Francesa de 90 anos tinha obra-prima de R$ 100 milhões na cozinha – e nunca soube
Quadro pertencente ao Renascimento italiano estava na casa de uma idosa perto de Paris, e quase foi parar no lixo.
De vez em quando brotam no mundo da arte histórias que transcendem os círculos restritos das pessoas que normalmente acompanham esse universo, como eruditos e especialistas. A mais recente delas acaba de vir à tona: um pequeno painel de 25 cm encontrado na casa de uma senhora francesa foi leiloado neste domingo (27) por mais de 24 milhões de euros — o equivalente a mais de R$ 100 milhões. Por pouco não foi jogado fora.
Tamanho valor se deve à atribuição da obra a um dos mais importantes e celebrados mestres precursores da pintura renascentista italiana: Cenni di Pepo, mais conhecido como Cimabue. Nascido em Florença por volta de 1240, o pintor foi o primeiro a usar, entre 1272 e 1302, inovações estéticas revolucionárias que seriam aprofundadas nos séculos seguintes. Mas a antiga dona do quadro não sabia de nada disso.
O painel esteve pendurado na parede que divide a cozinha e a sala de estar da casa de uma idosa de 90 anos que mora em Compiègne, cidade a cerca de 80 quilômetros de Paris. Quem o descobriu foi Philomène Wolf, da casa de leilões Actéon. Chamada às pressas para avaliar os itens, ela quase deixou passar o trabalho. “Tive uma semana para dar uma opinião de especialista sobre o conteúdo da casa e esvaziá-la”, disse ao jornal Le Parisien.
“Eu precisei abrir uma janela na minha agenda. Se não tivesse feito isso, tudo teria sido mandado para o lixo”, conta Wolf. Ela consultou o especialista parisiense em história da arte Eric Turquin, o mesmo que em junho identificou um quadro perdido de Caravaggio. Mesmo diante da importância da obra, Turquin diz ter ficado surpreso com o valor final do leilão, que a princípio era estimado para render algo em torno de 4 a 6 milhões de euros.
Ao New York Times, o historiador relatou ter ficado satisfeito quando os lances atingiram 10 milhões de euros, e “tremendamente feliz” quando eles bateram 15 milhões. “O preço foi maior do que eu poderia ter sonhado, e havia uma galeria de arte contemporânea participando do leilão, o que foi algo novo para nós”, afirma Turquin. Ao menos seis participantes estavam na disputa acirrada pelo “novo” Cimabue — quem o levou para casa foi Fabrizio Moretti.
O vendedor de arte de Londres explicou ter comprado em nome de dois colecionadores. “É uma das descobertas sobre os velhos mestres mais importantes dos últimos 15 anos. Cimabue é o começo de tudo. Ele começou a arte moderna. Quando segurei o quadro nas minhas mãos, eu quase chorei”, disse. Segundo a avaliação dos pesquisadores, o painel tem dois “gêmeos”. Todos faziam parte de um altar do final do século 13.
Essa obra de Cimabue foi batizada de “A Zombaria com Jesus”, e fazia parte do mesmo díptico (duas tábuas de madeira emendadas por dobradiças) com outros dois pedaços da mesma pintura: “A Flagelação de Cristo”, que está em Nova York, e “A Virgem e a Criança com Dois Anjos”, em Londres. Os especialistas descobriram a relação graças a fragmentos da moldura, do estilo e da técnica, além de pequenos túneis em comuns feitos por vermes.
Cimabue é valorizado por ter rompido com a arte bizantina, rígida e solene, e adotado um estilo de pintar que prezava pelo naturalismo e tinha mais perspectiva. Foi daí que começou a reinvenção da pintura ocidental pelos artistas italianos. Ninguém, nem a senhora francesa, faz ideia de como o pequeno tesouro parou nas mãos da família, há gerações. Mas existe a suspeita de que devem haver mais pedaços do mesmo díptico perdidos por aí.