Sérgio Teixeira Jr.
MP3, instrumentos virtuais, estúdios de laptop: é quase impossível separar música e tecnologia
Dá para dizer sem muito medo de errar que, depois dos artistas, o principal motor do mundo da música de hoje são os computadores. A imensa maioria do que se ouve no rádio ou se assiste na MTV passa por computadores equipados com programas de edição digital. Perfeito. O software democratiza a produção de música e coloca nas mãos de produtores domésticos um arsenal que até pouco tempo atrás só existia em sonho (e nos estúdios profissionais). Só que essa mesma música do rádio e da MTV também pode ser encontrada facilmente na internet, de graça e com boa qualidade, no formato MP3. Aonde é que os computadores vão levar a música?
Pelo jeito, vão levar bem longe. Um programinha chamado Auto-Tune é usado por nove entre dez estúdios profissionais. O que ele faz? Como o próprio nome diz, afina automaticamente cantores que não conseguem manter o tom. No mundo da música eletrônica o uso dos computadores é ainda mais importante. Recentemente, três produtores do selo alemão Kanzleramt lançaram-se a um desafio: criar um disco inteiro usando um único software, o cada vez mais popular Reason. O resultado é o álbum Reasons (provavelmente o trio esgotou a criatividade na produção das músicas). No festival Sónar, um dos principais eventos de música eletrônica do mundo, além das tradicionais apresentações de selos, houve duas exibições de uma empresa de instrumentos virtuais, a Native Instruments.
Tecnologia pode ser uma bênção. Nunca houve tantos recursos à mão de quem quer produzir música. “Com um computador pessoal relativamente novo, comprado de dois anos para cá, é possível montar um estúdio quase inteiro só com software”, diz Adinaldo Neves, responsável pelo marketing latino-americano da Digidesign, a produtora do Pro Tools. O programa, padrão nos estúdios profissionais, é cada vez mais encontrado em computadores domésticos e laptops. “Recentemente fizemos um remix para o Saint Etienne durante uma turnê pela Alemanha”, diz Jotka, da dupla berlinense Laub. “Gravamos os vocais num quarto de hotel diretamente no computador e finalizamos a música nas viagens de trem.” Nem é preciso dizer que a apresentação do Laub se baseia em um computador.
Durante muito tempo, a produção eletrônica esteve confinada à seqüência linear de baterias eletrônicas e sintetizadores. Mas a flexibilidade da produção proporcionada pela tecnologia digital subverteu essa regra. Com um computador nas mãos, é possível criar e manipular sons de maneiras antes inimagináveis. Até mesmo os defeitos foram explorados: uma escola estética chamada glitch ou click music (em inglês, glitch significa falha ou mau funcionamento) baseou toda a música em sons manipulados em computadores.
Como todo trabalho conceitual, os resultados variam. A busca por novas possibilidades de produção é um objetivo nobre, mas isso nem sempre quer dizer que o ouvinte vá sair ganhando. Há obras difíceis de digerir, como o som do alemão Pole (cujo nome foi tirado de um equipamento chamado Waldorf 4-Pole) ou o do venezuelo-americano Kid 606. Mas há, também, músicas ao mesmo tempo geniais e acessíveis, como as do disco “My Way”, do canadense Akufen. Marc Leclair (este é o nome que aparece em seus documentos) inventou uma técnica que chamou de microsampling. Em vez de copiar trechos inteiros de músicas, como costumam fazer os produtores de hip hop, Leclair usa samples de apenas alguns milissegundos, em geral de sons captados por um rádio de ondas curtas. O trabalho é uma colagem de mil estilhaços de música – um trabalho artesanal que só é possível graças à capacidade de edição proporcionada pelo computador.
Da mesma maneira, há artistas que rejeitam o uso da tecnologia. O conjunto de rock eletrônico Add N to (X), por exemplo, utiliza apenas sintetizadores analógicos dos anos 70 e começo dos anos 80. Dizem que o som desses equipamentos é mais autêntico e mais agradável (essa, aliás, é uma discussão que se assemelha à dos CDs vs. vinil. Dá para perceber a diferença? Em geral, sim. Mas será que faz alguma diferença?) O duo de tecno experimental Autechre, porém, apontou outro problema. Numa entrevista à revista XLR8R, afirmaram que em seu mais novo álbum (Draft 7.30) buscaram distância da tecnologia. Segundo os integrantes do Autechre, a sensação era que eles passavam cada vez mais tempo em busca do último processador de efeitos – e cada vez menos pensando na música.
Outro problema da produção baseada em computadores são as performances ao vivo. OK, ninguém espera de uma apresentação de música eletrônica um show de roqueiros cheios de cabelos, maquiagem e atitude. Mas assistir a um sujeito sobre o palco de olhos fixos numa tela de computador também é um pouco demais. “Na Europa, e especialmente em Berlim, ninguém mais agüenta shows de laptop”, diz a produtora alemã Antye Greie-Fuchs, ou AGF. Erik “Errorsmith” Wiegand, também alemão, fez exatamente isso no showcase da Native Instruments no último Sónar. O que ele pensa do assunto? “Quando se vai a um clube, ninguém fica olhando para o DJ o tempo todo”, diz Erik. “Acho que é apenas uma questão de tempo. As pessoas vão se acostumar.”
Se a aceitação dos artistas de software for uma minúscula fração do que é o fervor do MP3, os músicos digitais podem ficar tranqüilos. O Napster nasceu, morreu e está prestes a ressucitar (ou pelo menos é o que prometem os novos donos da marca), e até agora ninguém encontrou uma maneira melhor de fazer esse produto chegar ao público. Enquanto isso, as grandes gravadoras seguem sua política para lá de duvidosa: agora, estão ameaçando processar individualmente os usuários que trocam MP3 pela rede. A questão é: será que o futuro é tenebroso como pinta a indústria do entretenimento? Sem dinheiro para remunerar os artistas, viveremos num mundo sem música?
Provavelmente não. É verdade que, para um pequeno selo independente, com tiragens de até 1000 discos, uma venda perdida significa muito. Perdem o artista, o designer que fez a capa do disco e todos aqueles que empenharam horas e horas de trabalho para viabilizar o lançamento da música. Mas a questão pode ser olhada de outro ângulo. O dinheiro continua circulando – mas por outras vias. Quando há um show de um artista desconhecido, qual é o primeiro pensamento de muita gente? Ouvir algo na rede. Se agradar, vai-se ao show e eventualmente pode-se até comprar o disco.
Isso é especialmente verdade entre o público de música eletrônica. Existe até um software especializado para encontrar tecno, house e afins: chama-se Soulseek (está disponível em https://www.slsk.org) e foi criado por Nir Abel, um ex-programador do Napster. “Artistas e selos deveriam se concentrar em divulgar seu trabalho, não o contrário”, diz Nir. Ele diz que já recebeu um pedido do selo inglês Warp (que tem artistas como Aphex Twin, Plaid e Two Lone Swordsmen) para bloquear algumas músicas, mas foi tudo.
Afinal, a tecnologia resolve ou cria problemas? A pergunta ainda está em aberto. Mas alguns indícios dão conta de que o caminho da tecnologia não tem volta. Os alemães do Kraftwerk, os pais da música que hoje chamamos de eletrônica, os reis dos sintetizadores analógicos, aderiram ao microprocessador. Em shows recentes pela Europa, os alemães desistiram de levar o mitológico (e enorme) estúdio Kling Klang de um lado para o outro. Os quatro, quem diria, agora carregam laptops. Será que, de novo, os homens-máquina estão mostrando o caminho?
O som das máquinas
Seis discos em que música e tecnologia se confundem
Clicks + Cuts vols 1, 2 e 3 – Vários (Mille Plateaux)
Idealizadas pelo dono do selo, o acadêmico do tecno Achim Szepanski, essas coletâneas batizaram o estilo hoje conhecido como click music
My Way – Akufen (Force Inc.)
Samples de milissegundos se transformam em músicas. A soma é maior do que as partes. Ao mesmo tempo ousado e acessível, Akufen é essencial
1, 2 e 3 – Pole (Kiff SM)
Os três primeiros discos do alemão Stefan Betke são um desafio interessante para qualquer ouvinte. Ruídos crocantes e minimalismo absoluto
Entain – Vladislav Delay (Mille Plateaux)
O finlandês Delay leva os cliques e o som da estática ao limite em um dos discos que provaram que os cliques podem, sim, ser música
Life is Full of Possibilities – Dntel (Plug Research)
O americano Jimmy Tamborello faz glitch-pop: melodias assobiáveis e letras de amor sobre um pano de fundo de cliques e ruídos
Bodily Functions – Matthew Herbert(!K7)
Uma bela introdução a Herbert, um dos criadores do microhouse. Ele abandona samples e instrumentos e faz música com sons produzidos pelo corpo humano