Texto Luiz Carlos Maciel
Sessões malditas nos teatros. informantes disfarçados entre o público dos festivais. Artistas perdidos nos labirintos das drogas pesadas. É hora de viver o velho clichê de sexo, drogas e rock’n’roll com a maior autenticidade. Longe da grande mídia, da TV e do rádio, o rock brasileiro segue multifacetado e “pauleira”, resistindo à “caretice” do mercado pop só para manter a sua fama de mau
“Roqueiro brasileiro sempre teve cara de bandido”, já cantou Rita Lee, numa observação que, mesmo não sendo proposital, estava diretamente ligada ao espírito dominante nos anos 70. O negócio agora era ser alternativo, marginal, ter mesmo cara de bandido. O rock pretendia ser mais do que uma revolução musical. Era existencial e, à sua maneira, político. Inspirava-se no rock internacional contestador do final dos anos 60 e confrontava com petulância juvenil não só outras formas musicais, mas também o próprio rock ligado ao mercado fonográfico. Mais do que música, o som se transformou em forma de protesto, exortação e pregação de uma nova maneira de viver.
De viver, sim – pretensão e água-benta cada um toma quanto quer. A mania daquele tempo era transformar o mundo, por que o rock ficaria fora dessa? O mundo talvez não desse, mas pelo menos o indivíduo. A humanidade passava a ser dividida entre iniciados experientes e neuróticos caretas. E o mercado, naturalmente, era um dos pináculos da caretice.
A trajetória de um grupo tão original quanto popular, que marcou o final dos 60, é exemplar. Apesar do sucesso comercial, os Mutantes avançaram, num sentido existencial e estético, para a linguagem do rock progressivo, deslocando a doce Rita Lee, que deixou o grupo em 1973. Contudo, roqueira convicta, Rita juntou-se ao Tutti-Frutti e caiu na estrada. Hippies e cabeludos já eram muito discriminados e até presos no interior do país. Mas uma mulher liderando um grupo de rock parecia uma afronta insuportável.
Influenciados pelo exemplo dos Mutantes e Tutti- Frutti, dezenas de grupos desdobraram-se em variadas experiências – do rock visceral do Made In Brazil ao progressivo do Módulo 1000, passando pela psicodelia barroca do A Barca do Sol, pelo rock rural do Ruy Maurity Trio ou pela mistura de progressivo/erudito/música regional do O Terço, entre outros. Destacaram-se ainda O Peso, Bixo da Seda, Arnaldo Baptista & Patrulha do Espaço, A Bolha, O Som Nosso de Cada Dia, Veludo, Vímana e Sá, Rodrix & Guarabyra, além de bandas obscuras como Bango, Soma, Os Lobos, Utopia.
Mutantes e Tutti-Frutti tinham bom trânsito no showbiz devido ao sucesso alcançado na virada dos anos 60. Contudo, as bandas que surgiam, mais representativas do novo panorama, não encontravam a mesma facilidade. Eram obrigadas a exibir-se em pequenos espaços, para um público familiarizado com a contracultura, em sessões consideradas malditas como as Noites do Curtisom, no Rio de Janeiro. Essas bandas preferiam a admiração de seu (restrito) público a um possível “prestígio” no showbiz a custo de concessões que consideravam uma ignomínia. Escolhiam a marginalidade como condição de uma pureza existencial que era sua conquista. Pode-se dizer que eram malditos por opção.
Alguns desses grupos foram enquadrados no chamado rock pauleira, ou hard rock; outros no rock progressivo. Para alguns observadores, a adoção dos estilos hard e progressivo, pela agressividade de um e o virtuosismo do outro, desprezava o mercado. Mas a intenção desses grupos era formar um novo público.
Diante do panorama do rock brasileiro até aqui, a estética adotada pela nova geração causava um choque. Nada de vida comunitária, casa no campo, vira homem, vira lobisomem. Era como se uma horda de bárbaros tivesse desembarcado para assombrar o rock brasileiro com guitarras pesadas, bruma alcoólica e cara de mau. No entanto, alguns tinham ligação com outros gêneros. O Terço, por exemplo, tinha conexões com o rock rural. Nem por isso deixou de ter grande prestígio nos anos 70. Com o segundo disco, Terço (1973), Sergio Hinds (guitarra, vocal), César das Mercês (baixo) e Vinícius Cantuária (bateria) adotaram o progressivo. Criaturas da Noite (1975), o LP seguinte, já com Flávio Venturini (teclados, viola, vocal), é tido como um clássico do “rock bandido”.
Alguns desses malditos se tornaram folclóricos no cenário brasileiro. É o caso do Made in Brazil. Na estrada desde o final dos anos 60 (até hoje!), passaram por mais de 50 formações, mas sempre em torno dos irmãos Celso (baixo) e Oswaldo Vecchione (guitarra). O som pesado e a imagem glitter reforçada pelo espalhafatoso vocalista Cornélius Lúcifer se tornaram lendári0s.
Em São Paulo, havia um grande esforço da Continental (especializada até então em discos populares e sertanejos) em registrar a cena roqueira. Sob direção do produtor Pena Schmidt, a companhia abrigou nomes como O Som Nosso de Cada Dia, banda glitter do tecladista Manito (ex-Incríveis), e Bixo da Seda, a nova encarnação do Liverpool. Apesar de diversas apostas, como os progressivos do Pão com Manteiga e o glitter-black de Paulo Bagunça & Tropa Maldita, a única (e largamente compensatória) a alcançar o sucesso popular foi o Secos & Molhados.
Apesar da opção marginal, alguns grupos se valeram dos festivais televisivos. Em 1972, A Bolha e O Peso participaram do VII Festival Internacional da Canção (FIC), da Rede Globo. O primeiro, que começou com o nome The Bubbles em 1966 e chegou a acompanhar Gal Costa ao vivo na Europa, optou por uma sonoridade mais pesada após assistir a Jimi Hendrix e The Who no Festival de Wight, na Inglaterra (1970). Os músicos decidiram rebatizar a banda e foram apontados como a melhor do FIC. No ano seguinte, gravaram Um Passo à Frente e, em 1975, participaram do festival paulista Banana Progressiva realizado no Teatro da Fundação Getulio Vargas, entre maio e junho. O Peso, por sua vez, foi criado no Ceará pelo vocalista Luís Carlos Porto. Foi ao Rio participar do FIC defendendo a música “Pente”, que falava sobre fechar um baseado com um pente – e fez sucesso entre os “iniciados”. O grupo lançou um clássico LP, Em Busca do Tempo Perdido, antes de acabar, em 1977, com um campo profissional bastante limitado graças à fama de drogados e arruaceiros.
Outro que sucumbiu frente à má fama foi o Casa das Máquinas. Formado em 1973 por Netinho (ex-Incríveis) e Pisca (ex-Som Beat), o grupo trilhava o hard rock no início, mas flertou com o progressivo em Lar de Maravilhas e com o revival do rock’n’roll em Casa de Rock, de 1976 – este, considerado seu melhor álbum. Entretanto, após uma briga entre o vocalista Simbas e um cameraman da TV Record, em setembro de 1977 – que resultou na morte do funcionário –, a banda entrou em declínio até se separar, sete meses depois.
Medo e delírio
Uma característica da juventude que formava essa vanguarda roqueira era a valorização da loucura, ou seja, de estados mentais considerados anormais pela mentalidade “careta”. No novo contexto, dizer que alguém era “muito louco” era um elogio. Essa atitude tinha respaldo intelectual na antipsiquiatria dos britânicos Ronald Laing e David Cooper, para quem a viagem esquizofrênica era a única possibilidade de chegar a uma sanidade não alienada. A loucura é considerada uma tentativa de recuperar a unidade psíquica perdida na chamada “normalidade”, por meio de uma desestruturação da personalidade. Era o momento da eclosão da contracultura e das drogas psicodélicas – maconha, mescalina, cogumelos, ácido lisérgico. Timothy Leary anunciava uma mutação na espécie, abrindo as portas da percepção.
Alguns chegaram ao “lado escuro da Lua”. Arnaldo Baptista lançou-se do terceiro andar do Hospital do Servidor Público de São Paulo, em dezembro de 1982. Lanny Gordin ateou fogo nas mãos durante um solo de guitarra movido a LSD. O guitarrista original d’O Terço, Jorge Amiden, se afastou da música após uma bad trip da qual afirma nunca ter se recuperado totalmente. Luiz Carlos Porto, d’O Peso, passou parte dos anos 80 e 90 alternando estadias na casa dos pais e em sanatórios cearenses.
Contudo, a estética “muito louca” rendeu grandes bandas de cunho psicodélico/progressivo. O Módulo 1000, surgido em 1969 no Rio de Janeiro, foi usado por José Mojica Marins no drug-movie Ritual de Sádicos, interditado pela Censura. O grupo chegou a lançar 0 pesado e lisérgico Não Fale com Paredes (1975). Uma banda-irmã do Módulo era a Veludo Elétrico, surgida no mesmo ano no Rio, que trilhou o circuito “maldito” da época misturando hard rock, blues, progressivo e leves pitadas de MPB, mas não chegou a gravar.
Em 1974, Candinho e Luiz Paulo Simas (baterista e tecladista do Módulo 1000) e Fernando Gama e Lulu Santos (baixista e guitarrista do Veludo Elétrico) juntaram forças no Vímana. Logo depois, entraram Ritchie (ex-A Barca do Sol) e João Luís Woenderbarg (o Lobão, na bateria, substituindo Candinho). Apesar de cultuado na época e, principalmente, depois, o Vímana só deixou como registro o raro single Zebra. O grupo se dissolveu em 1977, após ter servido de banda de apoio do ex-tecladista do Yes, Patrick Moraz. E acabou integrando a extensa lista de bandas “que não foram”, ao lado de Moto Perpétuo, Terreno Baldio, Lôdo, Phetus e outros.
E, falando em alucinações, o Relatório 002, emitido em fevereiro de 1975 pelo Dops da Guanabara, conclui que o festival Hollywood Rock, produzido por Nelson Motta, era uma grande celebração da “atração pelo ilegal”. O informante conta que, depois do show dos Mutantes, “a maioria dos jovens fez uso de cigarros, que, pelo modo com o qual os manipulavam, dava a nítida impressão de tratar-se de maconha”. Segundo o comissário Deuteronômio Rocha dos Santos, o evento servia para “o aliciamento, envolvimento e dependência química da juventude, tornando-a escrava da droga para, mediante chantagem e comprometimento, formá-la como novos informantes e agentes fiéis do comunismo”.
A ligação entre drogas e comunismo não era oficial. A coexistência de um regime autoritário, como a ditadura militar, e uma manifestação artística libertária, como o rock’n’roll, entretanto, não espanta. O rock americano foi em determinado momento um subproduto do protesto contra a Guerra do Vietnã – e o brasileiro, da resistência à ditadura. Quanto mais rígida a censura, maior a disposição de nossos roqueiros de não fazer concessões ao poder “careta”.
Há quem considere os anos 70 uma década perdida porque os artistas não conquistaram o mercado. Contudo, eles foram decisivos na evolução do rock. O pior do que se faria nos anos 80 – as concessões pop, a subordinação aos ditames do showbiz, a industrialização – não passa de um desvio do indômito espírito anterior. E as maiores qualidades do rock que se fez depois – a liberdade, a audácia, o inconformismo, a ironia – foram herdadas diretamente dos que optaram pela maldição.
1974
FEVEREIRO
• Show do Secos & Molhados no Maracanãzinho (RJ) bate recordes de público no local.
MARÇO
• Assume o presidente Ernesto Geisel
• Alice Cooper se apresenta no Parque Anhembi, em São Paulo.
JUNHO
• Chega às lojas Gita, segundo álbum e maior sucesso da carreira de Raul Seixas.
AGOSTO
• Surgem, em Nova York, os Ramones.
• No dia do lançamento de seu segundo álbum, desfaz-se a formação original do Secos & Molhados.
OUTUBRO
• Estréia no Rio a primeira peça encenada pelo grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone: uma adaptação de O Inspetor Geral, de Gogol
• Pelé despede-se do futebol.
• Peter Gabriel deixa o Genesis.
1975
JANEIRO
• Começa em Iacanga, São Paulo, o primeiro Festival de Águas Claras.
MARÇO
• Cresce no exterior o número de comitês pela anistia aos presos políticos no Brasil.
ABRIL
• Acaba a Guerra do Vietnã.
MAIO
• Abertura do festival Banana Progressiva, em São Paulo, com Erasmo Carlos, Vímana, Veludo e A Bolha.
JUNHO
• Pelé retorna ao futebol, no New York Cosmos.
• Morre de overdose aos 28 anos, o músico de folk Tim Buckley.
OUTUBRO
• O jornalista Wladmir Herzog é morto sob tortura no DOI-Codi, em São Paulo.
NOVEMBRO
• Bill Gates cria o termo “micro-soft” numa carta para seu amigo Paul Allen.
DEZEMBRO
• Rick Wakeman traz sua Viagem ao Centro da Terra ao Brasil.
1976
FEVEREIRO
• A disco music é detonada com o single Love to Love You Baby, de Donna Summer, produzida por Giorgio Moroder.
ABRIL
• Morre a estilista Zuzu Angel, mãe do militante Stuart Angel, num estranho acidente de automóvel.
• Steve Jobs e Steve Wozniac criam a empresa Apple Computers.
MAIO
• Abertura do festival Som, Sol e Surf, em Saquarema (RJ), com atrações como Made in Brazil, Rita Lee, Raul Seixas e Bixo da Seda.
• Estréia no Festival de Cannes, na França, o filme Império dos Sentidos.
JULHO
• Gilberto Gil é preso com maconha em Florianópolis, Santa Catarina.
AGOSTO
• Ocorre o Primeiro Festival Punk, na Europa, no sul da França, sem a presença do Sex Pistols (expulso devido a seu comportamento).
• Sai a primeira edição do célebre fanzine Sniffin’ Glue.
• Rita Lee é presa em São Paulo por porte e uso de maconha.
NOVEMBRO
• A firma Microsoft, de Bill Gates e Paul Allen, é registrada oficialmente.
1977
ABRIL
• A polícia canadense detém Keith Richards com drogas em quantidade suficiente para enquadrá-lo como traficante.
MAIO
• Estréia o filme Guerra nas Estrelas, de George Lucas.
• Lançado o disco Beatles Live at the Holywood Bowl, com gravações ao vivo dos anos 60.
JUNHO
• Aprovada a Lei do Divórcio no Brasil.
AGOSTO
• Morre Elvis Presley.
OUTUBRO
• Sai Never Mind the Bollocks, único álbum do Sex Pistols.
DEZEMBRO
• Estréia nos Estados Unidos o filme Os Embalos de Sábado à Noite.
O guitarrista: Luiz Carlini
Se durante sua carreira Luiz Carlini tivesse feito apenas o solo de “Ovelha Negra”, seu nome já estaria garantido no hall da fama do rock brasileiro. Mas ele também acompanhou Rita Lee, Guilherme Arantes e Erasmo Carlos, tocou com Titãs, Barão Vermelho e Camisa de Vênus, e, segundo suas contas, gravou em 400 discos. “Toco até em fita-demo”, afirma. “Ligam em casa pedindo uma força, nem sei quem é, mas vou.” Ele também conta a história de quando deixou sua festa de aniversário para gravar com o Golpe de Estado. Na época do Tutti-Frutti, Carlini escutava Rolling Stones e Johnny Winter o dia inteiro. Com o disco Entradas e Bandeiras, foi eleito o melhor guitarrista de 1976 pelo jornal Rolling Stone. O solo melódico de “Ovelha Negra”, do disco Fruto Proibido, o marcou para sempre. “Näo queriam que eu fizesse, pois já imaginavam que seria um hit. Mas depois que toquei, não deixaram fazer outro take.” O produtor norte-americano Andy Mills tirou a fita da máquina para que nenhuma nota fosse alterada. “Certa vez, num hotel em Belém do Pará, uma moça, índia, entrou para limpar o quarto assobiando o solo. Fiquei me perguntando como tinha conseguido atingir aquela pessoa, tão distante e de cultura tão diferente. Estava descobrindo o poder da música”, filosofa.