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A fantástica realidade

Para lembrar que o mundo está cheio de eventos absurdos, todos os dias.

Por Alexandre de Santi (edição: Bruno Garattoni)
Atualizado em 23 out 2020, 19h59 - Publicado em 19 nov 2015, 16h45

Livro: Cem anos de solidão
Autor: Gabriel García Márquez
Ano: 1967
Por que ler? Para lembrar que a realidade produz eventos absurdos ao nosso redor todos os dias.

Página a página, o editor Francisco Porrúa iniciava uma espécie de êxtase. Chovia naquela noite de Buenos Aires, em abril de 1967, quando o diretor da editora Sudamericana começou a ler o manuscrito de Cem Anos de Solidão, romance de um jornalista colombiano pouco conhecido chamado Gabriel García Márquez

Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias. Houve épocas de chuvisco em que todo mundo pôs a sua roupa de domingo e compôs uma cara de convalescente para festejar a estiagem.

Aos poucos, Paco Porrúa, como o editor era chamado, foi jogando folhas no chão, numa tentativa tresloucada de organizar as ideias e as emoções provocadas pela prosa fantasiosa de García Márquez, gênero que mais tarde seria batizado de realismo fantástico (ou mágico). Quando já não sabia se estava diante de um best-seller ou do trabalho de um maluco, telefonou para o escritor Tomás Eloy Martínez, uma espécie de conselheiro literário, e o convocou para a sua casa. Chegando lá, o amigo encontrou uma cena inusitada: Paco estava de pé, vivendo um surto eufórico, e páginas forravam o chão, espalhadas como se o vento tivesse soprado tudo a esmo. Passaram a madrugada analisando o texto e decidiram que era necessário publicá-lo urgentemente, com uma tiragem maior do que a habitual. A primeira edição se esgotou em semanas. 

cem anos de solidão

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Nas últimas quatro décadas, o transe de Porrúa se repetiu em inúmeros leitores. Cem Anos de Solidão conta o nascimento e morte de uma cidade fictícia chamada Macondo. Nela, seis gerações da família Buendía protagonizam uma sucessão de episódios de guerra, paixão, trabalho e, acima de tudo, causos fantasiosos que parecem tirados de escrituras sagradas, como uma Bíblia alternativa (há um dilúvio que dura quatro anos, por exemplo). São cerca de 60 personagens, um exagero que levou o próprio Márquez a solicitar a inclusão de uma árvore genealógica dos Buendía na edição comemorativa bancada pela Real Academia Espanhola.

Na primeira página, o leitor já dá de cara com o absurdo que permeia a história. Diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía se lembra da tarde em que o pai o levou para conhecer o gelo. “O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las havia que apontá-las com o dedo”, escreveu Márquez nas linhas iniciais, numa passagem que se tornou parte de muitas antologias da literatura mundial. Ao colocar o personagem a relembrar um fato remoto diante de soldados com o dedo no gatilho, o autor queria mostrar como muitas vezes temos a tendência de fechar os olhos para os absurdos que nos rodeiam. Afinal, ignorar a presença do batalhão de fuzilamento, da fome, dos ditadores, da corrupção, da exploração econômica, da violência urbana e demais situações extremas é um talento que nos permite tocar a vida adiante nos mais inesperados cenários. Sobretudo na América Latina, uma terra ainda em busca de estabilidade política, econômica e social. 

O livro foi concebido durante a ditadura colombiana e foi influenciado por La Violencia, guerra civil que ocorreu no país entre 1948 e 1958. Márquez transportou para Macondo as atrocidades e arbitrariedades dos dois períodos, recheados de acontecimentos que deveriam deixar cidadãos incrédulos (mas que tocam a vida como se tudo fosse cotidiano). “Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e canalhas, todas as criaturas desta indomável realidade, temos pedido muito pouco da imaginação. Porque nosso problema crucial tem sido a falta de meios concretos para tornar nossas vidas mais reais. Este, meus amigos, é o cerne da nossa solidão”, disse o autor de farto bigode no discurso em que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1982.

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Nascido na pequena Aracataca, a 50 quilômetros do litoral colombiano, Márquez viveu parte da infância com os avós maternos, que ajudaram a criar os 12 filhos do casal Luisa Márquez e Gabriel García. O autor dizia que a casa dos avós, malconservada, parecia habitada pelos fantasmas das histórias contadas pela avó. Nicolás Márquez Mejía, o avô de Gabriel, era um coronel do Exército aposentado e teve grande influência na formação do garoto. Mais tarde, nos anos 50, quando já havia deixado Aracataca para estudar em Bogotá, o escritor voltou à cidade e ficou impressionado com o silêncio local. Tudo isso influenciou a criação de Macondo, cenário de outras cinco obras de Márquez – o avô inspirou o nascimento do Coronel Buendía, um dos protagonistas do romance. Apesar da identificação da cidade real com o povoado fantástico, a população de Aracataca rejeitou em plebiscito, em 2004, uma proposta para rebatizar a cidade como Aracataca-Macondo. 

Calcula-se que a obra já tenha vendido mais de 30 milhões de cópias desde 1967, o que transformou o autor em milionário e ativista político influente – Márquez era um homem de esquerda, amigo de Fidel Castro. Parte do sucesso de público e crítica pode ser atribuído à raiz popular na formação do autor. “Os gênios literários do nosso tempo tendem a ser herméticos, minoritários e opressivos. Cem Anos de Solidão é um caso raro de obra literária superior que todos podem entender e desfrutar”, escreveu Mario Vargas Llosa no prefácio da edição da Real Academia Espanhola.

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