Anomalia no setor B45. Sensores indicam presença de objeto metálico de composição desconhecida. Atenção, equipe de detecção de ameaças do Quadrante 1.
Ao mesmo tempo que o alarme aparecia no seu campo de visão, um apito simples chegou aos seus ouvidos. Estava começando a se arrumar para o turno na central e, por isso, não estava mais dormindo.
– Nic, esse setor é nosso.
– Sim, eu sei. Já estou me arrumando para ir até lá. Você fica me devendo uma.
A voz de Jeú soou aliviada.
– Agradeço. Kor amanheceu doente. A medicação está fazendo efeito, mas…
– Entendo, Jeú. Kor é sua cria. Não se preocupe…
O som de ligação encerrada interrompeu a sua frase. Nic sacudiu a cabeça. Terminou de vestir o uniforme antirradiação, de um laranja bastante exótico – talvez para evitar que fosse usado sem necessidade –, e pegou o capacete, carregando-o na mão. Só iria usá-lo quando não tivesse mais como evitar.
Fora da sua habitação, foi andando o curto trecho até a estação de transporte. Ninguém olhava em seus olhos, ninguém cruzava seu caminho. O uniforme laranja era reconhecido e temido de longe. Deu um suspiro, mas continuou em frente. Parou na altura da tela de identificação e, em poucos segundos, teve sua passagem liberada. Recebeu o aviso de que seu transporte estava a caminho e que iria operar em urgência para atender o alarme.
Jeú entrou em contato novamente.
– Nic, onde você está?
– Estou na plataforma esperando o transporte. O que houve? – o contato estava estranhamente picotado. – Seu sinal está vindo cortado…
– Desculpe, Nic, tive que usar criptografia. Olhe o que estou enviando. Não atenda esse chamado!
Era uma imagem aérea do setor B45, um pouco desfocada, mas que mostrava alguns detalhes da região.
– Como você conseguiu isso? É um lugar restrito.
– Olhe.
Nic observou atentamente. Em poucos segundos, percebeu o que Jeú queria mostrar. No centro da área focalizada, havia uma mancha estranha, que emitia um brilho fraco.
– É uma massa metálica, então provavelmente é a nossa anomalia. Não entendo…
– Nic. Olhe. Precisamos descobrir a verdade.
Para não perder a calma com Jeú, lembrando-se de que Kor estava doente havia ciclos, forçou-se a observar por mais um tempo. Foi quando viu. Ou melhor, percebeu. A mancha era regular demais, não parecia ser algo natural.
– Não é uma simples massa metálica… é uma estrutura… numa área restrita. Jeú…
Antes que pudesse completar a frase, recebeu o aviso de que seu transporte se aproximava. A ligação foi bruscamente interrompida. As dúvidas de Nic seriam só suas até que chegasse ao local da descontaminação.
Nic aproveitou a viagem para ordenar os pensamentos. A imagem que Jeú mandara era um alerta. O Quadrante 1 era restrito e inabitado. E, segundo todos os relatos oficiais, jamais tinha sido ocupado. Era uma região inóspita, radioativa, pobre em minérios úteis. Tão estranho quanto
o fato de haver aquela massa metálica ali era Jeú ter lhe mandado aquela imagem. A área era restrita até para circulação pelo alto.
O transporte parou na última barreira. Dali em diante, iria seguir no veículo preparado para zonas de alta radiação. Não havia ninguém na guarita, o que era estranho, pois sentinelas sempre cercavam o local. Nic ligou seu módulo de comunicação, mas não tentou retomar o contato com Jeú. Onde estava, só era possível se comunicar com a central.
– Central, aqui é Nic. Equipe de detecção de ameaças do Quadrante 1.
A barreira do campo de força está sem vigias. Aguardo contato.
O silêncio alongou o tempo de espera e Nic estava prestes a entrar no veículo para voltar à zona residencial quando finalmente recebeu resposta
da central. A voz automatizada doeu nos seus ouvidos.
– Não há vigia em turno atualmente nessa barreira. Portão destrancado. Prossiga.
Nic sentiu uma estranha vertigem e as longas pernas bambearem. Passou a mão pela cabeça lisa e ajeitou o capacete com os quatro dedos de cada mão tremendo. Aquilo não era o normal do serviço. Sempre havia alguém de vigia. Nunca tinha entrado em uma área restrita sem companhia ou, pelo menos, sem reforços por perto.
O ar enlatado entrou pelas suas fendas nasais com um estranho cheiro metálico. O mundo ao seu redor tremeluziu quando ultrapassou a barreira que limitava a área habitável do Quadrante 1.
A sensação era parecida com o deslizar das pálpebras sobre os grandes olhos negros depois de uma noite de sono. A zona mais selvagem do planeta se estendia à sua frente, em um vermelho pálido e desfocado, areias turbulentas com um vento selvagem. O mapa em seu visor desenhava-se por cima da paisagem desolada, indicando o melhor trajeto e o clima em tempo real.
Não havia previsão de tempestades nas próximas quatro horas. O cálculo do trajeto de ida e volta até o ponto onde a anomalia havia sido detectada estava em duas horas e meia. Tinha ar para mais de oito horas nos tanques embutidos na roupa antirradiação. Tudo estava sob
controle.
E, mesmo assim, Nic sentia o incômodo se instalando. As zonas restritas ficavam fora dos campos de força que permitiam a vida na superfície, longe dos subterrâneos onde a maior parte da sociedade vivia. Os que moravam sobre o solo e pertenciam à família genética de Nic eram pioneiros, submetidos a perigos incertos. E não havia região mais perigosa do que a zona restrita do Quadrante 1.
A caminhada foi longa e desolada. A paisagem se espalhava monótona e Nic poderia dormir em pé. Despertou com o alarme de proximidade do seu visor.
Anomalia a vinte metros. Erguendo escudo. Cautela necessária. Favor manter o protocolo de contato com objetos estranhos.
O protocolo era simples. O alarme soava, ativava o escudo, havia o primeiro contato visual, depois a aproximação e, por fim, a retirada de material. Tudo isso não podia passar de trinta e cinco minutos para evitar riscos.
O contato visual reforçou a imagem que Jeú tinha enviado. Era um amontoado de metal muito pouco aleatório para ser só uma formação mineral. Brilhava na luz fraca, mas não parecia perigoso.
Seguiu o protocolo e aproximou-se, com o máximo de cautela. Não conseguiu identificar o tipo de metal à primeira vista, mas não era sua especialidade. Seu treinamento era para observar, aproximar, gravar – com a câmera do capacete – e recolher amostras. Sem análise, sem digressões, sem pensar. Ainda bem.
Com a pequena serra que carregava em um bolso, cortou pequenos pedaços do metal. A radiação e a areia agitada tinham desfigurado o objeto, mas podia ver que havia pequenas lascas de material diferente presas ao metal. Parecia tinta, mas não era possível determinar a cor.
Remexeu mais um pouco e uma placa se soltou na sua mão enluvada. Riscos meio apagados refletiam a luz na sua superfície. Deveria colocar aquilo na sacola junto com as outras amostras, pois seu tempo estava acabando. Focou, porém, a vista para tentar decifrar o mistério, sem muito sucesso. Gravou o objeto com a câmera do seu capacete, para transmitir assim que voltasse ao campo de proteção.
MADE ON EARTH BY HUMANS.
Aquilo deveria bastar. Se algo naquelas amostras exigisse uma investigação maior, uma equipe de cientistas iria até ali analisar. Nic era apenas a margem de segurança, para não arriscar sem necessidade a vida daqueles que pensavam.
O caminho de volta foi ainda mais longo e penoso, com o peso adicional e a sensação de incômodo aumentando. A inscrição estranha no objeto ficou na sua mente. A área restrita nunca fora habitada. Nunca. A civilização só saíra dos subterrâneos quatro gerações atrás. Havia certezas demais balançando em sua mente. E o seu serviço não envolvia pensar.
A guarita não estava mais vazia quando voltou ao limite da zona restrita. Pelo contrário, estava cheia demais. Ao menos quatro autômatos de defesa acompanhavam Zaned, que coordenava a segurança daquele Quadrante.
O instinto fez com que Nic acessasse o protocolo de comunicação.
– Jeú. Aconteceu algo? Por que a equipe de segurança está na guarita?
Por um longo momento, apenas o silêncio respondeu. A voz de Jeú apareceu, entrecortada e distante.
– Interferência… posso… estar… sob vigilância… tenha cuidado. Pode ser…
E mais nada.
Ajeitou os ombros estreitos, tentando diminuir a tensão. Em tantos ciclos servindo, jamais tivera qualquer ocorrência em que fosse necessária intervenção externa. Houve um caso, antes mesmo de Jeú ter pedido a transferência de setor, em que a anomalia era muito maior e com uma contagem radioativa muito mais intensa. Sequer recebera uma mensagem da segurança.
– Agente de Extração de Anomalias Nic 857, deposite todas as amostras na bancada externa da guarita – a voz grave de Zaned ressoou no seu capacete.
Nic fez como ordenado e ficou aguardando mais instruções. A porta se abriu e Zaned deixou a guarita, com os autômatos logo atrás. Examinou atentamente as amostras, as costas finas viradas para Nic, que se controlava para não se mexer.
– Mais alguém trabalha nesse setor? – Jeú 857 trabalha comigo, mas teve um problema com a cria…
Zaned ergueu a mão.
– Além de Jeú. Já estivemos na sua residência.
A forma como aquilo foi dito causou um grande mal-estar em Nic.
– Não, não tem mais ninguém além de nós.
Zaned virou-se e encarou Nic pela primeira vez.
– 857… Já deviam ter parado de insistir nesse modelo.
Os dedos finos de Zaned estalaram por três vezes e Nic sentiu sua consciência mudar. Sua mente desconectou-se do corpo, que finalmente percebeu ser de plástico e metal, circuitos e fios. Acompanhou os movimentos à sua frente com frieza, vendo Zaned apertar botões em sua pele
que nunca suspeitara existir. Aos poucos, sua visão foi ficando turva, antes de escurecer completamente.
Seu último pensamento foi uma pergunta. “Por quê?”
Zaned, chefe de segurança do Setor de Terraformação B45, olhou para a massa amorfa de metal e plástico que fora Nic 857. O outro robô tinha sido desativado na sua unidade habitacional, junto com o dispositivo de vigilância que haviam implantado como sua cria. De todos os postos de trabalho ocupados por robôs na superfície de Marte, os que lidavam com anomalias tinham a maior rotatividade.
Sempre que um artefato era detectado pelas sondas, algum espião do Movimento Pela Verdade conseguia contatar os robôs e mandar uma mensagem, tentando quebrar a ilusão em que viviam. A segurança sempre conseguia conter a brecha de informação antes que ela se espalhasse – por vezes, antes mesmo que os robôs tivessem sequer consciência do que tinham encontrado.
– Zaned para Central Subterrânea. Aconteceu de novo. Mais um artefato terrestre e mais uma equipe contaminada pelos terroristas. Tive que desativar os dois. Pelas nossas previsões, faltam apenas mais três artefatos para podermos liberar o setor.
A voz da comandante da equipe de segurança parecia bastante irritada.
– Precisamos descobrir quem está vazando essas informações. São robôs caros!
– Vai valer o investimento. Seria mais fácil se nossos ancestrais não tivessem espalhado lixo por todo o sistema estelar…
– Os arquivos dizem que foi assim que acabaram com o planeta deles. Bem, não esqueça de incinerar as amostras e dar a localização exata para que possamos destruir o artefato. E bom trabalho, Zaned. Nossos filhos poderão crescer na superfície se tudo continuar assim.
Zaned olhou de novo para o robô desligado. Em pouco tempo, todos os robôs que completavam a terraformação de Marte teriam suas memórias reprogramadas, perdendo a inteligência artificial que lhes dava consciência e personalidade.
Um genocídio artificial para que os filhos da Terra pudessem sobreviver.
Ana Cristina Rodrigues é historiadora, escritora e tradutora, além de mãe. Contista, apaixonada por Fantasia e FC, publicou em várias antologias no Brasil e no exterior.