Após ver “a cara da morte”, o exagerado Cazuza encontrou a maturidade como artista. Sem abandonar a atitude do rock, o cantor invadiu o primeiro time da Música Popular Brasileira. A diretora Sandra Werneck lembra o momento de transcendência musical de Cazuza e tudo o que aprendeu com ele
Eu sempre digo que o Cazuza era uma pessoa múltipla. Tinha um lado rebelde, um lado doce, um lado amigo bem forte (ele fazia de tudo para agradar às pessoas que estavam à sua volta) e também uma face transgressora muito aguda. Era uma pessoa especial, que olhava o cotidiano e dele extraía poesia de uma maneira incrível. Isso sem falar no grande intérprete que foi. Nos anos 80, você tem na figura do Cazuza e do Renato Russo as pessoas mais importantes para a música brasileira. Eles falaram do país, da política e do amor de uma forma incrível. A música dos dois sempre será atual.
Em Cazuza – O Tempo Não Pára, o momento mais marcante e emocionante foi quando encenamos o último show da turnê do álbum Ideologia, em outubro de 1988, que viria a se transformar no disco ao vivo, homônimo do filme. Aquele instante tinha muita representatividade. O Daniel (de Oliveira, ator que interpretou Cazuza) não deixou ninguém vê-lo antes de rodarmos a cena, uma das últimas do longa. Ele chegou ao set e foi direto para o camarim. Nesse dia, pensamos em prestar uma homenagem e chamamos o Barão Vermelho para assistir ao show – essa cena na realidade não aconteceu na vida real, mas achamos importante passar isso no filme. Chamamos a Lucinha (Araújo, mãe do Cazuza) e o João (Araújo, pai do Cazuza), que não pôde comparecer. O clima estava muito forte. Quando o Daniel apareceu no palco, vestido exatamente como o Cazuza na época, todo mundo começou a chorar. Ali o Cazuza desceu dos céus, o Daniel estava muito parecido. O pessoal do set, os convidados, os atores, todos ficaram muito emocionados nesse dia.
Mais MPB
Na época da mudança para um som mais meigo e mais próximo à MPB – de figuras que o apadrinharam, como Caetano e Ney Matogrosso –, no álbum Ideologia (1987), muita gente estranhou. Ela deveu-se ao fato de antes ele ser um meninão, um garotão da praia de Ipanema. Nessa época, talvez, ele tenha ficado mais apaixonado, tenha encontrado um grande amor. São diferentes momentos de vida que acabaram influenciando-o.
Mas o fato é que Cazuza nasceu com a MPB dentro da casa dele. Secos & Molhados, Gal Costa, Caetano, Gil, muita gente passou pela casa do João Araújo (diretor da Som Livre na época) na década de 70. Isso quando o Cazuza era apenas um moleque. Como ele ouviu muito Lupicínio Rodrigues, Cartola, sempre teve um pé nesse estilo. Foi um processo natural, nada foi feito de propósito. O Cazuza é um romântico, mesmo no rock’n’roll. Isso eu me dei conta quando terminei o filme.
Quando soube que era soropositivo, em abril de 1987, Cazuza encarou a doença com muita coragem. Pouca gente conseguiu se mostrar e dar a cara pra bater como ele no período final da sua vida. Ele continuou compondo, continuou vendo os amigos, indo aos bares, fazendo shows e ainda ganhou e foi receber o Prêmio Sharp em 1998 (de melhor cantor de pop rock; pela melhor música, por “Brasil”; e de melhor álbum, por Ideologia). Mesmo andando de cadeiras de rodas, com dificuldades para falar, se locomover, o Cazuza nunca desistiu da vida.
Acho que tudo isso está ligado à sua criação. Graças a Deus, os pais de Cazuza o amavam muito. Eram liberais num certo sentido, mas nunca abandonaram o filho, sempre estiveram a seu lado impulsionando a carreira. Talvez, se ele tivesse tido pais mais caretas, mais castradores, ele não teria sido quem foi. Uma vez, li um artigo que explicava a vida de personalidades como Oscar Wilde, Janis Joplin e Ernest Hemingway. Foram pessoas que extraíram o máximo da vida e não viveram muito tempo, assim como o Cazuza, que morreu aos 32 anos. Acho que é uma opção de cada ser humano escolher o que mais lhe convém. Tem gente que prefere trabalhar de funcionário público, levar uma vida supermetódica e morrer aos 90 anos – é também uma opção. O Cazuza, como ele mesmo dizia, preferiu “viver dez anos a 1 000 por hora a mil anos a 10 por hora.”
Passado e futuro
Na cena em que ele vai fazer seu primeiro ensaio no Barão Vermelho (em 1981) e começa a cantar “O Mundo É um Moinho”, do Cartola, pra desespero do Frejat, o Cazuza não sabia direito o que queria ainda. O Barão teve um grande mérito de ver naquele menino uma possibilidade. A banda doou muito pro Cazuza assim como o Cazuza doou muito pro Barão. Foi um casamento perfeito durante os cinco anos em que eles ficaram juntos.
É muito difícil saber o que ele estaria fazendo hoje em dia, caso não tivesse pego a doença. Esse é um exercício de adivinhação, mas você poderia esperar qualquer coisa do Cazuza. Ele poderia tocar bossa nova, MPB, como também encontrar um grupo de rock mais pesado e começar a compor com eles. O Cazuza era imprevisível.
Sandra Werneck é diretorora da cinebiografia Cazuza – O Tempo Não Pára.
O personagem: Ezequiel Neves
Mais do que compor, escrever ou produzir, Ezequiel Neves sempre viveu intensamente o estilo de vida rock’n’roll. Ao se envolver com o gênero, dispensou qualquer tratamento acadêmico – muitas vezes assinava suas matérias no jornal Rolling Stone como Zeca Jagger ou Zeca Rotten. Era o “cara que entendia de rock”, nas palavras do editor Luiz Carlos Maciel, e pode não ter sido a fonte mais fidedigna da imprensa alternativa, mas seguramente era a mais divertida. Nascido em Belo Horizonte (MG), Ezequiel Neves viajou para Nova York em setembro de 1969, quando trabalhava para o Jornal da Tarde, um mês após Woodstock. A cidade tragava as fragrâncias hippies e Zeca aproveitou para dar seu pega. Mais tarde, trabalhou nas revistas Pop e Playboy, mas manteve “negócios” no JT. “Gastava tudo em fumo e vendia. Meus fregueses eram da redação.” Principal agitador do rock nacional em seus anos de chumbo, Neves também foi importante nos anos 80. Sua maior aposta foi o Barão Vermelho. Ele convenceu a Som Livre a contratar a banda, liderada por Cazuza. As relações que mantinha com Rita Lee azedaram na tigela do ciúme, e Zeca seguiu com fidelidade canina a Cazuza (e também ao Barão), produzindo, compondo e, especialmente, palpitando.
Depois da morte de Cazuza, outro anjo caído apareceu em sua vida: Cássia Eller, de quem produziu o disco de 1994.