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A dama pé-de-cabra no país do pau de arara

Uma história satânica no meio da ditadura militar - ou: um conto inédito de Reinaldo Moraes.

Por Reinaldo Moraes
Atualizado em 26 out 2020, 20h20 - Publicado em 5 set 2017, 12h04

1968

Quem vem lá ao volante do velho jipe Wyllis na estradinha de terra da fazenda Santa Múrcia, no sopé da Serra do Jupati, interior de São Paulo?

É o primeiro personagem desta história, quem mais haveria de ser?

De cabelo cortado rente nas laterais e um topete à prova de ventanias armado com gumex no topo da cabeça, blazer de lã escocesa, foulard de seda no pescoço e botas reluzentes de cano longo, Jorge D’Ávila é um fazendeiro reaça e carola, fã de primeira hora dos milicos que tomaram o poder no País, e solteirão convicto em seus quase castos 30 anos. A fazenda, e outros negócios da família, como um banco, um frigorífico e uma madeireira, ele herdou, junto com um irmão mais novo, dos pais que morreram faz uns anos num acidente de teco-teco nas lonjuras do Mato Grosso, onde abriam uma nova fazenda.

Flávio, esse irmão de Jorge, é seu antípoda: cabeludo, barbudo, fã de Che Guevara e John Lennon, mulherengo em tempo integral e adepto de uma revolução que instaure um comunismo libertário e lúdico no Brasil e no planeta. Arquiteto recém-formado, Flávio vive em Paris, para grande alívio do irmão, fazendo um doutorado em urbanismo na Sorbonne.

E é nele que Jorge está pensando ao ouvir, por cima do ronco do motor, uma voz feminina de afinação absoluta, vinda dos altos da serra. Desguiando do caminho, o rico fazendeiro sobe por uma trilha acidentada a encosta de um morro que vai dar num penedo com vista para um vale tomado por pasto, gado e canavial da fazenda vizinha à sua. No topo do penedo, Jorge avista uma jovem de beleza sobrenatural, capaz de desequilibrar a ordem do Universo, dentro e fora dos seres e das coisas. Loira e de olhos absurdamente azuis, a beldade traja um vestido branco longo, rodado e rendado, com um decote sobre o qual pendem duas laçadas de um delicado colar de pérolas.

– Você é real? – o fazendeiro lhe pergunta, sentindo sua alma vibrar para além do controle da razão.

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A resposta vem serena e sorridente, num doce sotaque luso:

– Sim, meu jovem senhor, sou real. Até os nossos sonhos são reais, pois que é real o sonhador.

– Você mais parece uma… uma fada!

– Fadas também são reais no mundo delas – responde a inesperada personagem.

– Sua graça é…?

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– Lucivera.

Sentando-se em outra pedra, ao lado de Lucivera, Jorge ouve, absorto e embevecido, a história que ela lhe conta, com aquela sua voz de cristal que imprime uma levada melodiosa a tudo que diz e aquele olhar que parece ter roubado ao céu todo o seu azul. Ocorre que a bela jovem acabou de herdar as terras da fazenda vizinha, depois da morte de seu dono, um velho viúvo e sem descendentes com quem tinha remoto parentesco.

Cada vez mais encantado com tão bela e tradicional figura feminina, que em nada lembra as detestáveis jovens modernas metidas em abomináveis jeans e camisetas, e por demais despudoradas, vulgares, arrogantes, contestatárias e masculinizadas para o seu gosto orgulhosamente retrógrado, Jorge convida Lucivera para jantar na sede de sua fazenda, o que a beldade prontamente aceita com um sorriso nada menos que cativante.

Ao pisarem na soleira do velho casarão colonial, onde uma Nossa Senhora montava guarda num nicho encravado na parede, Lucivera tem uma crispação de bicho ameaçado, dá as costas à Virgem e diz:

– Jorge, meu belo, padeço de iconofobia aguda, uma doença psíquica raríssima e sem cura. Portanto, tira essa senhora de porcelana das minhas vistas, te peço, rogo e imploro. E manda teus criados sumirem com tudo que é imagem, estatueta, cruz e demais símbolos religiosos que porventura estejam à vista dentro da tua casa.

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– Icono…fobia? – balbucia Jorge.

– Sim, aguda – reitera a cantora.

No jantar, à luz de velas, o vinho, a beleza sobrenatural de Lucivera e o bom bordeaux francês levam Jorge a se ajoelhar diante da dama do penedo:

– Quero fazer de você a senhora D’Ávila, minha mulher, minha rainha! – diz ele, tomado da mais imperiosa paixão que jamais sentiu na vida por mulher nenhuma.

– Aceito, meu belo Jorge, mas com uma condição: nunca mais faças o sinal da cruz, nem jamais tornes a pôr os pés numa igreja. E nada de ostentar ou guardar qualquer efígie ou símbolo religioso. Destarte, não só serei para sempre tua como também te darei toda a sorte material que um homem pode ter neste mundo.

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E veio o casamento e veio a noite de núpcias, ali mesmo na sede da fazenda. A noiva desvela todo o seu corpo magnífico feito num molde celestial, exceto pelas delicadas botinas de camurça cor de rosa. Ao descalçá-las, vem a terrível surpresa: os pés da beldade têm a forma de casco fendido como os de uma cabra. Eram de fato pés de cabra!

Apesar disso, o que veio a seguir naquela nobre cama de baldaquim do império foi a mais esfuziante celebração do amor carnal, como nunca Jorge experimentara na vida. Sua entrega aos folguedos eróticos com Lucivera foi de tal ordem que ele chegou a beijar com salivosa volúpia cada um dos cascos da esposa. O amor é estranho, já disse alguém.

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(Eduardo Belga/Superinteressante)

1972

Quatro anos depois daquela inesquecível noite de núpcias, na qual, aliás, foram concebidos os gêmeos do casal D’Ávila, a vida financeira do fazendeiro e empresário tornara-se um vendaval de lucros, com os negócios se multiplicando feito os pães e os peixes da Bíblia – da qual, aliás, ele nunca mais se aproximara -, quando se anuncia o retorno ao Brasil do irmão de Jorge, o “comunistinha” Flávio.

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Já reinstalado em seu apartamento paulistano, que se tornara o “aparelho” de um grupo revolucionário na sua ausência, Flávio liga para o irmão, que o convida e provoca:

– Venha jantar amanhã aqui na fazenda. Se é que ainda sabe chegar à casa que te viu nascer e onde você foi criado em berço de ouro antes de virar a ovelha vermelha da família.

No dia seguinte, lá está Flávio D’Ávila na sede da fazenda Santa Múrcia, ao pé da Serra do Jupati, para um jantar que mudaria sua vida da forma mais radical e inesperada possível. Basta dizer que no dia seguinte bem cedo, ao volante do fusca no retorno a São Paulo, o arquiteto esquerdista estava mortalmente apaixonado por sua cunhada Lucivera, com quem passara uma noite de sexo selvagem – sexo caprino, ele diria, depois de ter visto os pés de sua incestuosa amante -, enquanto seu irmão jazia em sono profundo no leito conjugal, sem se dar conta da ausência da esposa infiel, que trotava fogosa na cama do irmão com seus indecorosos cascos.

Dali em diante, oportunidades e, sobretudo, desejo não faltaram a Flávio e Lucivera para se esbaldarem no mais abusado, lambuzado e tresloucado sexo, sem que Jorge desconfiasse das constantes viagens da mulher a São Paulo, onde o casal D’Ávila mantinha uma luxuoso apartamento.

Nem é preciso dizer que Lucivera, desde o primeiro beijo, fizera a Flávio as mesmas exigências antirreligiosas que impusera a Jorge: nada de fazer o sinal da cruz, nem de entrar em igrejas e ter contato com padres e madres, algo que para um materialista convicto como ele não seria propriamente uma dificuldade, ao contrário de seu irmão Jorge, que teve de contorcer e retorcer a alma para afastar de si as coisas da religião. Flávio até gargalhou ao ouvir a estapafúrdia exigência da cunhada e amante, comentando:

– Prometo também não beber água benta, não pedir a bênção a nenhum padre, nem trepar com nenhuma madre, por mais que ela insista!

Eis que Jorge recebe na fazenda uma carta anônima relatando a dupla traição de que era vítima, por parte da mulher e do próprio irmão. Para Jorge, aquilo só podia ser castigo do Deus que ele havia renegado. Sua primeira reação foi passar a mão no telefone de ebonite preto e discar para o número do Major Cintra, em São Paulo. Esse major do exército, figura de proa dos órgãos de repressão política, era um gorila metido a galã que tinha ido lhe pedir dinheiro para equipar uma unidade antiterrorista e acabara se tornando seu grande amigo, a ponto de frequentar a fazenda e de convidar Jorge para assistir a sessões de tortura no Doi-Codi.

– Major – começou Jorge ao telefone -, é com imenso pesar que cumpro o dever de lhe informar que meu irmão, Flávio D’Ávila, está envolvido com um perigosíssimo grupo armado que assalta bancos e planeja derrubar o nosso glorioso regime. Anote aí o endereço dele em São Paulo.

Ato contínuo, Jorge comunica à mulher que eles seguirão naquele exato momento para a capital, junto com os gêmeos:

– Vamos assistir a um espetáculo muito edificante na rua Tutoia – diz ele, sem maiores esclarecimentos.

Na estrada, a Mercedes capota e rola uma pequena ribanceira. Do carro de rodas para o alto emergem Lucivera e as crianças, sem nenhum arranhão. No carro fica Jorge, de pescoço quebrado.

Em São Paulo, na sinistra delegacia da rua Tutoia, sede do Doi-Codi, Flávio, já moído pelas primeiras agressões que sofreu ao ser preso, pende do pau de arara, onde recebe choques pelo corpo, sob comando do Major Cintra.

Pouco resistente ao brutal tratamento que recebe, Flávio não demora a abrir o jogo sobre as atividades da VIP – Vanguarda Insurgente Proletária – a organização de combate armado à ditadura na qual milita. Mas nenhuma confissão é suficiente para mitigar a sanha torcionária do Major Cintra, que, para quem não sabe, tornou-se o novo amante da insaciável Lucivera.

As horas passam e, já a ponto de enlouquecer de dor, Flávio nota que há agora uma pequena plateia assistindo em grande excitação ao espetáculo de seus tormentos: Lucivera e seu casal de gêmeos, sentadinhos em cadeiras a comer pipoca, como se estivessem no circo ou no cinema!

Eis que uma ideia lhe vem à cabeça atormentada:

– Me tire daqui e solte minhas mãos – diz ele ao seu carrasco -, que eu te farei um mapa. Um mapa de um tesouro enterrado na fazenda.

O major olha para Lucivera, que dá de ombros, demonstrando desconhecer o assunto.

– Que tesouro é esse?

– Ouro, diamante, libras esterlinas. Coisa do meu finado pai. Tudo que eu quero em troca é um médico e que parem de me torturar.

– Se isso for mentira… – diz ele ameaçador para o supliciado.

Flávio, ou o que resta dele, é retirado do pau de arara, nu e banhado em sangue. Acomodado numa cadeira, frente à mesa do escrivão, o Major Cintra libera seus pulsos feridos das algemas e o provê de papel e esferográfica, que tira de uma gaveta:

– Vamos! Desenha aí esse tal de mapa do tesouro. E toma cuidado para não borrar tudo com esse teu sangue ruim de comunista.

Mas, ao se ver com as mãos livres, Flávio desenha uma cruz no papel, e a exibe com a mão esquerda para Lucivera, enquanto, com a direita, faz um ostensivo sinal da cruz, recitando em latim:

In nómine pátris et filii et spiritus sancti, amém!

Lucivera solta um berro hediondo que provoca trincaduras nas paredes sem janelas da câmara de torturas. Seu corpo todo se retorce, fazendo arrebentar as costuras de suas roupas e botinas, que tombam no chão, desvelando a nudez peluda de um corpo agora disforme e animalesco, apoiado em seus famosos pés de cabra. Da testa lhe brota um par de chifres e da bunda um longo e escamoso rabo. Seus olhos, agora vermelhos, exibem pupilas horizontais, e as unhas das mãos crescem de repente, retorcidas nas pontas, como as de uma harpia.

– Maldito sejas! – ela impreca. – Quebrastes o juramento! Maldito sejas para todo o sempre!

– Volte para o inferno de onde viestes, diaba! – retruca Flávio, com as últimas energias que lhe restam, antes de tombar morto no chão.

Ato contínuo, Lucivera se põe a levitar junto com o casal de gêmeos, eles também transformados em diabinhos caprinos de rabo e chifres, até virarem todos uma densa fumaça sulfurosa a se evolar por um duto de ventilação no teto. O Major Cintra e o juiz de paz, únicas testemunhas daquela abominação, começam a sufocar no ar saturado de infernais miasmas e se lançam para a porta fechada que, em grande agonia respiratória, tentam em vão abrir. De olhos saltados para fora das órbitas e com as bocas vertendo espuma verde de bílis, caem os dois por terra, retorcendo-se em agonia até a imobilidade imposta pela morte.

E assim termina a história da Dama Pé-de-Cabra no reino deste mundo sem Deus.

 

(Esta história se baseia livremente numa lenda portuguesa, de origem medieval, que já havia sido reinterpretada pelo escritor português Alexandre Herculano (1810-1877), no livro Lendas e Narrativas.)

 

Reinaldo Moraes estreou na literatura em 1981 com o romance Tanto Faz (Brasiliense). Em 1985 publicou Abacaxi (ed. L&PM). Depois, lançou Órbita dos Caracóis (Cia das Letras), Pornopopéia (Objetiva) e muitos outros. É também tradutor e roteirista de cinema e TV.

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