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Entre o museu e o outdoor

As intervenções urbanas questionam o espaço público, brigam entre si e provocam a pergunta: a arte tem alguma utilidade prática?

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 31 jul 2005, 22h00

Texto Leandro Pereira Beguoci

Um outdoor está na rua para vender um produto. Como são muitos, você vê mesmo quando não quer. Já o que está em um museu você só vê se pagar. E aparentemente, um outdoor não tem nada a ver com um museu. Só aparentemente, desde o surgimento de uma idéia que pegou a arte e a jogou na rua, como um outdoor. O nome dessa idéia é intervenção urbana e sobre ela pairam tantas divergências que é melhor a gente começar com uma história.

Nos anos 70, 3 estudantes de artes plásticas de São Paulo queriam protestar contra a ditadura no Brasil. Mas eles não queriam só fazer um protesto. Eles também queriam se divertir. Hudinilson Jr., Mário Ramiro e Rafael França decidiram encapuzar estátuas. Não sobrou ninguém: dom Pedro I, anjos, bustos de padres, engenheiros, militares. Todo mundo que, segundo a opinião do grupo, era identificado com o regime foi encapuzado. Os 3 passaram a manhã seguinte ao telefone, ligando para os jornais. “Cada um inventava uma história e se passava por um advogado indignado, uma vizinha brava, uma velha assustada. Saiu em todos os jornais”, diz Hudinilson Jr.

O sucesso da primeira intervenção levou a uma segunda: eles “lacraram” a porta das principais casas de exposição de arte de São Paulo usando fita crepe. Embaixo da porta, ia um manifesto que dizia: “O que está dentro fica, o que está fora se expande”. A essa altura, o grupo já tinha adotado o nome de 3NÓS3 e tinha conseguido atormentar os seus 2 principais inimigos: os militares e os donos de galerias de artes plásticas.

O que são as intervenções

A história do grupo 3NÓS3 deixa claros 4 pontos fundamentais sobre intervenções urbanas. O primeiro é que, como um outdoor, elas estão na rua, um espaço público, e são feitas para todo mundo ver. O segundo é que, como a arte do museu, foram criadas para expressar o ponto de vista e os sentimentos de uma pessoa – ou de um grupo. O terceiro é a intenção de protestar contra um problema: o governo, a poluição visual, a correria do cotidiano, por exemplo. Mas é o último ponto que realmente separa as intervenções urbanas de qualquer outro tipo de arte: uma intervenção exige uma bela dose de bom humor, provocação e irreverência.

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Fora isso, qualquer definição do que seja uma intervenção urbana vira um passo tão ousado quanto definir o que é e o que não é arte. Para Maria Angélica Melendi, professora da UFMG e pesquisadora do assunto, as intervenções são uma reação contra a degradação do espaço público. Nelson Brissac Peixoto, autor do livro Intervenções Urbanas – Arte/Cidade e um dos coordenadores do projeto homônimo, que realiza intervenções em São Paulo , concorda. “Nossa intenção é provocar as pessoas para que elas percebam que a cidade não é apenas um lugar para ser explorado, é um lugar para ser vivido”, diz. Assim, intervenções urbanas tornaram-se uma espécie de manifesto contra o excesso de placas de publicidade, a especulação imobiliária, a falta de áreas verdes.

Os artistas também fazem de suas obras um manifesto contra os museus e as galerias. É comum que elas tragam uma crítica ácida e contumaz contra a forma como a arte é exposta e a maneira como as pessoas têm – ou não têm – acesso a elas. Muitos dos grupos que fazem intervenção urbana relutam em receber patrocínio e se orgulham em dizer que passam longe dos museus.

O Guggenheim, um museu com filiais em Nova York e Las Vegas (EUA), Bilbao (Espanha), Veneza (Itália) e Berlim (Alemanha), é considerado uma espécie de “McDonald’s” dos museus e se tornou inimigo público número 1 dessa galera. Túlio Tavares, artista de São Paulo e criador do coletivo Nova Pasta, um grupo que se especializou em fazer intervenções em favelas e ocupações de sem-teto, explica a rejeição. “A nossa arte não é para colecionador, é para todas as pessoas.”

De onde surgiu a idéia?

As intervenções urbanas são uma invenção dos anos 60. Assim, são filhotes dos protestos por direitos iguais, das manifestações contra ditaduras e guerras, do tropicalismo e do rock. Antes dos anos 60, porém, já existiam sementes das intervenções. O mais famoso exemplo de protesto por meio da arte veio do francês Marcel Duchamp, o artista que mandou uma privada, uma roda de bicicleta e um quadro da Monalisa com barba e bigodinho para um museu. Ele foi um dos principais expoentes do dadaísmo, movimento do início do século 20 que ironizava a arte e os artistas que se levavam a sério demais. Apesar de não terem ligação direta, intervenções devem boa parte de sua irreverência aos dadaístas.

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No Brasil, um dos que mais chegaram perto de Duchamp foi o arquiteto Flávio de Carvalho. Em 1956, ele foi passear de saia pelas ruas dominadas por ternos, gravatas e espartilhos. A idéia era criticar a falta de adaptação aos trópicos das vestimentas dos paulistanos. Porém, nem Duchamp nem Flávio de Carvalho podem ser considerados autores de intervenções urbanas: a preocupação de Duchamp era criticar o conceito de arte, a de Flávio de Carvalho, chamar a atenção para costumes fora de lugar. Já a preocupação dos interventores de 40 anos para cá é com o espaço urbano, com a degradação sofrida pelo lugar onde as pessoas convivem e interagem.

Por isso, no Brasil, as primeiras intervenções com a cara do que se conhece hoje levam a assinatura de Hélio Oiticica. Em 1965, o artista colocou seus “Parangolés”(um conjunto de bandeiras, roupas coloridas e tendas onde as pessoas dançam, fazem música e poesia) na frente do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Ele queria protestar porque o MAM tinha expulsado músicos da Escola de Samba Mangueira de dentro do museu.

As polêmicas

Hoje, a principal forma pela qual as intervenções urbanas crescem e se multiplicam são os coletivos, grupos de artistas como o 3NÓS3. Eles não têm número de participantes definido, não têm o compromisso de durar para sempre e mudam de acordo com as pessoas que fazem parte deles. “Um artista pode pertencer a um coletivo em função de um projeto e no projeto seguinte juntar-se a outro coletivo para a realização de um outro projeto”, diz a professora de Teoria da Cultura da UFRJ Heloisa Buarque de Hollanda, que estuda o assunto. Os coletivos são a prova de que não há uma ideologia sólida e definitiva por trás das intervenções urbanas e que são as afinidades momentâneas que unem os grupos. Assim, é comum haver divergências ideológicas acirradas entre os vários artistas envolvidos em intervenções urbanas. Os alternativos acusam os mais intelectualizados de não fazerem uma verdadeira intervenção, já que pedem permissão quando vão fazer algum projeto. Os intelectuais devolvem a pancada e chamam os alternativos de amadores. E os 2 batem em projetos como a Cow Parade (Parada das Vacas), que chega a São Paulo em setembro e é patrocinada por uma grande multinacional.

Os críticos dizem que, embora as vacas sejam pintadas por artistas locais, o fato de elas já chegarem prontas ao país bate de frente com a idéia de criar obras para um lugar específico, com o objetivo de chamar a atenção para determinada situação. Outro problema apontado por eles é que a Cow Parade se encaixa perfeitamente no sistema clássico das galerias de arte: depois de exposta, a obra é levada a leilão, adquirida por um colecionador que, por sua vez, a tira de circulação e a leva para ser apreciada apenas por ele e pelo seu grupo de amigos. Os organizadores do evento discordam das críticas e afirmam que, como toda intervenção urbana, a Cow Parade traz arte para a rua, tornando o acesso a ela bem democrático. “As vacas mexem com a cidade e chocam as pessoas com um toque de humor inusitado”, diz Ester Krivkin, organizadora da exposição no Brasil. No final das contas, a briga entre esses artistas é para ver quem faz mais diferença no caos das cidades: quem pende mais para o outdoor do que para o museu.

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Cheias de personalidade

Conheça algumas intervenções urbanasque já rolaram pelo mundo e entenda quala proposta de artistas com um único objetivo em comum: levar a arte para a rua

1. A interativa

Quem: O artista plástico paulistano Alexandre Órion.

A obra: Metabiótica 11 é parte do projeto Metabiótica, que começou em novembro de 2002 e conta com 16 fotos de pessoas interagindo com grafismos espalhados pela cidade de São Paulo.

O que significa: As fotos, além de propor uma discussão sobre aquele espaço específico da cidade, querem promover a integração entre as pessoas que circulam pela cidade e esse espaço.

2. A nonsense

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Quem: Grupo Poro.

A obra: Em 2004, o coletivo de Belo Horizonte colou letras vinílicas pela cidade como se elas tivessem escorrendo dos escoadouros de muros e calçadas.

O que significa: O objetivo é devolver a cor a áreas abandonadas e cinzentas. Uma de suas obras mais famosas foi “plantar” um canteiro de flores de plástico.

3. A politizada

Quem: Grupo de Arte Callejero (andarilho, em espanhol).

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A obra: Em 1999, o grupo criou 58 placas “de trânsito” em homenagem às vítimas do terrorismo de Estado durante a ditadura argentina.

O que significa: Nascido em 1997, em Buenos Aires, o GAC une ideais artísticos e políticos nos trabalhos. Muitos denunciam as violências cometidas durante os “anos de chumbo” no país.

4. A irônica

Quem: Grupo Contra Filé.

A obra: Uma catraca de ônibus foi colocada no largo do Arouche, em São Paulo, em 2004. Como um busto, faz o papel de escultura.

O que significa: As barreiras a que todas as pessoas estão submetidas no seu dia-a-dia. A intervenção do grupo foi tema de redação da Fuvest, o vestibular que seleciona alunos para a USP.

5. A hippie

Quem: O artista inglês Andy Goldsworthy.

A obra: Esculturas no meio de reservas florestais de vários países. Uma de suas especialidades é colocar rochas coloridas no meio de áreas cinzentas. As obras duram pouco e ele fotografa tudo o que faz.

O que significa: Andy intervém para interagir com a natureza, para sentir-se parte dela.

6. A famosa

Quem: Keith Haring.

A obra: O pioneiro do grafite nos EUA pintava em locais públicos, como o Muro de Berlim (foto) ou o metrô de Nova York. Seus desenhos misturavam figuras de bichos com imagens que pareciam tiradas da TV.

O que significa: Keith, um dos principais artistas urbanos do mundo, traduziu as inquietações das pessoas comuns, como a crise de identidade nas metrópoles.

7. A abonada

Quem: O casal americano Christo Javacheff e Jeanne-Claude.

A obra: Em 1980, cobriram uma série de ilhotas em Miami. Este ano, construíram portões de vinil (The Gates) no Central Park, de NY.

O que significa: O objetivo é fazer uma arte monumental e que seja acessível para as pessoas. Ou seja: gratuita. O casal é milionário e faz tudo com o próprio dinheiro.

8. A poética

Quem: Alex Flemming.

A obra: 22 retratos de pessoas anônimas, cobertos por poesias brasileiras na estação de metrô Sumaré, em São Paulo.

O que significa: Os rostos mostram a diversidade étnica do país e os textos, sem separação de sílabas ou pontuação, exigem que o observador lhes dedique algum tempo, artigo precioso no meio da correria da metrópole.

9. A megalomníaca

Quem: O escultor sueco Claes Oldenburg.

A obra: A especialidade deste sueco que vive nos EUA é fazer esculturas gigantes e estilizadas de objetos. Torneiras e prendedores já ganharam versões gigantes pelas suas mãos.

O que significa: A intenção, como a de Christo e Jeanne-Claude, é levar uma arte grandiosa para o maior número possível de pessoas.

10. A pop

Quem: O escultor suíço Pascal Knapp idealizou o projeto que conta com a participação de artistas locais das cidades em que a exposição acontece.

A obra: Nasceu nas ruas de Chicago, em 1999. Hoje, Knapp licencia a marca e gerencia as exposições que já aconteceram em 24 cidades do mundo.

O que significa: A idéia é ser global (todas as cidades usam o mesmo modelo de vaca) e, ao mesmo tempo, chegar perto dos habitantes da cidade (os artistas que pintam são locais e nem sempre estão ligados ao circuito das artes plásticas – há arquitetos, cartunistas, grafiteiros, etc).

Por que vacas?

“Vacas têm a superfície, a estrutura óssea, a altura e o comprimento perfeitos para servirem de tela. Nenhum outro animal pode produzir o mesmo nível de façanha artística evidente nesse muuuuuuuuuseu.”

Pascal Knapp, criador da Cow Parade

Para saber mais

Intervenções Urbanas – Arte/Cidade, Nelson Brissac Peixoto, Ed. Senac, 2002

saopaulopt.cowparade.com – Site oficial da exposição Cow Parade em São Paulo

https://www.parachute.ca – Revista Parachute

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