Clique e Assine SUPER por R$ 9,90/mês
Continua após publicidade

Fundação de Asimov, a ficção científica de humanas, virou série na Apple TV

Antes de assistir à adaptação audiovisual – aguardada há décadas pelos fãs – entenda do que falam os livros originais.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 25 Maio 2023, 17h44 - Publicado em 24 set 2021, 14h50

“Fundação”, de Isaac Asimov, é uma saga de ficção científica. Mas as ciências, nesse caso, são humanas. O enredo gira em torno de Hari Seldon, uma espécie de economista ou sociólogo capaz de prever o destino de civilizações inteiras com a mesma precisão com que um meteorologista calcula a dança das massas de ar na atmosfera.

Seldon não faz isso estudando individualmente o destino de cada ser vivo. Ele não é um cartomante. Ainda que fosse, não seria um método prático: os livros de Asimov se passam num imenso Império Galáctico, que governa centenas de planetas e tem um número de habitantes na casa dos trilhões. Não haveria computador capaz de calcular tantos futuros em tempo hábil.

Seria uma tática tão ineficaz quanto descobrir o tempo de amanhã estudando cada uma das moléculas de oxigênio, nitrogênio ou gás carbônico que compõem a atmosfera. Quando amanhã chegasse, você ainda estaria na segunda ou terceira molécula da lista, e uma massa de ar possui mais moléculas do que o número de estrelas no Universo observável.

É por isso que, no século 19 da vida real, os físicos inventaram a mecânica estatística – que usa a teoria das probabilidades para descrever o comportamento de um enorme conjunto de partículas sem precisar pelo estágio intermediário de determinar o que cada uma delas fará sozinha.

Seldon fez algo parecido na ficção: a ciência que ele criou, batizada por Asimov de psicohistória, prevê o destino de conjuntos de humanos. Esse destino coletivo é como uma média dos destinos individuais, que desconsidera flutuações irrelevantes da vida privada. É a mecânica estatística aplicada a pessoas em vez de moléculas.

Fundação se passa 10 mil anos no futuro. É provável que, no mundo real, nem dez milênios fossem suficientes para tornar as ciências humanas tão exatas quanto as exatas – esse é um vespeiro delicado, motivo de muita discussão em mesas de bar e universidades. (O economista Paul Krugman, que ganhou o Nobel da área em 2008, escolheu a carreira porque leu Asimov e queria ser um psicohistoriador.)

Continua após a publicidade

 

Usando a psicohistória, Seldon descobre que o Império Galático, após milênios de prosperidade, vai entrar em colapso – e que nessa altura do campeonato, não há nada que possa impedir o desenrolar dos acontecimentos. O único caminho plausível é atenuar a Idade Média que se aproxima, reduzindo sua duração de 30 mil para “apenas” mil anos, e permitindo que uma sociedade próspera renasça das cinzas antes do esperado.

Asimov tirou a ideia do livro Declínio e Queda do Império Romano, obra-prima do historiador Edward Gibbon que é um marco na literatura da área. George Lucas, por sua vezes, provavelmente bebeu da fonte de Asimov para criar o Império Galático de Star Wars, coisa que o próprio Asimov falava sem pudor (nem mágoa) em entrevistas. Isso aqui é um trechinho do autor em 1989, já idoso, no talk show de Dick Cavett:

“Se você assistir a esses filmes, Star Wars e suas continuações, há uma certa quantidade de coisas que vieram dos meus livros da Fundação. Mas caramba, uma certa quantidade de coisas da Fundação veio do livro de Gibbon sobre o Império Romano. O quanto você quer voltar para trás? É assim que as coisas funcionam.”

De volta ao enredo. Seldon sabe que a psicohistória só funciona caso as pessoas não saibam que seu destino está previsto. É claro: se elas souberem, tentarão agir de modo a mudar o desenrolar dos acontecimentos, e aí as previsões param de valer. Por isso, Seldon precisa dar um jeito de guiar a civilização através do colapso sem que a civilização saiba que está sendo guiada. Manipular um futuro que está disposto a ser manipulado, sem que esse futuro note a manipulação. Difícil.

Continua após a publicidade

Mas é claro que piora. A experiência brasileira na pandemia de covid-19 mostra que governantes com tendências antidemocráticas não gostam de ouvir cientistas e não dão bola para dados. Com isso em mente, os livros Asimov, escritos na década de 1950, ganham um toque presciente: Seldon é perseguido pelo governo após revelar suas descobertas – e é obrigado a bolar um plano secreto para salvar o mundo, porque as autoridades só estão interessadas em cortar sua cabeça.

O plano é a tal Fundação do título. Um grupo de enciclopedistas que vai se esconder em dois planetas isolados em cantos opostos da Via Láctea e guardar todo o conhecimento da humanidade em uma vasta Wikipedia, para que esse material esteja disponível às gerações que carregarem o fardo de reconstruir a civilização colapsada. De tempos em tempos, esses acadêmicos recebem mensagens póstumas de Seldon, com instruções friamente calculadas para levá-los a agir exatamente da maneira que psicohistória exige.

Os livros da Fundação são conhecidos pelos diálogos longos e uma complexidade digna da primeira temporada de Game of Thrones: muita política, pouco quebra-pau. Muitas batalhas importantes ficam subentendidas. Além disso, Asimov não é um autor dos mais acessíveis – muitas cenas começam in medias res (ou seja, você pega o bonde andando em vez de iniciar cada capítulo do começo cronológico). É comum passar algumas páginas boiando até sacar o que está acontecendo.

A complexidade do livro também é seu fascínio. Uma vez que o leitor se acostuma com o ritmo e o jeitão antiquado de Asimov, chega a ser bonito ver as previsões de Hari Seldom se concretizarem – e nós passamos a aguardar ansiosos a aparição da próxima mensagem. Arthur C. Clarke dizia que qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia, e Seldom acaba se tornando isso: um Oráculo com ares sobrenaturais.

A questão, agora, é saber se a Apple TV+ respeitou e atualizou o tom filosófico dos livros originais – transformando a série num comentário ácido sobre a relação entre líderes autoritários e ciência no século 21 –, ou se prefiriu emburrecer a obra e torná-la apenas uma desculpa para fazer batalhas espaciais épicas. Nada contra batalhas especiais épicas, é claro. Eu vivo por elas. Mas Asimov merece mais neurônios. E GoT é a prova de que o público gosta de neurônios.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Oferta dia dos Pais

Receba a Revista impressa em casa todo mês pelo mesmo valor da assinatura digital. E ainda tenha acesso digital completo aos sites e apps de todas as marcas Abril.

OFERTA
DIA DOS PAIS

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 9,90/mês

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 9,90/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.