesse desejo de paz no fundo do mar.

Os desavisados que, naquele final dos anos 1960, levantaram a agulha do vinil após o término de “The End” perderam um registro histórico: a faixa final do último álbum que os Beatles gravariam juntos. Mas o descuido é aceitável. Passam-se 18 segundos – uma eternidade no universo das mudanças de faixa – até que a voz e o violão de Paul McCartney finalizem Abbey Road com uma vinheta: uma canção de amor impossível. Afinal, a musa é a rainha da Inglaterra. “Um dia ela será minha.”

Assim como George – de forma metafórica em “Here Comes the Sun” –, Paul se lamenta por ter de lidar com os negócios. E estranha a atitude dos contadores da Apple, que não seriam transparentes quanto ao faturamento. Isso são os primeiros versos. O restante da composição, porém, junta canções inacabadas, e a letra varia de tema, assim como a música: ora é jazz antigo, ora rock progressivo.

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O lado B de Abbey Road ganha mais cara de medley a partir daqui, só com canções curtas, já que “You Never Give Me Your Money” tem 4 minutos. Mas o perfil de mosaico continua. Há variações nas partes, o vocal entra num coro semelhante a “Because”, mas fazendo uma referência estranha ao “Rei-Sol”, Luís 14. E a confusão toma conta de vez quando John começa a misturar palavras em línguas latinas. Tem lugar até para um “obrigado” – cheio de sotaque.

Puro pop-rock, esta composição está bem colocada entre as de títulos mais estranhos do repertório da banda: “Ela entrou pela janela do banheiro”. Fica menos esquisito quando se conhece a história por trás da obra. Entre as fãs hardcore, havia dois tipos de “Apple Scruffs”, como eram chamadas: as que só queriam um autógrafo e as que não se satisfaziam com isso e tentavam invadir as residências dos artistas. Já deu para perceber de qual grupo a canção trata. Numa invasão pela mencionada janela, McCartney teve roupas e fotos subtraídas de sua casa – um vandalismo apaixonado.

É a primeira de uma sequência de seis minicanções nos medleys com “Polithene Pam”, “She Came in Through…”, “Golden Slumbers”, Carry That Weight” e “The End”, que não chegam a 2 minutos. A inspiração é uma notícia de jornal sobre um morador de rua que escondia todo o seu dinheiro em orifícios do corpo.

A inspiração para a última parte de John no medley veio de pessoas excêntricas do seu passado. Uma foi Pat Hodgett, uma fã dos Beatles que tinha o estranho hábito de comer polietileno. A outra era uma garota que teria feito sexo a três com ele e um amigo vestindo saco plástico.

A faixa de pedestres mais fotografada do mundo. (Brian Rasic/Getty Images)

Ringo faz virada após virada acima de uma marcação de bumbo enfurecida. John, Paul e George duelam em solos de guitarra – virtuosismo de pura diversão. E então vem a mágica e tudo para. Resta uma nota de piano como tapete vermelho deste verso: “e, no fim, o amor que você recebe é igual ao amor que gera”. O mesmo amor que inspirou as primeiras assinaturas Lennon-McCartney. Nas palavras do professor Kenneth Womack, autor do livro Long and Winding Roads, “assim como em A Tempestade, de Shakespeare, os Beatles em Abbey Road reconhecem que o que é passado é invariavelmente prólogo”.

Piano, arranjo de cordas e a letra de Paul McCartney. Tudo se soma para que o ouvinte se entregue à ideia central da música: a nostalgia das canções de ninar, os sonhos dourados da infância… De algum jeito, essas lembranças eram uma forma de voltar para casa simbolicamente. Para quem perdeu a mãe aos 14 anos, como Paul, esse tipo de fantasia devia falar alto ao coração. No estúdio, John não participou das gravações: estava hospitalizado por conta de um acidente automobilístico na Escócia.

Uma virada de bateria liga “Golden Slumbers” a este outro fragmento. Mas o clima muda: da canção de ninar para o lamento de alguém entregando os pontos. “Você tem de carregar esse peso”. Era Paul voltando ao estresse dos advogados e dos conflitos com os outros Beatles. “McCartney estava cantando sobre todos nós”, confirmou Lennon. Soa coerente, então, que no meio a canção retome a melodia de “You Never Give Me Your Money”.

Se os reality-shows de celebridades fossem moda já nos anos 1960, haveria um para o casal aí em cima. Lennon e a esposa, a artista plástica japonesa Yoko Ono, expuseram seus corpos nus na capa do álbum experimental VirginTwos e depois, quando se casaram, tiveram uma lua de mel pública: convidaram a imprensa para o quarto enquanto estiveram na “cama pela paz”. Escrever uma canção sobre esse casamento e as perseguições que o casal sofria era só mais um capítulo desse Big Brother Beatle. Com George e Ringo distantes quando Lennon finalizou a composição, no estúdio Paul completou uma banda de dois: tocou piano, baixo e bateria, enquanto John dava conta de violão, guitarra e vocal.

“The newspapers said. Say what are you doing in bed.” (Keystone/Getty Images)

Lennon canta o amor por Yoko Ono com toda a intensidade, rasgando o coração ao mesmo tempo em que revela suas inseguranças: “não falhe comigo”, ele implora. Como se o fantasma do abandono pela mãe, na infância, sempre estivesse de tocaia. “John estava com Yoko e ao mesmo tempo tinha passado para a heroína e todas as paranoias que vêm junto”,disse Paul, mais tarde. “Acho que, assim como isso tudo o excitava, secretamente também o deixava aterrorizado.” Ringo acompanha cada sílaba do verso do título, gritado por Lennon, com uma pancada no prato da bateria.

Riffs potentes de guitarra marcam esta canção de Harrison, que saiu como lado B do single que lançou “The Ballad of John and Yoko”. Sob a falsa aparência de uma mera canção de amor, George fala do dualismo das coisas e sobre “descalçar este velho sapato marrom” – uma metáfora para o abandono da vida materialista.

Foram tantas jam sessions antes que esta canção de Harrison tomasse forma que George Martin chegou a abandonar sessões de gravação, achando que não daria em nada. Acabou registrando o que continua parecendo um grande improviso, embora o vocal tenha uma melodia estruturada em cima do caos. Mas são os Beatles improvisando, né? Não é pouca coisa.

Se a trilha de Yellow Submarine já tinha jeitão de boteco das canções engavetadas, piorou de status ao incluir uma previamente rejeitada. Harrison compôs esta música com a intenção de que fizesse parte de Sgt. Pepper’s. Não dava pé. “Tive que dizer a George que, pelo menos em relação a Pepper, não considerava aquela música boa o suficiente para o que estávamos moldando como um álbum realmente forte”, definiu educadamente o produtor George Martin. O tema pelo menos é provocador: ironiza a editora Northern Songs, que enriqueceu com os direitos das obras dos Beatles.

George, o provocador. (Mirrorpix/Getty Images)

Gravada durante as sessões de Magical Mystery Tour, esta canção de Paul ficou na gaveta até ser resgatada para suprir as encomendas da trilha de Yellow Submarine. O fato de parecer obra de introdução musical para crianças combinou com a animação. Também nessa linha, o instrumental incluiu triângulo, banjo, ukulele e muitas palmas. Qualquer pessoa por perto era convocada para repetir “todos juntos agora” no coro festivo do refrão.

Das inéditas de Yellow Submarine, esta é de longe a melhor. E ainda mostra como Lennon e McCartney tinham facilidade de compor numa rapidez impressionante. O grupo estava reunido em Abbey Road para um filme promocional de “Lady Madonna” e Paul sugeriu que aproveitassem para criar algo novo. O título seria “Hey Bullfrog”, referência a uma rã. Mas McCartney começou a latir no meio de música e, voilà, a canção ganhou nome de raça canina.

PARA SABER MAIS: The Beatles Anthology

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