Texto Alexandre Matias
Como previa o tropicalismo, o samba reinventou o rock brasileiro. Se nos anos 90 o gênero trazia à mente pagodeiros almofadinhas, à medida que o século foi chegando ao fim, esse que é um dos únicos fatores de identificação nacional do brasileiro reverberou na genética cultural dos mais diversos e visionários artistas jovens. Era a revitalização de dois gêneros musicais que pareciam fadados a se repetir: o samba e o rock’n’roll
“Tínhamos uma coisa da música brasileira como subversão, saca? Pela sacanagem mesmo”, explica Marcelo D2.
“Não é que a geração do Planet Hemp, a dos anos 90, não gostasse de samba, de forró ou de música brasileira, mas a gente colocava esses elementos porque as pessoas não gostavam, por birra. Naquelas de ‘vamos colocar samba aqui no meio, porque neguinho odeia samba, vai ser legal’. E colocava.” D2 cita entre os exemplos o forrocore dos Raimundos, o samba no Planet Hemp ou Bezerra da Silva participando do primeiro disco do Rappa. “Acho que quem tinha consciência disso, desde o início, era o pessoal do mangue beat – a Nação, o Mundo Livre S/A, o Jorge Cabeleira… Eles usavam esses elementos não como resgate, nem como brincadeira, mas como parte da sonoridade deles. De qualquer maneira, nossa geração era mais ligada em música brasileira do que a que veio em seguida – a do Charlie Brown Jr., do CPM 22 e da Pitty –, que é mais próxima do rock dos anos 80.”
D2 é só a ponta (sem trocadilhos) do iceberg que flutua nas águas da atual música pop nacional. Seu Eu Tiro É Onda, o primeiro trabalho fora do Planet Hemp e a propor a contração entre hip hop e samba, foi lançado no mesmo 1998 em que dois protagonistas do mangue beat explicitavam seu apreço ao ritmo-mãe nos títulos dos discos – o Samba pra Burro, de Otto, e o Carnaval na Obra, do Mundo Livre S/A. No mesmo ano, os cariocas Los Hermanos lançavam sua primeira demo tape, Amor e Folia, levando o Carnaval às praias do hardcore e da jovem guarda. Dois anos antes, Chico Science & Nação Zumbi saudavam o gênero fazendo a ponte afropop, via “Samba Makossa”, enquanto o Skank batizava seu maior sucesso de O Samba Poconé.
Aliás, títulos de discos deixam as coisas ainda mais evidentes, e a lista é gigantesca, incluindo o Sambatown, de Marcos Suzano (1996); o Samba de Gringo Paulista, do produtor iugoslavo Suba (2001); o Sambaland Club, de Wilson Simoninha (2002); o Swing & Samba Rock, do Clube do Balanço (2001); o Samba Esporte Fino, de Seu Jorge (2001); o Samba Raro, de Max de Castro (1999); o Samba Esquema Noise, do Mundo Livre S/A (1994); o Rádio S.Amb.A., da Nação Zumbi (1999); o Terceiro Samba, de Mestre Ambrósio (2001); o Fuloresta do Samba, do rabequeiro Siba (2002); o Salsa Samba Groove, de Guga Stroeter (2001); o Sambadelic, de Rica Amabis (o disco que deu origem ao coletivo Instituto, de 2000); o Samba Soul, de Ivo Meirelles (2001), além de dois discos que ressuscitaram nomes que deflagraram gêneros inteiros, os auto-explicativos Samba Rock, do Trio Mocotó (2001); e Samba Jazz!!, de J.T. Meirelles (2002). Isso sem contar aquelas formações que carregam o gênero no nome, como o pernambucano Bonsucesso Samba Clube, o candango Satanique Samba Trio e o selo paulistano de drum’n’bass Sambaloco.
Isso só considerando quem ostenta a palavra “samba”. Mas, dissecando boa parte do pop produzido entre os anos 90 e a primeira década de 2000, percebemos a onipresença do gênero no inconsciente auditivo atual, que vai além das constantes citações feitas por D2, Marcelo Camelo ou Fred Zero Quatro. A fusão do samba com funk, música de raiz, som eletrônico, hip hop, pop e quaisquer outros gêneros funcionou em diferentes níveis e veio de diferentes regiões do país – do paulistano Rappin’ Hood ao alagoano Wado, incluindo a paulista Fernanda Porto, os pernambucanos Eddie, o carioca Acabou La Tequila, o Instituto, o MC Black Alien, o sound system Stereo Maracanã, os eletrônicos Zémaria e Bojo, o curitibano Woyzeck, os samples dos Racionais MC’s e a participação de Carlinhos Brown em um disco do Sepultura. Esses e vários outros artistas reverberam a mesma toada dos anos 40, agregadas de elementos associados à tal modernidade.
Trilha sonora da vida de qualquer um nascido por estas terras, o samba sempre conversou com outros gêneros musicais, dando gás, em diferentes momentos, ao rock brasileiro – dos chacunduns de Erasmo Carlos ao groove pesado de Tim Maia, das justaposições tropicalistas ao hippismo dos Novos Baianos, sendo preservado até mesmo pelo rock dos anos 80, que tanto o pisoteou na então ultrapassável MPB – se o popstar verde-amarelo ironizava Chico e Caetano a ponto de esses dois baluartes se unirem num programa de TV na Globo para fazer frente ao pop oitentista, esse mesmo personagem reverenciava o samba, seja em referências brincalhonas da Blitz, do DeFalla, seja em incursões experimentais com guitarras e pose cult, em grupos como Picassos Falsos, Black Future (do Rio de Janeiro) e Fellini (de São Paulo).
“Havia uma distância muito grande entre os artistas dos anos 80, que se comportavam como astros intocáveis, e os artistas da minha geração”, continua D2. “Pesa muito o fato de o rock brasileiro dos anos 80 sempre ter negado a música brasileira. Isso fez com que ela se tornasse algo quase subversivo para as bandas dos anos 90.”
Reposição musical
Outro fator fundamental para esse renascimento foi o advento do CD. Com o disco prateado substituindo definitivamente o vinil em escala industrial, as gravadoras brasileiras começaram a soltar seu catálogo em formato digital. Demorou e foi preciso uma pressão informal incluindo artistas, DJs, jornalistas e pirateiros para que o acervo das majors fosse devidamente garimpado e chegasse novamente às prateleiras. “Outro dia mesmo, eu assistia na TV a uma entrevista com o Lulu Santos e ele falava que tava ouvindo muito um disco do Walter Wanderley, dos anos 60”, emenda D2. “É engraçado, porque, quando eu vendia disco, ninguém queria ouvir isso, só se ouvia rock, rock, rock. O primeiro LP do Jorge Ben (Samba Esquema Novo) era fácil de achar. Hoje é um disco caríssimo.”
Mas antes dos CDs havia os LPs: “Meu instrumento é o sampler e eu percebi que os vinis eram meu futuro. A melhor coisa são os discos – pegar um trecho de uma música e recriar outra, que não tenha nada a ver. Comecei sampleando discos estrangeiros, mas logo passei para os discos nacionais. A primeira coisa que eu sampleei foi uma música do Tom Jobim, para fazer uma no meu primeiro disco, Eu Tiro É Onda, mas a mulher dele não autorizou o uso – então eu engavetei a música; letra, bases, tudo”.
Cacique sem tribo
“Tenho o maior orgulho quando vejo produtores gringos usando ou admirando a música brasileira. Orgulho dobrado quando descobrem coisas nos meus discos. Uma história legal quem me contou foi o Jocafi, da dupla Antonio Carlos & Jocafi, que disse que o filho não gostava do trabalho dele e só escutava rock novo – Charlie Brown, Pitty, Detonautas… Quando eu sampleei uma música deles para a base de ‘Qualé?’, do Acústico da MTV, ele começou a respeitar a música do pai. Imagina isso… Se o próprio filho do Jocafi descobriu a música do pai num disco meu, imagina quantas pessoas também podem descobrir!”
Mesmo gravando com grandes nomes, como João Donato, Wilson das Neves e Dom Um Romão, Marcelo não se considera fã do cânone tradicional da música brasileira. “Não curto MPB, não… Caetano, Gil, acho isso meio caído. Mas também não sou contra, é só o meu gosto que não bate”, explica. “Curto mesmo é samba, partido-alto. Eu queria era gravar com o pessoal do Cacique de Ramos, que é a turma que inventou o pagode nos anos 80, fazendo embaixo de uma tamarineira o que a gente do hip hop faz hoje, que é o freestyle.”
Entre os nomes que saíram dessa geração estão bambas de peso, como Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e Sombrinha, Almir Guineto, Jorge Aragão, o lendário grupo Fundo de Quintal, Jovelina Pérola Negra, Beth Carvalho, entre outros. “Esse pessoal inventou de usar instrumentos que estão aí até hoje, como o tantã, o repique de mão, o banjo de samba… Queria gravar com essa rapaziada.”
Esse mesmo pessoal que modificou o samba nos anos 80 está à frente de um renascimento do gênero que também aconteceu na virada dos 90 para os primeiros anos de 2000. Enquanto Jorge Aragão (ex-Fundo de Quintal) vende milhões de disco e Beth Carvalho saúda novos nomes como Quinteto em Branco & Preto, Zeca Pagodinho grava um disco acústico para a MTV. “O Zeca é o grande responsável pelo samba de verdade, de raiz, ter voltado com força. Não que ele seja a figura mais importante do gênero, mas ele tem uma humildade, um respeito pela música, que faz com que ela sempre esteja em primeiro plano. Ao contrário de gente como Alexandre Pires, que você nem sabe qual é a música dele, mas pode encontrá-lo na última edição da Caras”, compara Marcelo D2.
Ele ainda cita João Gilberto como um dos nomes entre os quais gostaria de dividir o estúdio. “Eu já até cheguei a conversar com ele pelo telefone, mas ele é muito avesso ao contato, muito na dele. Pra mim, ele é uma lenda. Vai ver, nem existe”, ri, brincando.
“Mas o grande lance dessa entrada do samba no rock brasileiro é acabar com uma coisa que vinha desde os anos 80, as tribos, de quem ouve uma coisa não ouve outra. Música é música, e música boa é música boa, ponto final. Eu amo João Nogueira tanto quanto eu amo Bad Brains e não tenho nenhum problema com isso. A gente no Planet tem isso – sampleia Sonic Youth e Bezerra da Silva. O grande lance é quebrar o preconceito.”
2004
JANEIRO
• A comunidade virtual Orkut é lançada em parceria com o site de buscas Google, virando febre na internet, principalmente no Brasil.
• Britney Spears casa-se e separa-se em 55 horas.
FEVEREIRO
• O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei recebe 11 Oscar.
• Para o mesmo evento, Cidade de Deus recebe quatro indicações, entre elas a de melhor direção para Fernando Meirelles.
ABRIL
• Nilo Amaro, líder dos Cantores de Ébano, morre, aos 76 anos.
MAIO
• Nova edição do festival Rock in Rio ocorre em Lisboa, Portugal, com a presença de brasileiros como Charlie Brown Jr. e Gilberto Gil.
• O documentário Fahrenheit 9/11, de Michael Moore, ganha a Palma de Ouro em Cannes.
• Último episódio do seriado Friends vai ao ar nos Estados Unidos.
JUNHO
• Morre Leonel Brizola.
• Morre o ex-presidente dos EUA Ronald Reagan.
• Morre o cantor e compositor Ray Charles, aos 73 anos.
• O Velvet Revolver, banda de Slash, Duff e Matt Sorum, ex-Guns N’ Roses, lança seu álbum de estréia.
AGOSTO
• O DJ Marlboro estréia noite quinzenal no Lov.e. O funk carioca, até então relegado aos morros, chega às casas “modernas” de São Paulo.
• Os Jogos Olímpicos são realizados em Atenas, na Grécia.
SETEMBRO
• A Microsoft lança a MSN Music, loja de música online em resposta à iTunes.
• Morre Johnny Ramone, o ex-guitarrista dos Ramones.
OUTUBRO
• Morre o ator Christopher Reeve, aos 52 anos, o famoso Super-Homem do cinema.
• Morre o escritor Fernando Sabino.
NOVEMBRO
• George W. Bush é reeleito presidente americano.
• O ex-beach boy Brian Wilson se apresenta no Brasil.
O personagem: Sabotage
Entre os dois mundos que dividem as grandes cidades do país, Sabotage era o cara com mais “proceder” para coabitá-los. Valia-se de rimas construídas numa métrica toda própria, atuações carismáticas no cinema e um vozeirão que fazia bonito em qualquer estilo musical. Mauro Mateus dos Santos, o Sabotage, vivia na favela do Canão, no Brooklin (SP). Fã de Pixinguinha, Chico Buarque e Zeca Pagodinho, ele não se cansava de divulgar o rap como uma opção para os jovens carentes. “O rap me salvou, me resgatou”, afirmava após gravar Rap É Compromisso, seu álbum-solo. Em 2001, ele estava nas lojas de discos, cantando cinco músicas na trilha de O Invasor, além de fazer uma ponta no filme de Beto Brant– seu trabalho real era ensinar as gírias da bandidagem para o novato ator Paulo Miklos, dos Titãs. Outro cineasta com quem trabalhou foi Hector Babenco, no filme Carandiru (2003). Sua grande performance, contudo, foi registrada no disco Coleção Nacional, do grupo Instituto. “Cabeça de Nêgo” apresentava a voz rouca e modulada na levada do samba, numa interpretação admirável. Porém, na manhã de 24 de janeiro de 2003, quatro tiros disparados à queima-roupa calaram Sabotage. Ele deixou a esposa, Maria Dalva, os três filhos e toda uma geração do rap órfãos.