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Boas maneiras abrem as portas do mundo moderno

Resenha do livro O processo civilizador: uma história dos costumes, Norbert Elias, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 31 Maio 1990, 22h00

O garfo surgiu no final da Idade Média como utensílio para retirar alimentos da travessa comum. Não existiam, na época, pratos ou talheres de uso individual. “Cinco séculos se passariam antes que a estrutura das relações humanas mudasse o suficiente para que o uso desse utensílio atendesse a uma necessidade mais geral.” Quem faz a afirmação é o sociólogo alemão Norbert Elias (nascido em 1897) nesse livro hoje reconhecido como clássico. Publicado pela primeira vez em alemão em 1939, mas fora da Alemanha, de onde o autor fora obrigado a fugir por causa do nazismo, só em 1979 foi traduzido para o inglês e só este ano lançado no Brasil.

O garfo passou a ser usado para comer a partir do século XVI, mas apenas nas classes altas. Um século depois, ainda era artigo de luxo, normalmente feito de prata ou ouro. As maneiras à mesa, de modo geral, incluindo o uso do garfo e de outros instrumentos Ocos para comer, atingiriam seu estágio mais refinado e complexo entre a aristocracia do século XVIII.
Desde então as maneiras nada mais são do que variações de temas já elaborados naquele século e nos precedentes, segundo Elias. Mas o que efetivamente mudou? Para alguns, não se trata de grande coisa. Mudaram certos costumes em muitos séculos, e daí?

Não teria sentido descarregar tanta análise sociológica em cima de um tema tão frívolo – as boas maneiras. Mas, para Elias, a mudança dos pequenos costumes indica profunda transformação nas sociedades européias. Passa-se de uma época, a Idade Média, em que as proibições e controles são suaves, para outra, a Moderna, em que se impõem grandes restrições ao jogo de emoções. Para fisgar esta mudança, Elias lança mão de um método ao mesmo tempo profundamente simples, erudito e inteligente. Daí a beleza do livro. Em antigos tratados de boas maneiras o autor procura o que precisava ser ensinado, para descobrir o que não precisava mais ser dito nem ensinado com o passar dos séculos, pois os novos modos de comportamento já vinham sendo incorporados ao senso comum como um hábito natural.

Elias mostra como os autores dos livros de boas maneiras do início da época moderna se preocupavam em reprimir tipos de comportamento que hoje não precisam mais ser reprimidos. uma vez que já os reprimimos naturalmente. Na sociedade medieval, por exemplo, precisa-se instruir os adultos:
“Uma pessoa não deve fungar nem estalar os lábios enquanto come. Nem cuspir de um lado a outro da mesa nem assoar-se na toalha (usada para limpar os dedos de gordura) ou nos dedos (que tocam a travessa de servir comum).
Partilhar o mesmo prato ou travessa com outras pessoas é natural. O indivíduo deve apenas evitar cair sobre o prato de servir como se fosse um porco e devolver a comida mastigada à travessa comum.
Para nos, é pouco. Um europeu moderno que sentasse a uma mesa medieval onde os convidados seguissem esses conselhos dificilmente conseguiria evitar sentimentos de repulsa e nojo. Alguns talvez desmaiassem. Vomitar, por exemplo, não era considerado naquela época necessariamente um ato repugnante, desde que fosse feito com uma certa discrição. Os resultados da pesquisa de Elias não deixam de ser cômicos em alguns momentos, visto que as lições dos livros antigos são óbvias, quando não absurdas e surrealistas para a nossa sensibilidade moderna. Elias não vê progresso na modernização das maneiras, nem o que costumamos chamar civilização, usando a palavra como juízo de valor.

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Ele relativiza estes conceitos, mostrando que a evolução do processo civilizatório resultou de uma dinâmica de classes em que certos grupos procuraram se distinguir socialmente de outros por meio do comportamento, e também da crescente individualização da mentalidade européia no período moderno, que torna nojentos os cheiros, ruídos e secreções emitidos pelos outros. O preço desse processo é alto: internalizamos uma repressão secular. Ao analisar a mudança dos hábitos do cotidiano em termos de transformações das sociedades e ao relativizar o conceito de civilização, Elias, na década de 30, antecipou-se a escritores pós-modernos como Michel Foucault e aos adeptos da Nova História na França. Com uma graça e uma simplicidade que têm algo de antigo.

Mafthew Shirfs

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