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Letras ao léu

Falam-se cerca de 6 000 idiomas no mundo. Um novo livro mostra essa fascinante diversidade e revela que muitos estão próximos da extinção.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h50 - Publicado em 30 set 2002, 22h00

Jerônimo Teixeira / Adriano Sambugaro

Você já deve estar acostumado a alertas sobre as crescentes ameaças à biodiversidade do planeta. Os ambientalistas costumam traduzir seus números em bases temporais: a cada dia, tantos hectares de floresta são devastados na Amazônia; a cada hora, tantas espécies animais são extintas. Esse expediente é um modo bastante incisivo de traduzir a urgência do problema. Descobrimos que a devastação não é um processo de longo curso, que a catástrofe está acontecendo agora mesmo, enquanto tomamos café ou vemos televisão. Pois bem, eis um novo e alarmante dado: a cada duas semanas, uma língua desaparece da Terra.

Hein? Uma língua? Como assim? Os animaizinhos que ocupam os cartazes de campanhas ecológicas quase sempre passam uma impressão de fragilidade. É assim com o fofo urso panda, com o pequeno mico-leão-dourado, com o lento e portanto indefeso bicho-preguiça. Mas a idéia de que uma língua possa entrar em extinção parece mais distante. A noção que temos do português é a de algo firmemente estabelecido pela palavra impressa – seja nesta revista ou em uma página clássica de Machado de Assis – e defendido pelas instituições escolares onde ainda aprendemos a conjugar a segunda pessoa do plural. A segunda língua que aprendemos na escola ou em cursinhos (geralmente inglês) costuma ser tão ou mais estável que o português.

Que uma língua possa estar morrendo agora, nesse exato instante, parece mais difícil de conceber do que a extinção de uma espécie animal. Os números são claros: existem hoje cerca de 6000 línguas em todo o mundo. A estimativa é de que 90% delas estarão extintas em 2100. Ou seja, 5500 línguas vão morrer neste século.

Esses números foram retirados de The Power of Babel – A Natural History of Language (O Poder de Babel – Uma História Natural da Linguagem, sem tradução no Brasil), do lingüista norte-americano John McWhorter, da Universidade de Berkeley. É um livro interessantíssimo e em certo sentido inovador. Em algumas áreas científicas, já existe uma tradição firme e lucrativa de obras de divulgação – pense em Stephen Jay Gould, na biologia, ou em Stephen Hawkins, na física. A lingüística ainda não tem todo esse ibope, mas seu potencial está bem representado em The Power of Babel. McWhorter mostra a fascinante riqueza alcançada pela linguagem humana.

Amparado em vários exemplos e analogias da cultura pop, de Asterix a Os Simpsons, The Power of Babel não é uma história convencional e linear. O livro não traz aquelas árvores genéticas nas quais o latim, como um reprodutor assexuado, aparece ao mesmo tempo como pai e mãe das modernas línguas românicas – francês, espanhol, português, italiano etc. McWhorter está mais preocupado em explicar os processos genéricos por intermédio dos quais uma língua muda ao longo do tempo. Seu objetivo é sacudir a idéia acadêmica de que as línguas são sistemas fixos, cristalizados nas regras da boa gramática. A fala humana é dinâmica. Vive um estado de permanente mudança, no qual as fronteiras são tênues.

Em vista desse dinamismo, os números tornam-se confusos, indecisos. Acima foi afirmado que existem cerca de 6000 línguas no mundo hoje. Bom, não estamos contando os dialetos, que no mínimo arredondariam o número para 10000. Na verdade, do ponto de vista técnico, não existem critérios lingüísticos para diferenciar língua e dialeto. Tomemos o alemão como exemplo. A língua que você pode aprender em cursos no Brasil é o chamado “Alto Alemão” (Hochdeutsch), que foi fixado no século XVI na famosa tradução da Bíblia por Martinho Lutero. O Hochdeutsch aparece em livros e jornais, mas, nas ruas, é quase uma abstração. Cada região da Alemanha tem sua variedade lingüística. O alemão que se fala na Suábia não é o mesmo que se encontra na Baviera. As diferenças entre cada um desses dialetos são muitas vezes maiores do que aquelas que encontramos entre o espanhol e o português.

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E no entanto ninguém pensaria em sugerir que o português é um dialeto do espanhol. “Já foi dito que um dialeto torna-se uma língua quando tem um exército e uma marinha para sustentá-lo. É tudo uma questão de poder político”, explica o lingüista inglês David Crystal, autor de The Death of Languages (A Morte das Línguas, sem tradução no Brasil). Ele cita um exemplo: “Em 1990, o servo-croata era usado na Sérvia, na Bósnia e na Croácia, em diferentes dialetos. Dez anos depois, com a independência, temos três línguas independentes lá”.

A distinção entre idiomas é ainda mais complicada em linhas históricas amplas. O latim deu origem às línguas românicas, mas as pessoas não acordaram um dia e descobriram que estavam falando uma língua nova chamada francês. O processo foi lento e acidentado, com muitos estágios intermediários em que o latim vulgar já não era mais a língua de Cícero e ainda não era o idioma de Montaigne. The Power of Babel explica em linhas gerais alguns processos básicos através dos quais uma língua se modifica ao longo do tempo até o ponto em que já não seria inteligível para interlocutores do passado – isto é, até tornar-se uma nova língua. Um dos mais simples é a erosão fonética: sílabas não-tônicas no meio de uma palavra correm o risco de desaparecer na fala cotidiana. É assim que o latim femina foi dar no francês femme. Mulher, em português, vem de outra palavra, mulier, cuja acepção original era a de “mulher casada”.

É um exemplo de outro processo: a mudança semântica, no caso tornando mais amplo um sentido originalmente restrito (de mulher casada para mulher em geral). Ao longo do tempo, também acontecem fusões, em que uma palavra inteira é “comida” por outra, a ponto de se tornar apenas uma declinação (isto é, uma terminação indicando número, pessoa ou gênero). Cantare habeo, no latim clássico, queria dizer “tenho de cantar”. A mesma estrutura tornou-se o modo de expressar o tempo futuro no latim vulgar. Foi assim que as línguas românicas adquiriram suas conjugações. O “ei” no final do português “cantarei” e o “ò” do italiano “canterò” são resquícios do habeo engolido pela nova forma verbal.

Nessas mudanças, há muito de acidental e arbitrário. É por isso que não existem línguas lógicas. Todas carregam uma quantidade enorme e – do ponto de vista estrito da comunicação – desnecessária de tralha gramática. Para os falantes nativos, certas noções estão tão arraigadas que é difícil perceber como são supérfluas. A diferença entre ser e estar parece óbvia e obrigatória para todos nós, mas em inglês e alemão há um só verbo (to be e seinen, respectivamente) englobando as duas noções. Inglês, alemão, francês, português têm artigos definidos e indefinidos, que não existem em russo (e não existiam no latim). A ordem “sujeito-verbo-objeto”, que nos parece tão evidente e lógica, tampouco é comum a todas as línguas. Em alemão e em japonês, o verbo vai no fim da frase.

Nenhum desses traços particulares é problema para o falante nativo. O estrangeiro é quem sofre para aprender uma nova língua. Você talvez esteja cuspindo no professor de inglês para aprender a pronúncia do “ th” em think, ou está enrolado nas conjugações do francês, ou desistiu do alemão por causa das declinações. Isso ainda não é nada. Em cantonês (uma das línguas da China) e vietnamita, todas as palavras são monossilábicas, e o falante emprega diferentes tons para diferenciar uma palavra da outra. A sílaba yau, em cantonês, pode significar – entre outras coisas – óleo, magro ou amigo, dependendo do tom empregado. Isso exige uma sensibilidade auditiva que os falantes de línguas eslavas, germânicas ou românicas não desenvolvem. A narração monocórdia dos locutores da Voz do Brasil transformaria o cantonês em uma sopa de sons indiscerníveis.

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O tom não é o único recurso fonético que não empregamos. Xosa, o idioma de Nelson Mandela na África do Sul, emprega estalos como um elemento lingüístico.

Este é o momento de derrubar um possível preconceito: o de que as línguas dos povos primitivos seriam mais simples. A gramática do cree, um dos inúmeros idiomas nativos norte-americanos, era tão complexa que as crianças só adquiriam proficiência completa lá pelos 10 anos de idade. McWhorter dá notícia do fula, uma língua da família bantu falada por vários povos no oeste da África, do Senegal a Camarões. Os substantivos em fula têm nada menos do que 16 gêneros, cada um deles marcado por um artigo. Para piorar, há três ou quatro variantes para os artigos de cada gênero. As línguas tendem a ficar cada vez mais complexas quando são falados por grupos pequenos ou isolados. O galês, língua céltica que ficou confinada a uma ilha britânica, tem uma gramática complicadíssima.

Línguas de povos que se espalharam por grandes extensões territoriais apresentam a tendência contrária. Como o número de pessoas obrigadas a aprender esses idiomas como segunda língua é grande, com o passar do tempo, a gramática vai se simplificando.

O extremo da simplificação é dado pelas chamadas línguas crioulas. Estas são um fenômeno específico do mundo moderno, um subproduto da expansão colonialista das grandes potências européias. As línguas crioulas surgiram geralmente em grande plantations onde conviviam trabalhadores – ou escravos – de diferentes procedências. Eles eram obrigados a adquirir um vocabulário básico da língua dominante, para entender as ordens dos capatazes europeus. Esse repertório rudimentar, porém, não dava conta das necessidades de comunicação. As línguas nativas também não serviam, pois não eram compartilhadas por todos os trabalhadores. Tal conjunção de circunstâncias históricas obrigou esses povos a criarem línguas originais, nas quais mal se reconhecem os fundamentos da fala européia original.

Um exemplo é instrutivo: “Namina nensai xa sa xole ba iai”. Esta sentença pertence a uma língua falada em Annobón, pequena ilha da costa ocidental da África. Você é capaz de reconhecê-la? Pois é um crioulo do português. A frase quer dizer “As crianças correm para aí”. Namina vem de menino; xole, de correr; xa, de cá. Mas é outra língua, com uma sintaxe muito diferente, e ininteligível para brasileiros e portugueses.

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Construídos a partir dos elementos mais simples das matrizes européias, os crioulos seriam o que de mais próximo temos hoje de uma língua básica, original, de acordo com McWhorter. Ele especula que, a partir da estrutura mais simplificada dessas línguas, podemos ter uma idéia de como teria sido a primeira língua falada por um grupo de hominídeos, 150000 anos atrás, na África. Há alguns anos, três lingüistas – Joseph Greenberg, Merritt Ruhlen e John Bengtson – apresentaram uma lista de 27 palavras da língua original, reconstruídas a partir do estudo comparativo desses vocábulos em várias línguas. Na linguagem de Adão e Eva, dedo seria tik, eu seria n, e o modo de perguntar o quê? seria ma?.

O epílogo de The Power of Babel é dedicado a desbancar essas hipóteses. McWhorter demonstra que a língua original não poderá jamais ser reconstruída. Coincidências entre palavras existentes hoje são apenas isso – coincidências.

Há, no entanto, esforços para recompor palavras do proto-indo-europeu, idioma que teria originado uma série de línguas européias e asiáticas. São deduções hipotéticas, mas têm uma validade atestável, o que não é o caso da língua adâmica de Greenberg, Ruhlen e Bengtson. A grande dificuldade é que não sobraram registros dessas línguas primitivas. Calcula-se que já falamos há 150000 anos, mas a escrita só surgiu há 6000 anos. Antes disso, as metamorfoses lingüísticas seriam ainda mais profundas e velozes do que são hoje.

A palavra escrita confere uma estabilidade artificial para as línguas.

Esse fato tornou-se mais patente depois da invenção da imprensa e da universalização – nunca plenamente realizada, é verdade – da educação básica. McWhorter nota que o falante de inglês hoje pode ler Shakespeare tranqüilamente. Terá seus tropeços no vocabulário, mas a gramática, a estrutura da língua é praticamente a mesma, apesar de mais de quatro séculos terem se passado. Recuando mais 500 anos, o que se falava na

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Inglaterra era outra língua, carregada de declinações que parecem mais familiares ao alemão do que ao inglês. Como explicar que o inglês tenha mudado tanto de 1000 a 1500, e nos cinco séculos seguintes tenha permanecido basicamente o mesmo? Ocorre que as línguas européias passaram por uma espécie de congelamento nos últimos séculos. Padronizaram-se em gramáticas, ensinadas nas escolas em detrimento da linguagem cheia de “erros” do dia-a-dia. Com a ascensão do Estado-Nação, a unificação da língua tornou-se um problema político, e o uso de alguns dialetos chegou a ser reprimido. Falado no sul da França, o provençal, por exemplo, foi uma língua florescente na Idade Média, com uma riquíssima literatura. Com o centralização do poder, o dialeto de Paris acabou se erigindo como a língua oficial, marginalizando o provençal (hoje também chamado de occitânico).

O poeta Frédéric Mistral fez uma campanha de recuperação do occitânico no século XIX. Hoje, existem campanhas semelhantes para manter vivas línguas como o irlandês e o galês, quase totalmente absorvidas pelo inglês. A tendência aponta para a extinção de milhares de línguas neste século. A globalização está obrigando um número crescente de pessoas a adotarem línguas correntes no comércio internacional. O grupo privilegiado das 20 línguas mais faladas do mundo – entre elas, inglês, espanhol, português, russo, japonês, híndi, árabe – está se impondo de forma cada vez mais hegemônica.

Segundo dados de McWhorter, 96% da população mundial fala uma ou mais dessas línguas, o que significa que apenas 4% falam somente uma língua nativa minoritária. É pouco provável que, nessa situação desequilibrada, o mundo consiga sustentar 6000 idiomas.

Há dois anos, o lingüista norte-americano Steven Roger Fischer, em entrevista a Veja, chegou a dizer que o português desapareceria, absorvido pelo espanhol. Ele considerava a tendência de diminuição no número de línguas positiva, pois facilitaria a comunicação universal. As previsões de McWhorter não batem com as de Fischer. “É quase certo que o português vai sobreviver. Afinal, ele pertence ao grupo das 20 línguas mais faladas hoje”, afirma. O autor de The Power of Babel admite que a comunicação seria mais fácil com menos línguas. Mas lamenta pela riqueza que estamos perdendo: “Em teoria, a diversidade cultural poderia existir mesmo que houvesse uma só língua. Mas o fato de que existem tantas línguas deveria ser aproveitado. A variedade é simplesmente espantosa e bela”.

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Para saber mais

NA LIVRARIA:

The Power of Babel, John McWhorter, Times Books, 2001

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