O adultério imortal
O segundo escândalo era literário. O livro ajudou a inaugurar o Realismo, movimento artístico que pretendia reproduzir com exatidão o meio social vigente.
Leandro Sarmatz
Capitu traiu? Capitu não traiu? Esqueça, ao menos por ora, o dilema proposto por Machado de Assis em Dom Casmurro. Emma, protagonista do romance Madame Bovary, do francês Gustave Flaubert (1821-1888), traiu. E gostou. Seu adultério chocou a França a ponto de o romance ser oficialmente censurado. Ninguém podia tolerar a denúncia do vazio da vida burguesa empreendida pelo autor.
Publicado em 1857 – e recentemente reeditado no Brasil pela Nova Alexandria, com tradução de Fúlvia Moretto –, Madame Bovary causou dois escândalos. O primeiro e mais óbvio dizia respeito ao enredo do livro. A história sobre a segunda esposa do jovem e pacato médico Charles Bovary, que, de tanto ler novelas românticas, começa a deplorar a vida morna que leva com o marido e é arrastada para o adultério, bagunçou o coreto da literatura de bons modos. Poucas vezes, até então, a realidade aparecera de forma mais concreta e palpável.
O segundo escândalo era literário. O livro ajudou a inaugurar o Realismo, movimento artístico que pretendia reproduzir com exatidão o meio social vigente. Mais do que apenas integrar as fileiras duvidosas de uma patota literária, o estilo preciso e perfeito de Madame Bovary vem influenciando sucessivas gerações de romancistas, do checo Franz Kafka ao peruano Mario Vargas Llosa, que, um dia, escreveu assim sobre a personagem adúltera da obra: “Ela violenta os códigos do meio estimulada por problemas seus, não em nome da humanidade, de certa ética ou ideologia”.