Livro da Semana: “História do Ateísmo”, de Georges Minois
Um pente fino na história do Ocidente em busca das pistas silenciosas deixadas pelos que não se encaixaram nos dogmas de cada época.
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Originalmente, os seres humanos eram ateus ou religiosos? Nossa melhor resposta é que certamente não eram ateus, mas também não eram religiosos na acepção atual do termo. Não havia nenhum antropólogo na Pré-História para registrar a espiritualidade dos primeiros Homo sapiens, mas a análise de etnias caçadoras-coletoras na virada do século 19 para o 20 deu início, nas ciências humanas, à investigação de como e por que nós criamos e cultivamos a ideia de Deus – ou passamos a atribuir causas sobrenaturais aos fenômenos que não sabíamos explicar.
No início, de acordo com acadêmicos como Henry Bergson, havia o que convencionou-se chamar de mana. Essa palavrinha vem dos arquipélagos polinésios, no Pacífico, mas a ideia em si tem equivalentes na China, nos povos nativos americanos e em tantas outras tradições. Quem cresceu no Brasil e só teve contato com a fé cristã monoteísta pode encontrar uma versão pop razoável do mana na forma da Força de Star Wars: uma energia que permeia todos os seres vivos e objetos e dá coesão ao mundo. Ela não se mainfesta na forma de espíritos; não se concentra em uma figura humana ou antropomórfica.
“Não é uma força impessoal, não são espíritos já individualizados que teriam sido concebidos a princípio”, escreve Bergson, “simplesmente teriam sido atribuídas intenções às coisas e aos acontecimentos, como se em toda parte a natureza tivesse olhos fitando os homens.” Isso vale para tudo – inclusive chutar uma cadeira sem querer e culpá-la por ter entrado na frente do seu dedinho.
Mais recentemente, a ideia de mana como semente da religião caiu em desuso – os etnógrafos mostraram que ela não é universal e tampouco algo característico de sociedades que permanecem mais próximas do estado original do ser humano. Por outro lado, a biologia entrou em cena e demonstrou que nossos parentes mais próximos na filogenia, os chimpanzés e bonobos, já apresentam pré-requisitos básicos para o florescimento da religiosidade: eles têm alguma capacidade de pensamento simbólico, compreendem normas sociais e possuem autoconsciência – a percepção de que são um indivíduo autônomo.
Além disso, diversos padrões comportamentais que evoluíram por seleção natural por outras razões podem ter, acidentalmente, servido de alicerce para o pensamento religioso se tornar onipresente entre nós. Uma certa tendência à obediência, por exemplo. Pense em duas crianças; uma que escuta seus pais, outra que não. A que escuta terá menos chances de cair de um penhasco ou se envolver em outras situações perigosas. Isso significa que ela terá mais chances de chegar à vida adulta e passar para frente os genes que determinam esse comportamento.
As mesmas tendências psicológicas que nos fazem dar ouvidos a pessoas mais velhas podem ter nos tornado permeáveis a dogmas e normas coletivas. E o valor de sobrevivência disso é imensurável: o Homo sapiens é uma espécie gregária; não sobrevive sem seus companheiros. A questão é que há algo tão importante para a sobrevivência humana quanto o instinto de se agrupar e seguir normas: nossa criatividade. A capacidade de, com o perdão do clichê, pensar fora da caixa.
Por isso, os ateus são tão antigos quanto os deuses. Três escolas filosóficas hindus milenares (Samkhya, Yoga e Mimamsa) rejeitam a figura de Deus em diferentes graus. De acordo com o filósofo indiano Amartya Sen, o sânscrito é a língua clássica com o maior corpo de textos que discutem o ateísmo abertamente.
Há relatos de vikings ateus (em vez de politeístas), e o sofista Protágoras escreveu na Grécia, em 415 a.C.: “A propósito dos deuses, não posso saber se existem ou não”. Com isso, foi expulso de Atenas e teve sua obra queimada em praça pública (eis o primeiro auto de fé da história do Ocidente). Em 500 a.C. Demócrito e Leucipo propuseram a teoria atômica da matéria e deram explicações psicológicas para visões religiosas – diziam serem apenas uma interpretação errônea de fenômenos da natureza.
Ateus e céticos, enfim, são parte da historiografia de todas as épocas e culturas. Em História do Ateísmo, o acadêmico francês Georges Minois revisa a história do Ocidente desde a Antiguidade (e também, ainda que em menor profundidade, outras tradições ao redor do mundo) em busca de pistas silenciosas da existência de pessoas não acreditavam em Deus. Com exceção de uma pequena parcela de ateus militantes dos séculos 20 e 21, essa atitude divergente passou discreta sob o radar ao longo dos séculos – em boa parte dos lugares e épocas, o ateu que se expressava ou punha seus pensamentos no papel era punido com a morte.
O motivo de tanto medo e opressão é, em grande parte, que os religiosos não concebem um ser humano agindo certo só porque ele assim deseja: tudo deve ocorrer movido pelo respeito ou medo de uma entidade maior. Minois escreve: “Se durante muito tempo a vontade de eliminar o ateísmo prevaleceu, é porque a ausência de fé era supostamente capaz de acarretar uma diferença de comportamento individual e social. O homem sem Deus (…) é considerado um homem sem moral, portanto um perigo para a sociedade. A história do ateísmo é também a dos que lutam por uma moral puramente humana.”
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