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Capoeira. O jeito brasileiro de ir à luta

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h46 - Publicado em 30 abr 1996, 22h00

Rosangela Petta

Quando você vê um filme com Mel Gibson, Eddie Murphy ou Wesley Snipes, pode ter certeza: para fazer aquelas incríveis cenas de ação, eles incluíram a capoeira nos ensaios. É que essa técnica corporal, mistura de dança e exercícios, desenvolvida exclusivamente no Brasil, já ganhou adeptos em 48 países. Ambiciosa, desde o ano passado ela foi reconhecida pelo Comitê Olímpico Brasileiro como esporte olímpico e está em campanha por um lugar nos jogos de 2004. O número de academias vem crescendo rapidamente e já soma 25 000. Veja por que essa luta brasileira está empolgando cada vez mais gente.

Nos últimos dois anos, o número de cursos de capoeira quadruplicou. O cálculo é do presidente da Confederação Brasileira de Capoeira, Sérgio Luís Vieira, sustentado em estimativas do final de 1995 que incluem tanto as escolas filiadas quanto as “de fundo de quintal”. Se levarmos em conta que a média de alunos de cada mestre, título dado ao professor de capoeira, é de 100 iniciantes, chega-se à conclusão de que uns 2,5 milhões de brasileiros já entraram na roda.

Além disso, essa mistura de jogo, dança e pugilismo está presente em 48 países. Curiosamente, nenhum do continente africano. São 120 cursos apenas no estado americano da Califórnia, incluindo o da Universidade de Berkeley. “Houve um boom de capoeira, especialmente depois que ela foi reconhecida como esporte pelo Comitê Olímpico Brasileiro, no ano passado”, disse Vieira à SUPER. “A capoeira entrou em clubes da classe média alta, em colégios e universidades. Por isso vamos formar uma federação internacional ainda em 1996. Se tudo correr nesse ritmo, chegaremos às Olimpíadas em 2004.”

Não vai ser fácil. Além de precisar preencher os pré-requisitos olímpicos, que obrigam a prática da modalidade em pelo menos 75 países de quatro continentes, a capoeira não é uma técnica uniforme. Ela ainda é praticada espontaneamente, como a brincadeira dos escravos nos dias de festa do Brasil colonial (veja na página 50), e está dividida em estilos, métodos e rituais diferentes e informais. O que você vê na televisão, na rua ou na maioria das academias está mais próximo de um certo tipo de roda: a Regional, bem diferente da capoeira Angola, a mais primitiva. Embora a confederação tente unir as duas correntes, listando 76 golpes, é difícil promover competições que avaliem todos os capoeiristas por um mesmo padrão.

Uma cultura negra em jogo

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Não são todos os capoeiristas, ou capoeiras que se consideram atletas. Para os grupos mais tradicionais de Salvador, ela é forma de expressão da cultura negra. Tanto que, para eles, trata-se de uma arte marcial afro-brasileira. “Reduzir a capoeira ao esporte é diminuir seu lado subjetivo, sua história e sua filosofia”, diz Pedro Moraes Trindade, o mestre Moraes, baiano que segue a linha de Angola. “Capoeira é a fusão de corpo e mente. Em comparação a outras artes marciais, corresponde ao tai chi chuan chinês, no qual você não precisa ser forte, mas inteligente.”

Manoel Nascimento Machado, ou mestre Nenéu, de Salvador, batizado na capoeira como “Sá Pererê” e filho do criador da capoeira Regional, também insiste em ressaltar aspectos que extrapolam a mera habilidade física. “O capoeira nunca joga contra o outro, mas com o outro”, explica à SUPER. “Assim ele se prepara para enfrentar a vida lá fora.”

Em comum, a capoeira Angola e a Regional têm alguns princípios fundamentais. Quem joga sempre deve começar cumprimentando o parceiro “ao pé do berimbau”, quer dizer, agachado perto do instrumento que dará o ritmo dos golpes. Ambos devem estar limpos, “decentemente trajados” e jamais sem camisa. Deve-se procurar a harmonia, na qual um movimento de defesa já é o começo de outro, de ataque, sem ferir o companheiro. Os oponentes não se atracam, mas lutam “por aproximação”, respeitando a hora de entrar e sair da roda. E ninguém deve aprender capoeira para sair batendo nos outros.

Tudo começou com uma certa dança da zebra

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A palavra capoeira não é africana, como se costuma pensar. Ela vem do tupi, kapu·era, e originalmente possui dois significados. Pode tanto designar mato ralo ou roçado como uma espécie de cesto ou gaiola que serve para carregar animais e mantimentos. A partir desse duplo sentido, etimologistas, historiadores e folcloristas começam a polemizar sobre o berço da capoeira, que pode ser rural ou urbano.

Uns enxergam seu nascimento no campo, entre grandes plantações de cana e engenhos de açúcar, onde as clareiras abertas na mata serviriam de canal para a fuga dos negros rebeldes e espaço para o lazer nas horas de folga. “A própria palavra já denuncia uma ligação com o meio rural”, diz o antropólogo Oderp Serra, da Universidade Federal da Bahia. Mas há quem diga que a capoeira é própria da cidade, onde aquela brincadeira quase inocente das fazendas teria evoluído para a arte marcial. “Sem dúvida, ela é urbana”, afirma o pesquisador baiano Waldeloir Rego, autor de um clássico sobre o assunto, Ensaio Sócio-Etnográfico Sobre a Capoeira de Angola. “Só não podemos afirmar se a capoeira é de Salvador ou do Rio de Janeiro. Provavelmente, se fez ao mesmo tempo nas duas cidades, e ainda em Recife.”

A existência de jogos corporais semelhantes à capoeira em Cuba (o mani) e na Martinica (a ladja) comprovam que a semente de todas as especulações está nos costumes trazidos nos porões dos navios negreiros que também seguiram para o Caribe. Mestre Moraes foi um dos capoeiristas brasileiros que tiveram a oportunidade de presenciar na Angola atual o ritual do n·golo, ou “dança da zebra”. “Não é capoeira, mas uma competição atlética que os rapazes da aldeia fazem para ver quem merece ficar com a moça que já atingiu a idade de casar”, conta.

Cruzando os relatos disponíveis, Rego concluiu que o n·golo virou folguedo, um divertimento praticado pelos escravos nos domingos e feriados. Com o tempo, a prática teria se transformado em exibições de habilidade, destreza e leveza de movimentos, chegando ao jogo de ataque e defesa no século passado.

A festa virou violência e fez política

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No século passado, as principais cidades portuárias brasileiras, como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, eram um aglomerado barulhento de gente. Era comum a figura do “escravo de ganho”, aquele que tinha permissão de vender ou prestar serviços na rua e, em troca, dar uma porcentagem do dinheiro que obtivesse ao seu senhor. Sem outra coisa a oferecer senão a força física para carregar móveis, mercadorias e dejetos, muitos faziam ponto perto do porto. Não demorou para que esses grupos se organizassem sob a chefia de algum valente chamado de “capitão”, que era exímio em capoeira.

Segundo o historiador carioca Carlos Eugênio Líbano Soares, que examinou o registro de prisões de escravos do século XIX, os anos entre a chegada da Família Real, em 1808, e a abdicação do primeiro imperador, em 1831, foram marcados pelo “terror da capoeira” no Rio de Janeiro. A Bahia não ficava atrás. “Salvador era um barril de pólvora”, conta o antropólogo Oderp Serra. “Os negros fizeram mais de trinta revoluções nesse período. Em toda cidade, é natural que uma enorme massa de excluídos se organize e acabe formando gangues, como os latinos fazem hoje nos Estados Unidos.”

As “maltas” eram bandos de capoeiras que saíam para enfrentar rivais nas datas festivas, diante de bandas militares ou procissões, misturando brincadeira e violência. Os mais perigosos não se expunham tanto, mas eram bons de faca, porrete e navalha. Para o corrupto sistema partidário da época, foi a ferramenta ideal de campanha. Foi assim que os nagoas e os guaiamus, gangues cariocas, se ligaram, respectivamente, ao partido Conservador e ao Liberal, transformando-se no braço armado das disputas políticas do Rio de Janeiro.

Até então, a lei punia a capoeiragem com sentenças de até 300 açoites e o calabouço. O auge da repressão foi em 1890 quando ficou instituída a deportação dos capoeiras do Rio para a ilha de Fernando de Noronha. Na Bahia, as falanges foram desorganizadas pela convocação para a Guerra do Paraguai, em 1864. E as do Recife só acabaram definitivamente em 1912, quando o jogo voltou a ser brincadeira, dando origem ao frevo.

Calça larga e um brinco de ouro

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A figura do malandro capoeirista marcou a cultura brasileira do começo deste século. O folclorista Luís da Câmara Cascudo escreveu em 1916 que “o capoeira era um indivíduo desconfiado e sempre prevenido. Andando nos passeios, ao aproximar-se de uma esquina, tomava imediatamente a direção do meio da rua. Havia os capoeiras de profissão, conhecidos logo à primeira vista pela atitude singular do corpo, pelo andar arrevesado, pelas calças de boca larga, ou pantalona, cobrindo toda a parte anterior do pé, pela argolinha de ouro na orelha, como insígnia de força e valentia, e o nunca esquecido chapéu de banda”.

“Na luta, toda a atenção se concentra no olhar dos contendores, pois um golpe imprevisto, um avanço em falso, uma retirada negativa poderiam dar ganho de causa a um dos dois”, afirma Cascudo.

Na capoeira de Angola, vale mais a astúcia do que a força muscular. Seu mais célebre representante foi Vicente Ferreira Pastinha, baiano do Pelourinho, amigo do artista plástico Caribé, personagem do escritor Jorge Amado e dono de uma filosofia peculiar: “Capoeira é tudo o que a boca come”, costumava dizer. “Ele ensinava a capoeira do dia-a-dia. Estava mais para mais religião que para brutalidade”, afirma Jaime Martins dos Santos, o mestre Curió, que treinou com Pastinha desde os oito anos de idade. “Naquele tempo capoeira era coisa de arruaceiros, da malandragem. Escolhi treinar com ele porque era muito organizado e extremamente dedicado ao aluno”.

O método de Pastinha, ensinado regularmente desde 1910, consiste em golpes desferidos quase que em câmara lenta. O capoeirista fica a maior parte do tempo com o corpo arqueado e sua ginga é de braços soltos, relaxados, porque a tática era se fazer de fraco diante do oponente. “Nossos movimentos não têm pressa de chegar mas, quando chegam, é de forma harmoniosa”, explica mestre Moraes, um angoleiro que se formou com mestre João Grande, o discípulo de Pastinha que hoje dá aulas em Nova York, nos Estados Unidos. “É um diálogo de corpos. Eu venço quando meu parceiro não tem mais respostas para as minhas perguntas.”

Como o crime se tornou esporte

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De 1890 a 1937, a capoeira foi crime previsto pelo Código Penal da República. Simples exercícios na rua davam até seis meses de prisão. Nesse ambiente hostil, as escolas de capoeiragem sobreviviam clandestinas nos subúrbios. Foi para reverter esse quadro que o baiano Manoel dos Reis Machado, um angoleiro forte e valente conhecido como mestre Bimba, inventou uma nova capoeira. Teve o cuidado de tirar a palavra do nome da academia que fundou em 1932 em Salvador, o Centro de Cultura Física e Luta Regional. Filho de um campeão de batuque, uma espécie de luta-livre comum na Bahia do século XIX, juntou técnicas do boxe e do jiu-jítsu e criou um método de ensino. Para fugir de qualquer pista que lembrasse a origem marginalizada da capoeira, mudou alguns movimentos, eliminou a malícia da postura do capoeirista, colocando-o em pé, criou um código de ética rígido que exigia até higiene, estabeleceu o uniforme branco e se meteu até na vida privada dos alunos. “Para treinar com meu pai era preciso provar que estava trabalhando ou mostrar o boletim do colégio”, conta Demerval dos Santos Machado, conhecido como “Formiga” nas rodas de capoeira e organizador da Fundação mestre Bimba ao lado do irmão, mestre Nenéu.

O resultado é que, a partir daí, a capoeira começou a ganhar alunos da classe média branca e, também, a se dividir. Até hoje angoleiros e regionais criticam-se mutuamente, embora se respeitem. Os primeiros se dizem guardiães da tradição, os outros acham que a capoeira “precisa evoluir”. Com isso, Bimba deu ares atléticos ao jogo e atraiu as mulheres, até então excluídas das rodas. “Meu pai falava de uma capoeira chamada ·Maria Doze Homens·, mas era exceção”, diz Nenéu. Mestre “Curió” confirma: “Dos anos 40 para os 50, poucas mulheres jogavam: “·Nega Didi·, ·Maria Homem·, ·Satanás·, ·Maria Pára o Bonde·, ·Calça Rala·”. Embora seja angoleiro e radical defensor da moda antiga, até Curió admite que só quando a capoeira virou esporte é que as rodas ficaram mistas. Ele mesmo tem uma contra-mestre do sexo feminino: “É a ·Jararaca·”, diz.

O toque dá o ritmo e manda recado

Antigamente não havia música de fundo na capoeira. No máximo, quem estava por perto marcava o ritmo com um tambor. Em seu fabuloso levantamento publicado em 1834, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, Jean-Baptiste Debret deixou claro que os tocadores de berimbau tinham a intenção de chamar a atenção dos fregueses para o comércio dos ambulantes. Um certo Henry Koster (inglês que se radicou em Pernambuco, virou senhor de engenho e passou a ser chamado de Henrique Costa) escreveu em suas anotações de 1816 que, de vez em quando, os escravos pediam licença para dançar em frente à senzala e se divertiam ao som de objetos rudes. Um deles era o atabaque. Outro, “um grande arco com uma corda, tendo uma meia quenga de coco no meio ou uma pequena cabaça, amarrada”. Era um instrumento de percussão trazido da África. A palavra vem do quimbundo, mbirimbau.

O que conhecemos hoje é chamado berimbau-de-barriga porque o músico leva e traz a boca da cabaça até o próprio corpo para alterar o som. Segundo o folclorista Édison Carneiro, foi neste século, e na Bahia, que o instrumento se incorporou ao jogo da capoeira, para marcar o ritmo dos praticantes. O que define um jogo rápido ou lento é o toque, um padrão rítmico-melódico tocado e cantado. Segundo o etnógrafo Waldeloir Rego, existem 25 tipos de toque. Entre os mais tradicionais, de autoria desconhecida, estão o Angola (bem lento, para os capoeiras que gingam pertinho do chão), São Bento Pequeno (ou Angola invertida, para golpes em que os oponentes chegam muito perto um do outro), São Bento Grande (para jogos mais ágeis), Cavalaria (usado nos tempos da proibição do jogo para avisar a chegada da polícia), Amazonas (que saúda um mestre visitante) e Banguela (o mais lento da capoeira regional, usado para acalmar os ânimos dos combatentes). O Iuna é um exemplo de toque instrumental, criado por mestre Bimba para o jogo de capoeiras experientes. A maioria tem letra (veja o quadro ao lado) e muitas vezes quem está cantando aproveita para comentar o jogo, improvisando versos que pedem para baixar a agressividade ou que zombam do capoeirista que não é tão bom quanto dizia.

O bom capoeira é aquele que sabe cair

Os golpes da capoeira se dividem entre traumáticos e desequilibrantes. Entre os primeiros estão os movimentos de ataque que envolvem a cabeça, o joelho e, principalmente, os pés. No segundo grupo se incluem rasteiras e tesouras, cujo objetivo é derrubar o adversário. Em nenhum caso é permitido atacar com as mãos, elas servem exclusivamente de apoio. “É um jogo que no início tende para o exercício anaeróbico, com perda de oxigênio”, explica o professor de educacão física Gladson de Oliveira Silva, instrutor de capoeira na Universidade de São Paulo. “Mas, nos exercícios do treino e no desenrolar da ginga, do ritmo, ele se torna aeróbico, com equilíbrio de oxigênio.”

Segundo o professor, rigorosamente todos os movimentos da capoeira trabalham as articulações, a coluna dorsal e lombar e a maioria dos músculos. Por isso, desenvolve a flexibilidade e a tonicidade. Mas ninguém se torna um Arnold Schwarzeneger fazendo capoeira. “São movimentos de soltura, balanceados, na base da contração e descontração, alternadamente. Ela fortalece sem dar massa muscular.”

É óbvio que já não se ensina a luta com facões e navalhas que os capoeiristas da velha guarda encaixavam entre os dedos do pé. Mesmo assim, é preciso tomar alguns cuidados. “Como em qualquer outra arte marcial, deve-se proteger o tórax e a cabeça. Um pontapé nesses pontos pode ser fatal. Por isso o ensino da capoeira deve dar uma consciência corporal, com noções de distância, desenvolvendo reações rápidas. Como diziam os capoeiras antigos: se precisar cair, tem que cair direito”, diz Gladson.

PARA SABER MAIS

Ensaio Sócio-Etnográfico da Capoeira de Angola, Waldeloir do Rego, Itapuã, Salvador, 1968. Capoeira, do engenho à universidade, Gladson de Oliveira Silva, Cepeusp, São Paulo, 1995.

A negrada instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro, Carlos Eugênio Líbano Soares, Secretaria Municipal de Cultura, Rio de Janeiro, 1994.

Capoeira Angola, CD do selo Smithsonian/Folkways Records, Washington, 1996.

De um jeito ou de outro, a tradição fez escola

A capoeira começou a ser ensinada regularmente nos anos 30 e já naquela época estava dividida em duas vertentes. A de Angola, nome que homenageia as tradições dos escravos angolanos, e a Regional, chamada assim por ter nascido na região da Bahia. Veja como identificar as diferenças entre elas.

A manha dos angoleiros

Clima solene

No chamado jogo de Angola os capoeiristas ficam agachados, quietos, esperando sua vez de jogar.

O chão é o limite

Os movimentos dos angoleiros são mais lentos, aparentemente displicentes, rentes ao solo.

Orquestra afinada

Este estilo utiliza uma bateria de três berimbaus, dois pandeiros, um atabaque, um reco-reco e um agogô.

O vigor dos regionais

Roda alegre

Aqui os capoeiras aguardam sua vez em pé, batendo palmas ao ritmo da música.

Soltos no ar

Os regionais mantêm o corpo mais ereto e desferem golpes mais velozes, com maior quantidade de saltos.

Som minimalista

O fundo musical deste estilo precisa apenas de um berimbau e dois pandeiros.

No batizado, o capoeirista ganha apelido

No batizado, o capoeirista ganha apelido

O capoeira sempre é chamado por um apelido que lhe é dado na roda. Foi assim que ficaram famosos os mestres João Grande, João Pequeno, Cobrinha Verde, Camisa e Canjiquinha. Esse nome de guerra geralmente é dado na ocasião do batizado, momento em que o aspirante jogará pra valer pela primeira vez. Segundo Aristeu Oliveira dos Santos, o paranaense Mestrinho, a ocasião serve para testar os conhecimentos de quem está sendo batizado. O ritual foi inventado por Mestre Bimba para marcar o fim da etapa de iniciação. Na época, o criador da capoeira Regional entregava um lenço ao seu discípulo, baseado no costume dos antigos valentões de Salvador que protegiam o pescoço com um pedaço de seda para que a navalha do inimigo escorregasse. Esse costume, influenciado pelas faixas coloridas das artes marciais orientais, inspirou os cordéis da capoeira. Os ortodoxos não aceitam o sistema de graduação. Acreditam que alguém só pode ser chamado de mestre quando sua vocação de educador e sua sabedoria de conselhelro, além da habilidade, “aparecem naturalmente”. Mas muitas academias adotaram o sistema hierárquico montado pela Confederação Brasileira de Capoeira, com a combinação das cores da bandeira do Brasil.

Pistas de que a ginga cresceu na cidade

Pistas de que a ginga cresceu na cidade

Em 1830 o pintor alemão Johann Moritz Rugendas desenhou uma cena chamada Capoeira que dá várias pistas sobre a evolução do jogo. O cenário 1. e a presença de vendedores ambulantes 2. indica que estamos na cidade. Há dois combatentes 3. em movimento, armando seus golpes. Além de um tambor 4. marcando o ritmo, forma-se uma roda em torno dos capoeiras 5., que ao mesmo tempo é um escudo protetor dos olhos da polícia e delimita o terreno onde o jogo deve acontecer.

Festejos que vieram da luta

A vocação da capoeira para a brincadeira aparece em três outras formas de folguedos ligados a ela pela origem das danças africanas. O samba de roda 1., que se forma na mesma estrutura da capoeiragem e usa seqüências musicais parecidas. O maculelê 2. também é praticado no meio de uma roda, com os oponentes batendo bastões de madeira. O frevo 3. nasceu quando a polícia pernambucana desbaratou as gangues de capoeiras que chutavam e abriam caminho para as bandas militares, furando o bumbo dos outros com o que viria a se tornar a sombrinha do carnaval de Recife.

A mistura dos grupos africanos

Os escravos negros começaram a ser desembarcados no Brasil por volta de 1548 e, nos três séculos seguintes, seriam predominantemente do tronco linguístico banto, do qual faz parte a língua quimbundo. Esse grupo englobava angolas, benguelas, moçambiques, cabindas e congos. “Eram povos de pequenos reinos, com um razoável domínio de técnicas agrícolas e cuja grande característica era possuir uma visão muito plástica e imaginosa da vida, com grande capacidade de adaptação cultural”, explica o antropólogo Oderp Serra. “No Brasil, esses grupos étnicos, antes rivais, se uniram pela escravidão formando uma cultura africana que plantou bases muito fortes na cultura brasileira, de dança, música e técnicas de corpo como a capoeira.”

Descriminalização por decreto presidencial

Depois de ver uma exibição de capoeira no Rio de Janeiro, em 1937, o presidente Getúlio Vargas descriminalizou-a e decretou ser aquele o “esporte autenticamente brasileiro”. Até então, os capoeiristas podiam pegar de dois meses a três anos de prisão, com pena de deportação no caso de estrangeiros.

Entenda como se comunicam os camaradas

A linguagem dos capoeiras é cheia de gírias e códigos. “Esquenta-banho” era a senha que mestre Bimba dava a seus alunos para um jogo rápido, apressado. A expressão nasceu após as aulas, quando Bimba obrigava os alunos a tomar um banho frio, ligeiro, porque a caixa d·água da academia era pequena. Veja outros casos:

Abadá – Uniforme branco. Também é o estilo criado por mestre Camisa, do Rio de Janeiro. Era o nome que se dava ao blusão rústico usado pelos escravos.

Adufe – Pandeiro quadrado, usado há mais de cem anos. A palavra vem do árabe ad-duff.

Camará – Uma corruptela de camarada, companheiro, parceiro de jogo e de roda.

Crocodilagem – Jogo duro que submete o capoeira a uma situação de inferioridade ou deslealdade.

Comprar o jogo – Pedir para substituir um dos capoeiras que estão no centro da roda.

Galopantes – Tapas, gestos proibidos nos treinos e na capoeira de competição.

Ginga, gingado – Balanço do corpo de um lado para o outro, ritmado, que imprime cadência ao jogo. Alguns estudiosos acham que é uma influência dos marinheiros que conviviam com capoeiras nos portos, pois a palavra também diz respeito ao movimento do remo.

Mandingueiro – Capoeirista angoleiro, cheio de truques, que joga com malícia, enganando o adversário. Originalmente a palavra se refere a um grupo de negros africanos feiticeiros.

Negaças – Sucessão de movimentos para experimentar a guarda do oponente.

Ticum – Faca de madeira.

Vadiar – Jogar capoeira por prazer, por divertimento. Na época da escravidão, a vadiação era o lazer das horas de descanso.

Os segredos do instrumento que gemia na senzala

Trazido da África pelos angolanos, o berimbau se tornou a grande estrela da roda de capoeira. Sem ele ninguém ginga, ninguém joga.

Efeitos especiais

O caxixi é uma pequena cesta de palha, com fundo de couro, usada como chocalho. Tem de 10 a 15 centímetros de altura, cerca de 6 centímetros de diâmetro na base e um recheio de sementes, pedrinhas ou pequenos búzios. O dobrão, nome tomado da moeda de 40 réis, é uma peça de cobre com aproximadamente 5 centímetros de diâmetro. E a baqueta, ou vaqueta, é uma vara de madeira com cerca de 40 centímetros de comprimento.

Caixa acústica

A cabaça é a caixa de ressonância. Feita com o fruto da cabaceira, árvore comum no Norte e no Nordeste, pode ser oval (o coité) ou ter duas esferas ligadas. Depois de seca e cortada, tiram-se as sementes antes de ser lixada.

Do cipó ao aço

A corda já foi um cipó, um fio de latão, um arame de cerca e, mais recentemente, fios de aço retirados de pneus. O mais comum, hoje, é usar o aço vendido em carretéis.

Firme e forte

O arco vem do caule da biriba, arbusto comum no Nordeste, cuja madeira é fácil de envergar. A casca se solta facilmente, como a da mandioca. Para conservar melhor, depois de lixá-lo alguns mestres passam sebo de boi, envernizam ou pintam.

É obrigatório saber tocar e cantar

Entre os cânticos entoados na capoeira há uma ladainha, espécie de oração que abre a roda, e o “corrido”, tipo de samba sem refrão, com imagens do cotidiano. Todo capoeira deve aprender a tocá-los e cantá-los. Veja alguns exemplos.

Ladainha cantada por mestre João Pequeno, angoleiro discípulo de mestre Pastinha:

“Iê, quando eu cheguei aqui

Quando eu aqui cheguei

A todos eu vim louvar

Vim louvar a Deus primeiro

Morador deste lugar

Agora eu tô cantando

Cantando pra mim louvou

Tô louvando a Jesus Cristo

Tô louvando a Jesus Cristo

Porque nos abençoô

Tô louvando e tô rogando

Ao Pai que nos criou

Abençoe esta cidade

Abençoe esta cidade

Com todos seus moradores

E na roda de capoeira

Abençoe os jogadores

Camaradinho,

É mandingueiro!

Iê, é mandingueiro, camará!

Corrido cantado por mestre Bimba na capoeira Regional:

“Capenga ontem teve aqui

Capenga ontem teve aqui

Deu dois mil réis a papai

Deu três mil réis a mamãe

Café e açúcar a vovó

Deu dois vinténs a mim

Sim Senhor, meu camarada

Quando eu entrar, você entra

Quando eu sair, você sai

Passar bem, passar mal

Mas tudo no mundo é passar!

Água de beber

Iê, água de beber, camará

Vou dizer a meu senhor

Que a manteiga derramou

Olha a manteiga do patrão

Mas caiu n·água e se molhou

Quem se defende já prepara o ataque

Aú e cabeçada

Enquanto um capoeira avança com a cabeça, o outro desvia fazendo o aú, movimento parecido com a estrela da ginástica de solo.

Balão de lado

Outro golpe regional: um capoeira joga o outro para atrás num movimento lateral, agarrado à sua cintura. Também é chamado de cintura desprezada.

Bênção e negativa

O primeiro é um golpe aplicado com o calcanhar, de frente. A defesa é feita com apoio das mãos, uma perna esticada e a outra flexionada.

Martelo e rasteira

O ataque é feito com um giro da perna para atingir o adversário com o peito do pé. Na defesa, o capoeira se abaixa e prepara o desequilíbrio de quem ataca.

Ginga

O balanço do corpo para a direita e para a esquerda, e de trás para a frente, faz os capoeiras se prepararem para os golpes.

Tesoura de costas

O capoeira que se abaixou para se defender cruza as pernas em torno de uma perna de quem ataca, enquanto está de costas para o adversário.

Arqueado

Típico da capoeira Regional, neste movimento um capoeira joga o outro para trás apoiando-se em seus dois joelhos.

Cocorinha

A melhor defesa contra a meia-lua de compasso é a cocorinha. Nela o oponente se agacha, levanta o braço para proteger o rosto e apoia a outra mão no chão. Da cocorinha, o defensor pode passar a atacante executando, por exemplo, uma cabeçada (veja na página anterior).

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