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O mundo paralelo da cultura pop evangélica

Em 2032, eles serão a maioria da população brasileira. Para atendê-los, há versões cristãs de tudo que é profano: sertanejo com letra gospel, drinks sem goró e Tinder pra quem escolheu esperar. Entenda como esse nicho bilionário do entretenimento está redesenhando os finais de semana pentecostais.

Por Camila Barros
11 abr 2025, 10h00

Cresci como a típica criança de família evangélica dos anos 2000. Bíblia ilustrada do Smilinguido, CDs da Aline Barros e idas regulares à escola dominical – espaço em que os fiéis mirins ouvem suas primeiras pregações. Foi lá que conheci o seguinte princípio: “viver em Cristo é abdicar do mundo”. Significa que, ao se converter, o fiel deve se afastar dos valores e hábitos de antes – e encarar com ceticismo tudo que é cultura não cristã.

Por isso, minha mãe nunca foi muito de explorar gêneros musicais. Ela se restringia a ouvir worship, um subgênero do gospel caracterizado por sustentações vocais, bateria marcada e uma progressão no teclado que comove a plateia (para uma referência da cultura pop: meio “Yellow”, do Coldplay). No Brasil, foi o primeiro estilo gospel a estourar, ali no fim dos anos 1990, e segue como o mais popular entre os evangélicos.

Mas algo tem mudado. Recentemente, flagrei mamãe ouvindo uma música eletrônica daquelas estilo Avicii e David Guetta, bem populares em baladas nos anos 2010. Já a letra era bem diferente do que se ouvia nas festas: “Deus preparou pra mim / Um novo lar / O céu é o meu lugar”.

Com quase 20 milhões de streams no Spotify, a canção faz parte de playlists gospel que compilam gêneros, até há pouco tempo, incompatíveis com as letras de adoração: eletrônica, sertanejo, trap, pagode (sabiamente nomeado pa-GOD).

A aparição de novos subgêneros acompanha o crescimento acelerado da indústria dos louvores no País. No Spotify, a busca pelo termo “gospel” aumentou 93% em dois anos até fevereiro de 2024 – isso depois de um boom semelhante durante a pandemia.

Hoje, o Brasil já é o país que mais consome o gênero na plataforma. No YouTube, a lista de clipes mais acessados em 2024 inclui dois louvores em um ranking tradicionalmente dominado pelo sertanejo e pelo funk.

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A repercussão é tão grande que, no ano passado, o presidente Lula sancionou uma lei que define 9 de junho como o Dia Nacional da Música Gospel – num aceno para a cada vez mais influente parcela evangélica do eleitorado.

Trata-se de um fenômeno relativamente recente na história do Brasil, que até a proclamação da República, em 1889, se definia como um Estado católico. Na primeira metade do século 20, os evangélicos representavam menos de 3% dos brasileiros, concentrados fundamentalmente nas periferias urbanas.

“A ética pentecostal pedia um afastamento do mundo. Um estilo de vida coerente para as primeiras gerações de crentes brasileiros, concentradas nas classes baixas e mais conformadas com não saírem de onde estavam”, descreve a jornalista Anna Balloussier no livro O Púlpito: fé, poder e o Brasil dos evangélicos. “Deus os compensaria na vida que importa, a eterna. Era só ter paciência.”

Foi só a partir da década de 1980 que a porção evangélica começou a ganhar corpo e ocupar espaços na mídia e na política – a Bancada Evangélica, hoje um dos grupos mais influentes do Legislativo, nasceu em 1986, com
32 congressistas.

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Naquela época, 6,6% da população se considerava evangélica. E o que veio em seguida foi uma verdadeira multiplicação de peixes no Mar da Galileia: em 2010, o Censo já contabilizava 22,2%. O IBGE ainda não divulgou os resultados da pesquisa de 2022, mas estimativas paralelas falam em 27% a 34%.

Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que 70% dos 124 mil estabelecimentos religiosos brasileiros pertenciam a algum braço evangélico em 2021. A maior força vem dos pentecostais e neopentecostais, que contabilizam 64 mil templos Brasil afora.

Nascida nos EUA no início do século 20, a vertente pentecostal é caracterizada por um estilo de culto mais performático que as correntes evangélicas tradicionais, como adventistas e metodistas. Durante as pregações, os pastores falam alto e fazem sons que não formam palavra alguma (na tradição cristã, diz-se que “falam em línguas”).

Já o neopentecostalismo, vale dizer, é um conceito acadêmico – nenhum fiel se reconhece assim. Ele serve para classificar quem prega a tal teologia da prosperidade, filosofia que associa a fé ao sucesso financeiro e diz que Deus recompensa materialmente seus melhores discípulos. Alguns de seus maiores expoentes são Edir Macedo, dono da Igreja Universal, e o coach-ex-candidato-a-prefeito Pablo Marçal.

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Embora não seja, nem de longe, unânime entre os evangélicos, a popularização dessa filosofia tem ajudado a tornar a relação entre o sagrado e o profano mais maleável. Já há quem não condene mais o consumismo nem a busca por certos prazeres mundanos. “Para crer, não é mais preciso correr longe das ‘coisas do mundo’ que tanto horrorizavam a velha guarda. Basta adaptá-las aos preceitos cristãos”, escreve Balloussier.

Nasceu assim todo um mercado de produtos com roupagem cristã, que vai muito além dos gêneros moderninhos da indústria gospel: inclui moda fitness evangélica, baladas open bar (com drinks não alcoólicos) e Tinder para encontros cristãos. A associação de empresas evangélicas Abrepe estima que, em 2021, esse setor tenha movimentado cerca de R$ 16,5 bilhões no Brasil.

E a tendência é que siga crescendo. Afinal, essa deve se tornar a religião predominante por aqui já na próxima década – um estudo de José Eustáquio, demógrafo ex-IBGE, prevê 2032.

Para entender esse novo zeitgeist, não dá para se limitar a simplificações. Apesar de ter feito barulho nos últimos anos, a teologia da prosperidade segue rejeitada pela maioria das vertentes da religião. E, mesmo entre as neopentecostais, a Igreja não se resume a pastores picaretas justificando sua riqueza. É preciso lembrar, afinal, que esses espaços seguem compostos sobretudo de grupos marginalizados. Segundo o Datafolha, em São Paulo, os templos evangélicos têm uma maioria de mulheres (58%), negros (67%) e pessoas com renda de até três salários mínimos (80%).

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Há ainda discussões internas sobre qual deve ser a postura da religião, com correntes de fiéis argumentando que adotar linguagens e espaços contemporâneos ajuda a aproximar mais pessoas da Igreja – enquanto outras consideram que a fé deve permanecer como um refúgio daquilo que é considerado pecado.

Na prática, o código de conduta se adapta aos gostos e preconceitos do fiel. Mamãe, por exemplo, ouve música eletrônica, mas ainda se recusa a pular carnaval, mesmo que ao som de marchinhas gospel. Nada de pa-GOD, por enquanto.

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