Esta semana, a mais antiga série de ficção científica do mundo anunciou uma decisão histórica: pela primeira vez, Doctor Who será protagonizado por uma mulher, Jodie Whittaker. Ela assume como a 13ª encarnação do Doutor – ou melhor, Doutora.
Muita gente amou (e muita gente odiou), mas a verdade é que Jodie não é exatamente a primeira mulher a interpretar o viajante no tempo. Há 18 anos, Joanna Lumley foi a pioneira, em um episódio chamado “A Maldição da Morte Fatal”, feito para a Comic Relief, organização britânica de caridade.
Para quem assiste à esquete, fica claro que o episódio não é exatamente oficial – nem é considerado na linha do tempo da história. Até porque, só nesses minutos, o Doctor usa todas as suas regenerações, se transformando no Mr. Bean, em Richard E. Grant e no Hugh Grant. Todo o episódio parece um grande ponto de interrogação, porque se trata de uma paródia. Ainda assim, foi o primeiro capítulo oficialmente encomendado pela BBC durante a lacuna de 1989 a 2005 que a série passou. E a esquete foi escrita por ninguém menos que Steven Moffat, que encerra em 2017 quase uma década de comando dos roteiros e produção de Doctor Who.
Ainda assim, é no final da paródia que o Doctor se regenera, pela primeira vez, em uma mulher. E o resultado não foi de dar orgulho: piadas bobas, estereótipos e a impressão de que as mulheres só estão na série para serem pares românticos de alguém. É o caso tanto da companion Emma, que é noiva do Doctor e motivo pelo qual ele vai se aposentar, como da própria Joanna – que, por coincidência, também é a 13ª Doctor na esquete. Ela aparece em uma regeneração extra, um “presente” do Universo, nos últimos minutos.
Só duas coisas acontecem. Primeiro, Emma desiste de casar com o Doctor porque ele virou mulher. Uma vez “solteira”, a Doutora olha para o Master (que é o vilão do episódio, interpretado pelo ótimo Jonathan Pryce, de Game of Thrones, aliás), arqui-inimigo jurado do Doctor, e diz que “ele era muito mais atraente do que ela se lembrava”; os dois trocam olhares e saem de mãos dadas. Depois de oito Doctors homens, a primeira encarnação mulher só existe para fazer piadas de peitos e participar de bizarros relacionamentos.
Compreensível em 1999, mas muito, muito longe do momento icônico que o anúncio de Jodie Whittaker rapidamente se tornou. A atriz vem de bons papéis em Black Mirror e Broadchurch, drama criado pelo novo produtor à frente de Doctor Who, Chris Chibnall, que também foi estrelado por David Tennant, o 10º Doctor.
Exatamente por não ter sido a primeira mulher a interpretar o Doctor Who, Jodie adiciona mais uma a sua grande lista de responsabilidades. Ela tem a tarefa de reviver uma série para a qual a idade está pesando – hoje, Doctor Who tem só metade da audiência que tinha em 2005. E as possibilidades abertas com a escolha da atriz são muito interessantes: imagine o Doctor sabe-tudo precisando se virar numa viagem ao século 10 como mulher, com certos obstáculos a ultrapassar que ele nunca teve antes, mesmo em 54 anos de história.
Mas sua última responsabilidade vem diretamente de encontro à esquete de 1999: é preciso criar uma personagem que faça jus não só ao riquíssimo histórico da série, mas também às mulheres que não se sentiram representadas pelos breves momentos de Joanna. Ou seja, provavelmente, quase todas.