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Estoicismo: um guia prático

Entenda por que essa filosofia, que surgiu na Grécia Antiga e ganhou força em Roma, volta a conquistar adeptos 2.400 anos depois – e veja como seus ensinamentos, baseados na resiliência e no controle das emoções, podem ajudar na vida moderna.

Por Bruno Garattoni e Maurício Brum (colaboraram João Antonio Streb e Valentina Bressan)
15 mar 2024, 10h09

IImagine o seguinte: você tem uma vida ótima, a família vai bem, seu trabalho é promissor. Mas por um erro, azar ou circunstância, tudo muda. Você perde alguém, sofre um acidente, é diagnosticado com uma doença grave, ou qualquer outra coisa ruim.

Bem ruim. Seu futuro, que parecia claro e tranquilo, desaparece; resta apenas a sensação de que, daqui para a frente, tudo será incerto e angustiante. Parece plausível, não? Reviravoltas assim podem acontecer qualquer dia, com qualquer pessoa.

E sempre puderam. Há cerca de 2.400 anos, um comerciante também ficou confuso e sem ação. Seu navio afundou, ele perdeu uma carga extremamente valiosa – e, junto, o rumo na vida. Começou a procurar saídas na filosofia de Atenas. E então se tornou, ele próprio, um dos maiores pensadores de seu tempo: estamos falando de Zenão de Cítio (333-263 a.C.), o fundador do estoicismo.

Os problemas de hoje parecem, e são, diferentes daqueles de quem vivia na Grécia Antiga. Mas sua essência é a mesma: coisas imprevisíveis, sobre as quais não temos nenhum poder. Para os estoicos, o segredo para viver bem era não se preocupar com elas. E, ao mesmo tempo, tentar controlar outra coisa: as próprias reações diante do inesperado.

Os estoicos também foram acusados, nem sempre injustamente, de renunciar a toda e qualquer emoção na vida – e flertar com uma espécie de indiferença, o abandono de qualquer tentativa de mudar o que há de ruim no mundo.

Busto de filósofos estoicos gregos sendo descobertos embaixo de um tecido branco.
Para os estoicos, o segredo para viver bem era não se preocupar com o incontrolável. E tentar controlar outra coisa: as próprias reações frente a ele. (Vini Capiotti/Superinteressante)

Mas foi pela primeira parte dessa história, aquela que preza pelo autocontrole e pela autossuficiência diante de uma realidade caótica e aleatória, que o estoicismo voltou à moda.

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As livrarias estão cheias de livros sobre o tema, que frequentam as listas de best sellers – o principal autor é o americano Ryan Holiday, que traduz os ensinamentos clássicos e vendeu mais de 5 milhões de exemplares pelo mundo.

As pessoas também estão buscando as fontes originais: Cartas de um Estoico, de Sêneca, e Meditações, do imperador romano Marco Aurélio, seguem atraindo interesse – tanto que, em janeiro, o segundo ganhou uma nova edição no Brasil.

De 2019 para cá, as buscas por estoicismo no Google cresceram 330%, e a palestra do americano Tim Ferriss sobre essa filosofia, no TED, já foi vista mais de 12 milhões de vezes. O estoicismo está em Hollywood, onde tem adeptos como Arnold Schwarzenegger e Brie Larson, e no Vale do Silício: Mark Zuckerberg e Jack Dorsey (fundador do Twitter) incorporaram práticas estoicas a suas rotinas.

Mas por quê? E por que agora? “O estoicismo tem uma marca muito forte de dar caminhos para as intempéries da vida, de ajudar a lidar com o desastre e a possibilidade de que problemas vão acontecer”, diz o psicólogo Mikael Corrêa, doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e estudioso do estoicismo.

Os últimos anos estiveram cheios de desastres e ameaças: pandemia, eventos climáticos extremos, guerras, o rápido avanço da IA, incertezas de todo tipo. São coisas que a sociedade pode e precisa enfrentar – mas que cada indivíduo, sozinho, não consegue controlar.

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E um dos pilares do estoicismo é justamente abdicar da ideia de controle sobre os acontecimentos. Para os estoicos, isso estava ligado a uma noção um tanto fatalista: o universo seria regido pelo logos, uma ordem superior. E tudo o que acontece deve mesmo acontecer, sem escapatória.

Para entender essa ideia, voltemos ao barco de Zenão. Aquele que, a caminho de Atenas, transportava uma carga capaz de valer “o próprio peso em prata”.

Busto de Zenão, com elementos para remeter a sua vida, sendo moedas quebradas, baú vazio e tecidos rasgados.
O navio naufragou, Zenão perdeu uma fortuna – e, junto, o rumo na vida. Até reencontrá-lo numa livraria. (Vini Capiotti/Superinteressante)

O acidente e os cínicos

O pai de Zenão, Mnaseas, era comerciante e ia frequentemente da ilha de Cítio (atual Chipre), onde a família morava, para Atenas – de onde voltava trazendo livros socráticos para o menino. “Por isso, ele tinha sido bem treinado mesmo antes de deixar o seu lugar de origem”, conta o historiador romano Diógenes Laércio (180-240 d.C.) em Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres.

Ao alcançar a idade adulta, Zenão assumiu a profissão do pai. Mas, em 303 a.C., perdeu seu navio numa viagem para a cidade de Pireu, no sul da Grécia. A embarcação estava carregada de pigmento púrpura, obtido de caramujos marinhos – e extremamente valioso no mundo antigo.

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Diz a lenda que Zenão sobreviveu ao naufrágio, mas teve um prejuízo enorme. E ficou desnorteado. “Ele foi para Atenas e sentou-se numa livraria, sendo então um homem de trinta anos”, relata Diógenes. Leu textos sobre Sócrates (como Memorabília, do grego Xenofonte), que o impressionaram muito. E perguntou ao dono da loja onde poderia encontrar pessoas como aquele grego tão sábio. O livreiro indicou Crates de Tebas, um cínico.

“Cínico” era o nome dado aos filósofos que seguiam outra escola de pensamento da época, o cinismo. Eles viviam seguindo a natureza, buscando a felicidade sem cair nas tentações de riqueza, poder e fama.

Atingir isso muitas vezes significava ir contra as convenções sociais da época, o que costumava deixar os adeptos sujos e com aparência pouco, digamos, urbana: os atenienses começaram a compará-los, pejorativamente, a “cães” (kyôn). E daí derivou o termo kynikos.

Zenão se tornou discípulo de Crates, mas não virou cínico. Mergulhou em outros pontos da filosofia antiga, como a dialética de Heráclito de Éfeso, e começou a formular as bases do que inicialmente ficou conhecido como “zenonismo”, mas logo mudou de nome para evitar um culto à personalidade. Seus seguidores batizaram a nova filosofia de estoicismo, homenageando o lugar de Atenas onde eles se reuniam para discutir suas ideias – um pórtico, ou stoa.

O estoicismo diz que o conhecimento é obtido através da razão, e a razão deriva do pensamento claro e objetivo. Também afirma que os estoicos devem tomar decisões que levem a um estado mais satisfatório, de bem-estar moral e ético. Séculos depois de Zenão, isso seria resumido nas chamadas “quatro virtudes cardeais” do estoicismo: coragem, justiça, temperança e sabedoria [veja no quadro abaixo].

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Elas significam que, ao lidar com os desafios da vida, é preciso agir apesar do medo, pensar em como suas ações vão impactar as outras pessoas, manter o autocontrole e fazer tudo isso com inteligência, sabendo como responder, ou não, a determinadas situações.

É essencial agir sobre o que você pode controlar, e não ficar remoendo o que não pode. Esse conjunto de ideias é o grande diferencial filosófico do estoicismo – e sua principal arma para a vida cotidiana.

Puxando para uma cena atual: imagine que você cometeu um erro ou se desentendeu com alguém no trabalho, e isso pesou na sua cabeça pelo resto do dia. Como a outra pessoa se sentiu? Será que ela vai fazer algo em represália? O entrevero pode prejudicar aquela entrega prevista para sexta-feira?

Você não tem controle sobre esses fatores, e ficar pensando neles vai mudar bem pouco o problema em si – pode até piorar as coisas, se deixar você exausto de preocupação. O que um estoico faria? Chamaria o colega para uma nova conversa, e tentaria rapidamente acertar as coisas. Ele agiu sobre o que podia agir, e não gastou energia com o imponderável.

Apesar de já ter sido relacionada à indiferença, a filosofia estoica não é bem isso. Ela mira no controle das emoções destrutivas, e suas interferências na vida. “Nós praticamos resiliência, e ser resiliente não significa que você não reage às coisas e aos acontecimentos, que fica indiferente. Significa que tratamos os contratempos não como catástrofes, mas como desafios”, diz Massimo Pigliucci, professor de filosofia na City College of New York e autor de três livros sobre estoicismo.

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Zenão conquistou discípulos, inspirou pensadores e escreveu mais de 20 textos filosóficos, mas eles se perderam com o tempo: são conhecidos indiretamente, através de fragmentos citados por autores que vieram depois. O estoicismo como o conhecemos hoje só ganharia densidade 300 anos mais tarde, em Roma – graças às ideias, e à determinação, de um homem sem nome.

 

Da alforria à doença

Epicteto nasceu por volta de 50 d.C., na cidade grega de Hierápolis. Era filho de escravizados, e seu nome de batismo é desconhecido – a palavra epíktetos, em grego, quer dizer “adquirido”. Foi o que aconteceu com o garoto: ele foi comprado por Epafrodito, secretário do imperador Nero, e levado a Roma. Epafrodito (um ex-escravizado que havia obtido a própria liberdade) permitiu que o rapaz estudasse filosofia – o que Epicteto fez com Gaius Musonius Rufus, um romano que praticava o estoicismo.

Após a morte de Nero, em 68 d.C., Epicteto também se libertou da escravidão, e passou a lecionar filosofia. Sua interpretação do estoicismo, moldada pelo próprio sofrimento (ele usava bengala, o que alguns historiadores atribuem a espancamentos que teria sofrido), tinha algo de radical: dizia que um bom estoico seria capaz de permanecer feliz em qualquer situação, mesmo se estivesse em desgraça, no exílio, em perigo, doente ou até moribundo.

Como? O filósofo não deixou escritos, mas suas ideias foram agrupadas em Discursos de Epicteto e Manual de Epicteto, publicados por um discípulo, Flávio Arriano.

Busto de Epicteto, com elementos para remeter a sua vida, sendo correntes pesadas e bengala.
Epicteto foi escravizado: seu nome, em grego, quer dizer “adquirido”. Mas alcançou a liberdade – no corpo e na alma. (Vini Capiotti/Superinteressante)

A chave de tudo está em abrir mão da expectativa. “Não acredite que as coisas deveriam acontecer do jeito que você deseja; mas deseje que as coisas aconteçam apenas do jeito que devem acontecer, e você terá um fluxo de vida tranquilo”, cita Arriano. “Aquele que deseja ser livre, nem queira, nem evite aquilo que depende de outros. Senão, obrigatoriamente serás um escravo.” Um escravo do alheio, do que não é possível controlar – e também, crucialmente, de si mesmo.

É claro que ninguém deve ficar feliz quando está em perigo, doente ou morrendo. Trata-se de um óbvio exagero. Mas a explicação que Epicteto dá a essa hipérbole, por outro lado, é plenamente aplicável no dia a dia: entender que na vida certas coisas vão acontecer anyway, e aceitar isso, faz muito sentido.

Essa postura, de não levar as palavras ao pé da letra e tentar compreender o que o filósofo quis dizer, também vale para as ideias de outra figura central do estoicismo, e da sociedade romana da época: Sêneca.

Ele era filho de família rica e com influência política, e se tornou senador. Mas quando Cláudio assumiu como imperador, no ano 41 d.C., a vida de Sêneca começou a ruir: ele foi acusado de adultério e condenado à pena de morte, convertida em exílio.

Passou oito anos isolado na Córsega, e mergulhou em uma longa jornada de reflexão na qual desenvolveu uma linha de pensamento determinista: para ele, o destino era uma certeza, e o segredo para ter alguma liberdade era enxergar as possibilidades dentro desse destino.

Só que o destino sempre reserva surpresas – inclusive para o próprio Sêneca. Em 49 d.C., ele foi perdoado e autorizado a regressar a Roma. A partir do ano 54, voltou ao topo: tornou-se conselheiro de Nero e tentou conter os impulsos de uma das figuras mais controversas que o Império jamais veria.

Até que, em 65 d.C., nova reviravolta: Sêneca foi acusado de tramar um golpe para assassinar o imperador – nunca se soube quanto de verdade havia ali. Acabou condenado à morte por suicídio, uma pena comum na época.

Fiel à noção de que essa parte de seu destino não podia ser controlada, ele aceitou a sentença – e cortou os pulsos e as veias atrás dos joelhos, para sangrar até a morte dentro de uma banheira. Também bebeu cicuta, o mesmo veneno que Sócrates ingeriu ao ser condenado, na Grécia Antiga. Pompeia Paulina, a esposa de Sêneca, tentou suicídio ao presenciar o sofrimento do marido – mas Nero ordenou que ela fosse salva.

A forma estoica com que Sêneca encarou seu desfecho trágico e injusto seria imortalizada em várias obras de arte ao longo dos séculos. E também é um episódio simbólico para quem questiona de forma mais dura essa corrente filosófica: o desapego extremo não se restringe às coisas mundanas, podendo chegar inclusive às pessoas próximas e a si mesmo.

Busto de Sêneca, com elementos para remeter a sua vida, sendo banheira (onde se suicidou) e cicutas.
Sêneca foi do poder à ruina duas vezes, e acabou condenado à morte. Aceitou a injustiça – e se tornou imortal. (Vini Capiotti/Superinteressante)

No limite, um estoico “raiz” não deveria nem amar muito seus familiares ou cônjuge, pois todo amor é destinado a alguém que vai morrer, e a tristeza gerada por isso se torna um obstáculo ao bem viver.

Mas essa postura fatalista seria relativizada pelo próximo grande estoico: o imperador Marco Aurélio. Ele assumiu o poder em 161, e logo veio uma grande desgraça. Em 165, Roma foi tomada pela Peste Antonina – a doença teria sido trazida por soldados, infectados durante uma das várias guerras travadas pelo Império.

Durou 15 anos, e matou 5 a 10 milhões de pessoas. Se hoje uma pandemia já pode ser aterrorizante, imagine com a medicina da época – ninguém sabia qual era a causa da doença (historiadores modernos especulam que tenha sido sarampo ou varíola), ou quando iria terminar.

 

Quadro sobre as quatro virtudes cardeais da filosofia estoica: coragem, temperança, justiça e sabedoria.
(Arte/Superinteressante)

 

Foi nesse contexto que, ao longo da década de 170 d.C., Marco escreveu Meditações, sua obra seminal. É uma coleção de anotações, reflexões e métodos para viver sob adversidades. Foi ali que tomaram forma algumas das ideias mais repetidas atualmente, incluindo as quatro virtudes cardeais do estoicismo: coragem, justiça, temperança (ou autocontrole) e sabedoria.

Enquanto os estoicos anteriores eram mais teóricos, e propunham uma postura comedida, Marco Aurélio se inspirou nos conflitos e tragédias que viveu no poder. A partir dessas experiências, surgiram lemas estoicos como “Não perca tempo discutindo sobre o que um bom homem deve ser: seja” ou “Não é a morte que um homem deve temer; ele deve temer nunca começar a viver”.

Mas talvez o mais importante seja o tom, menos pessimista que o de outros estoicos, que Meditações atribui ao destino humano. “A substância do conjunto universal [tudo o que existe] é dócil e maleável. E a razão que a governa não tem em si nenhum motivo para fazer mal, pois não tem maldade.” As coisas que têm de acontecer vão acontecer; mas elas não precisam necessariamente ser ruins.

Marco Aurélio morreu no ano 180, de causas desconhecidas, durante uma campanha militar. Foi sucedido no poder pelo filho, Cômodo, que sujou o nome da família: ao contrário do pai, conhecido pela moderação e sabedoria, o jovem de 19 anos ficou famoso por festas nababescas, atos de violência (gostava de entrar na arena para matar gladiadores e animais feridos) e um governo turbulento. Terminou assassinado em 192 d.C.

Mas as ideias de Marco Aurélio perduraram, inclusive por uma conexão surpreendente. A busca por felicidade e realização, bem como sua posição contrária à vingança, tornaram a filosofia do imperador algo mais próximo do cristianismo: ambas as correntes defendiam sacrifícios pessoais em prol do bem-estar coletivo, visto como um objetivo superior (“o que não beneficia a colmeia, tampouco beneficia a abelha”, diz o sexto capítulo das Meditações).

Embora seu governo não tenha sido simpático aos cristãos, que continuaram sendo perseguidos, esse ponto em comum com aquela incipiente religião ajudou a manter a popularidade dos conceitos estoicos.

Busto de Marco Aurélio, com elementos para remeter a sua vida, sendo caveiras, cavalos, lanças e flechas e instrumentos hospitalares.
Marco Aurélio enfrentou guerras e uma epidemia que matou milhões. Encontrou serenidade na própria filosofia. (Vini Capiotti/Superinteressante)

A associação entre cristianismo e estoicismo seria solidificada mais de mil anos depois, com um movimento que adotou o título de “neoestoicismo”, liderado pelo filósofo belga Justo Lípsio ao longo do século 16.

Cortando o que deixara de fazer sentido, abandonando o fatalismo e tornando as reflexões mais palatáveis ao leitor de cada tempo, o estoicismo seguiu encontrando adeptos… até hoje. “As boas ideias costumam envelhecer bem, e a natureza humana não mudou muito nos dois milênios que passaram”, argumenta Massimo Pigliucci.

 

O estoicismo de hoje

As pessoas vão atrás do estoicismo porque querem aprender a lidar melhor com as dificuldades da vida. E isso, como não poderia deixar de ser, é perpassado pelo imediatismo do mundo moderno.

Mas as ideias estoicas nunca foram apresentadas por seus autores como soluções fáceis, às quais você pode recorrer em momentos de necessidade. É preciso exercitá-las todos os dias, mesmo quando não se está sofrendo ou sob pressão. “É como ir para a academia regularmente, para ficarmos preparados para o momento de competir numa corrida, ou entrar num ringue para uma luta de boxe”, compara Pigliucci.

Essa necessidade de manter a autodisciplina não vem de hoje. “Epicteto repreendia os alunos que liam demais e bradavam sem cuidado os ensinamentos estoicos para o público”, diz Ryan Holiday. “O estoicismo se interessa mais nas ações do que nas palavras, assim como a forma que colocamos tudo isso em prática no nosso cotidiano”, lembra ele.

No mundo antigo, o estoicismo também servia como uma espécie de terapia: além de divulgarem suas ideias, os filósofos davam orientações coletivas e individuais para os seguidores. Essas orientações podiam se desdobrar em exercícios práticos – como meditação ou instruções para chegar ao domínio corporal, que podiam incluir banhos gelados ou jejuns.

Hoje, nenhum psicólogo vai recomendar essas coisas a seus pacientes. Mas algumas noções do estoicismo influenciaram teóricos como os americanos Aaron Beck e Albert Ellis, criadores da terapia cognitivo-comportamental (TCC), que está em alta na psicologia.

A leitura que os psicólogos dessa vertente fazem do estoicismo pode ser bem exemplificada por uma frase de Epicteto: “Os homens são perturbados não pelas coisas, mas pelas opiniões que têm delas”. A TCC, que ganhou adeptos pela objetividade e eficácia, se apoia exatamente nisso: mostra ao paciente a importância de lidar com suas reações aos acontecimentos da vida.

Isso também vale para um fenômeno típico do mundo moderno: a contraposição entre facilidade e dificuldade. Temos cada vez mais coisas ao alcance de um botão, o que é ótimo. Mas isso também pode nos deixar mal-acostumados – e sem direção quando nos deparamos com objetivos mais difíceis.

“O ser humano está sempre buscando mais conforto, e os desejos hoje são facilmente atendidos. Acredito que isso começou a levar as pessoas para um lugar de insatisfação”, afirma o psicólogo Mikael Corrêa, da UFRGS.

Ao mesmo tempo, todo mundo continua desejando coisas difíceis – como passar no vestibular ou num concurso público, ganhar músculos, correr uma maratona, ou escrever um livro. “Esses objetivos exigem que se lide com o desconforto, e se ultrapasse o cansaço. Tudo isso ecoa as ideias estoicas de disciplinar a si mesmo para conquistar virtudes”, diz Corrêa.

Busto de uma pessoa moderna, utilizando smartphone para consumir conteúdos sobre estoicismo, cercados de livros.
Na vida moderna, muitas coisas estão ao alcance de um botão. Mas nem todas. E é aí que o estoicismo entra. (Vini Capiotti/Superinteressante)

Com a popularidade do estoicismo, surgiram alguns estudos científicos que tentam medir seu efeito sobre o bem-estar mental. Num deles, publicado em 2021, pesquisadores ingleses (1) reuniram 45 voluntários que tinham o hábito de se preocupar muito. Eles foram divididos em três grupos. O primeiro fez um curso online de oito dias sobre a filosofia estoica, o segundo combinou esse mesmo treinamento com exercícios cognitivos, e o terceiro não fez nada.

Resultado: nos dois primeiros grupos, a intensidade da “ruminação” (ficar remoendo pensamentos ruins) diminuiu 18% e 13%, respectivamente. Além disso, a “autoeficácia” (crença na própria capacidade de fazer as coisas) cresceu 15% nos dois primeiros grupos.

No ano seguinte, outro grupo de pesquisadores ingleses, das universidades de Bath e York, reuniu 24 estudantes de medicina (2) e pediu a eles que praticassem algumas técnicas estoicas, como a reflexão diária, a análise dos próprios julgamentos e a chamada “visualização negativa” – uma técnica, proposta por Sêneca, que consiste em imaginar situações difíceis e pensar em como você lidaria com elas.

Os voluntários adotaram essas práticas por dois meses, e aí foram submetidos a testes psicológicos. Sua resiliência aumentou 15%, e o índice de empatia cresceu 22% (se aproximando da pontuação máxima possível nos testes).

O estoicismo também pode mexer com quem escreve sobre ele. “Sinto que me tornei mais apto a lidar com desafios e contratempos”, afirma William Irvine, professor de filosofia na Wright State University e autor do livro A Guide to the Good Life: The ancient art of stoic joy (“Um guia para a boa vida: a antiga arte da alegria estoica”, não lançado no Brasil).

Ele conta que teve a ideia de escrever o livro após aplicar princípios estoicos, ignorando prazeres momentâneos, na própria vida. Diz que funcionou: Irvine ficou mais disciplinado no dia a dia, e grato quando alcança conquistas.

Mas também há críticas à forma como o estoicismo tem sido apresentado pelos novos autores – e, principalmente, interpretado por alguns de seus supostos adeptos. Jack Dorsey, fundador do Twitter, diz que tomar banhos gelados às 5h, caminhar até o trabalho no frio e comer apenas uma refeição por dia são práticas que adotou para se tornar mais resiliente, a partir do estoicismo.

Ele pode ser considerado um seguidor dessa filosofia? Ou só pinçou alguns elementos isolados, sem de fato estudá-la?

A essência estoica não mora em estratégias assim – e também não está, como afirma uma interpretação errada e comum, em tentar suprimir as próprias emoções. “É da natureza humana sentir raiva, inveja, ciúmes, medo ou tristeza. Mas a razão também faz parte da natureza humana. Sempre existe um duelo, e a solução não é inibir as emoções, e sim compreendê-las através da razão”, explica Corrêa.

Como bem observou Marco Aurélio: “A morte e a vida, a honra e a desonra e a dor e a alegria são atribuídas igualmente a todos”. Toda pessoa está sujeita a enfrentar intempéries – mas, eis o ponto crucial, também as carrega dentro de si. Porque revive os acontecimentos, inúmeras vezes, dentro da própria mente. Controlar isso é possível – e libertador.

Na próxima vez em que você estiver mal, seja qual for o motivo, tente se lembrar do que disse Sêneca, em suas Cartas a Lucílio: “Sofremos mais na imaginação do que na realidade.”

***

Fontes (1) The Effects of Stoic Training and Adaptive Working Memory Training on Emotional Vulnerability in High Worriers. A MacLellan e N Derakshan, 2021. (2) Can stoic training develop medical student empathy and resilience? A mixed-methods study. M Brown e outros, 2022.

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