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Esta é a pintura perfeita na opinião de (quase) toda a humanidade

Nos anos 1990, os artistas soviéticos Komar e Melamid fizeram uma pesquisa de opinião pública em 15 países para descobrir qual seria a obra de arte ideal. Do Quênia à Dinamarca, os resultados foram estranhamente parecidos.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
4 ago 2024, 12h00

A pintura mais democrática da história da arte ocidental começou a ser produzida na manhã de 10 de outubro de 1993, em uma central telefônica do estado americano de Indiana.

Nada de ateliês bagunçados nem pincéis sujos: os responsáveis eram os impassíveis funcionários da Marttila & Kiley Inc., uma empresa sediada em Boston que organiza pesquisas de opinião pública sob encomenda. Tipo um Datafolha gringo. 

Ao longo dos dias que se seguiram, 1.001 americanos selecionados aleatoriamente dedicaram em média 24 minutos a responder um questionário de 102 perguntas sobre seu gosto artístico.

Qual seria, na opinião deles, a tela ideal para se pendurar na parede? Curvas suaves ou ângulos agudos? Pinceladas visíveis ou superfícies lisas? Animais domésticos ou selvagens? Pessoas normais ou famosas? Trabalhando ou se divertindo? 

Os resultados, com margem de erro de +/- 3,2%, eram tão estatisticamente precisos quanto qualquer gráfico de intenção de voto. Por trás da encomenda estavam Vitaly Komar e Alexander Melamid, uma dupla de artistas imigrantes soviéticos. Com os dados em mãos, eles começaram a pintar o fast food das artes plásticas. A primeira peça realmente feita de acordo com o desejo da maioria.

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“Eu percebi que as pessoas realmente querem arte, mas que nós, os artistas da elite, não somos capazes de servi-las”, afirma Melamid no livro Painting by Numbers (“Pintando com Números”, sem tradução em português).

“Nós estávamos pensando em como os líderes dessa sociedade entram em contato com o povo, com os americanos de verdade. Na vida real, eles fazem isso com pesquisas. Só recentemente eu descobri que o presidente tem sua própria equipe de estatísticos (…) Eu entendo o presidente. Ele quer saber tanto quanto eu.” 

Komar completou: “os escultores da Grécia Antiga criavam as imagens dos deuses com uma média dos cidadãos mais bonitos. Mediam os narizes, testas, bocas e corpos mais bonitos, e daí faziam um simples cálculo de média, que era considerado a imagem de Deus. A partir da média era criado o ideal.” Ao reproduzir a democracia artística grega nos EUA, porém, eles passaram bem longe de Afrodite.

A pintura do povo calhou de ser uma paisagem predominantemente azul (cor favorita de 44% da população — de agora em diante os parênteses vão indicar a parcela de entrevistados que declarou preferir cada característica). A aparência era realista (60%), com pinceladas visíveis (53%).

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A cena continha George Washington e um grupo (48%) de anônimos completamente vestidos (68%) às margens de um lago, em um momento de lazer (43%). A estação era o outono (33%) e há dois animais silvestres (51%) em seu habitat natural (89%). Ao fundo da cena bucólica, montanhas e um céu penetrante. Árvores aqui e ali, mas não em demasia. 

Em outras palavras, um típico quadro de casa de avó, que vai bem com paredes salmão e móveis de madeira escura. “Quase todas as pessoas com que nós já falamos têm essa paisagem azul na cabeça”, conta Melamid. “Ela está alojada lá, não é piada. As pessoas podem vê-la, nos mínimos detalhes. (…) Talvez ela esteja incrustada nos nossos genes, seja o paraíso interior, nós viemos dessa paisagem e a ela queremos voltar.”   

 

Mais curioso ainda, porém, foi o que aconteceu quando Komar e Melamid decidiram pintar o quadro mais indesejável dos EUA: uma obra que usasse todas as cores, motivos e temas que as pessoas menos gostam.

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Calhou de ser uma típica pintura geométrica (30%) modernista: triângulos dourados, laranja ou pêssego (1%), com ângulos agudos (22%) e aparência despojada e crua (39%). Tons escuros (22%) e objetos imaginários (36%) predominam. 

O experimento levanta uma série de perguntas que estão na fronteira da crítica de arte com a biologia: por que o ser humano gosta de arte e gasta vários milhares de dólares com ela? Até onde nosso gosto artístico é inato — e até onde ele pode ser moldado pela cultura e pelos artistas?

Há mesmo paisagens que são mais agradáveis aos nossos olhos por nenhum motivo além de que é essa a natureza do Homo sapiens? Será que as exposições de arte contemporânea são tão chocantes porque vão na contramão de algo que somos? E o que a seleção natural tem a ver com isso, se é que tem alguma coisa?

Para tentar respondê-las, Komar e Melamid deram o próximo passo: aplicaram seu questionário às populações de 15 países tão diferentes entre si quanto Rússia e Quênia, China e Turquia. A amostra total foi representativa (ao menos na letra fria da estatística) de 2 bilhões de pessoas — mais de um quarto da população mundial. E as pinturas saíram todas praticamente idênticas.

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Com algumas variações regionais — um hipopótamo no Quênia, um alce na Finlândia, bailarinas na Dinamarca — os artistas pintaram a mesma paisagem natural com céu azul 15 vezes. “Buscando a liberdade, encontramos a escravidão”, afirmou Komar. “Viajamos para diferentes países (…), levantamos renda para várias pesquisas, e aí recebemos os mesmos resultados.”  

Desde o episódio, vários neurocientistas, psicólogos e críticos deram suas próprias explicações ao fenômeno — cujo análogo mais próximo é a maneira como o McDonald’s modifica o tempero de seu hambúrguer de acordo com o país em que é vendido, sem nunca mudar a ideia básica por trás da receita.

Alguns afirmam que os soviéticos confirmaram um fato cultural, e não biológico. Que de tanto exportar calendários de geladeira, bibelôs kitsch e outros produtos culturais genéricos, os países desenvolvidos uniformizaram o gosto de populações que antes tinham padrões estéticos únicos. 

Ninguém em sã consciência nega essa dimensão do problema. É evidente que, após centenas de anos de colonialismo e imperialismo europeus, quase qualquer cidadão com um grau mínimo de instrução, de Bangladesh à Bolívia, entrou em contato com o estilo de pintura realista monótona do século 19 que foi fonte da sátira de Komar e Melamid — e pode ter adotado essa estética como um paradigma, uma definição genérica do que é arte. 

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O filósofo Arthur Danto, autor de um longo comentário sobre o America’s Most Wanted, lembra da teoria dos paradigmas da psicóloga Eleanor Rosch: se eu paro para pensar em um cãozinho, a primeira coisa que me vem à mente é um vira-lata caramelo. Ele não é necessariamente o meu ideal estético canino — eu, pessoalmente, posso preferir um vira-lata preto —, mas ele é um cãozinho comum, ícone e símbolo de todos os outros.

Isso decorre da maneira como a nossa memória constrói o mundo: criando caixinhas, subdivisões e classificações para dar sentido à realidade. Talvez o que o experimento dos soviéticos tenha descoberto é muito mais o que as pessoas entendem por arte do que o que elas realmente gostariam de ver em suas paredes.

Por outro lado, seria inocente descartar o palpite de Melamid: de que talvez a paisagem azul universal esteja de fato na nossa genética. Afinal, nossa percepção do mundo é mediada pela maneira como o cérebro o interpreta.

E o cérebro, por sua vez, é um máquina de processamento de informações projetada pela seleção natural para lidar com as exigências de sobrevivência do ambiente em que o Homo sapiens passou a maior parte de sua existência: as savanas do leste da África. 

Da mesma maneira que seres humanos compartilham um hardware básico idêntico — pernas, braços, cabelo no topo da cabeça e por aí vai — eles compartilham um software básico: buscar comida em resposta à fome, água em resposta à sede e abrigo em resposta ao frio. 

O sentido predominante do ser humano é a visão. Não é à toa: savanas são ótimos lugares para se dar bem usando os olhos. De cima de uma rocha, a paisagem vai longe. Há árvores aqui e ali. O suficiente para colher frutas suculentas, mas não a ponto de criar um bosque denso que impeça alguém de ver a aproximação de um predador, por exemplo — Chapeuzinho Vermelho sabe a importância disso.

Um montanha ao fundo de um cenário natural é um ótimo referencial geográfico: pode ser usada para guiar o caminho de volta para casa na era pré-bússola. Céu azul é tempo bom, e manter um lago cheio de água fresca por perto é sempre saudável. Herbívoros pacíficos mascando grama, por sua vez, são sinônimo de almoço — basta ter uma lança em mãos.

Moral da história? As paisagens do America’s Most Wanted, ao contrário de um deserto esturricado ou floresta equatorial úmida, são lugares ideais para a nossa sobrevivência. E não é um exagero pensar que nosso cérebro goste de ambientes assim no modo automático: ao longo de centenas de milhares de anos, ele foi moldado para se dar bem neles.

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