Michael Kepp*
Perdoe-me pela pergunta tabu, mas o que pode explicar o endeusamento epidêmico de Chico Buarque? Eu não pergunto isso, como minha esposa brasileira afirma, por causa de uma inveja masculina típica. Claro que essa inveja existe e atinge todos os homens daqui (forçados a reconhecer a verdade da frase de Tutty Vasquez: nossas mulheres só são fiéis porque ainda não foram abordadas pelo Chico). Mas o que me intriga é a sedução que esse decifrador da alma feminina também exerce sobre os homens.
De que outro jeito podemos justificar a homenagem de 18 páginas que O Globo publicou em junho, pelos 60 anos do compositor? Isso seria espaço demais para o aniversário de qualquer um. Nem mesmo uma retrospectiva de todas as frescuras de João Gilberto ou uma coletânea das controvérsias envolvendo Caetano Veloso precisariam de tantas páginas. Outros jornais deram ao sexagenário menos espaço, mas o mesmo tratamento de deus grego. Em O Estado de S. Paulo, um jogador de futebol profissional que enfrentou o time de Chico disse que ele “é bom até quando erra”. E, no Jornal do Brasil, o crítico musical Tárik de Souza escreveu que “a força de sua obra é de uma onipresença”. Alguma semelhança com “o Todo-poderoso”?
Porque deuses são tão notoriamente roubadores de cena, a breve presença de Chico na Festa Literária Internacional de Parati, em julho, criou uma comoção que ofuscou autores com muito mais talento e prestígio. Ancelmo Gois vociferou em O Globo: “Paul Auster que me desculpe, mas a estrela da Flip foi Chico Buarque”, que ele batizou como “nosso herói”.
Apesar de Chico ser, como disse Nelson Rodrigues, a “única unanimidade nacional”, o público colocou Pelé e Ayrton Senna no mesmo topo da montanha mítica. Outro colunista de O Estado de S. Paulo, Daniel Piza, escreveu recentemente, sobre “o rei”, que “é difícil encontrar um campo da criatividade humana que tenha um caso de superioridade tão evidente”. Como é que ficam, então, Leonardo da Vinci, Shakespeare ou mesmo Michael Jordan?
Por que os brasileiros tratam seus melhores artistas e atletas como deuses? Talvez porque lhes faltem heróis políticos. Brasileiros ridicularizam seus políticos, os vêem como incompetentes ou corruptos. Nem os fundadores do país escapam. Dom João VI é lembrado como glutão e negligente. E reza a lenda que o igualmente sem modos dom Pedro I deu sua declaração de “independência ou morte” durante um descanso na estrada entre São Paulo e Santos, onde teve uma séria diarréia.
Nos Estados Unidos, meu país de origem, são os fundadores do país e outros heróis políticos que são tratados como ícones. Os americanos colocam os rostos deles nas cédulas e moedas, lembram-se deles em feriados nacionais e os imortalizam com monumentos imponentes e esculturas em montanhas.
Fazendo isso, os americanos endeusam não os homens, mas os princípios que eles defenderam ou, no caso de Lincoln e Martin Luther King, pelos quais morreram. Já o endeusamento de Chico é baseado não em uma bandeira que ele levantou, mas em uma conjuntura de qualidades pessoais em torno das quais os brasileiros criaram um culto a sua personalidade. Em geral, quando supervalorizamos alguém só por qualidades pessoais estamos reduzindo nosso próprio valor. Assim, ao colocar Chico em um pedestal tão alto, os brasileiros diminuem a si mesmos.
A recusa de Chico de se “caetanear”, de ser um pavão da mídia, só intensifica essa idolatria. E a aura que envolve esse ídolo o tornou tão intocável que criticá-lo seria um crime, assim como recusar a ele o direito a um calcanhar- de-aquiles seria uma injustiça.
É por isso que, mesmo desapontada, a típica brasileira até perdoaria Chico por namorar alguém que ela considerasse indigna dele (não importa quem fosse a sortuda). Como minha esposa é uma dessas mulheres, eu fiquei desapontado que a recente overdose de Chico na imprensa não tenha revelado coisa nenhuma sobre sua vida amorosa atual. Tal furo poderia, pelo menos, fazer da inveja gerada pelo Zeus brasileiro uma emoção que eu e minha mulher pudéssemos compartilhar mais igualmente.
*Jornalista americano, autor de Sonhando com Sotaque – Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro (Record)
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