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O mundo secreto das palavras cruzadas

Elas têm suas próprias celebridades, torneios e gambiarras. E até uma lista proibida. Saiba como são feitas as cruzadinhas - e por que elas quase mudaram a história mundial

Por Alexandre Carvalho dos Santos
Atualizado em 31 out 2016, 19h02 - Publicado em 24 jun 2010, 22h00

 

Maio de 1944, vésperas do desembarque dos Aliados na Normandia. Com o clima tenso, o pessoal do serviço de inteligência britânico dá uma relaxada com as cruzadinhas do jornal Daily Telegraph. Mas há algo suspeito: o jogo está cheio de palavras ligadas ao planejamento do Dia D. Como “Utah” e “Omaha”, praias em que as forças americanas desembarcariam. “Mulberry”, nome de um porto temporário que os Aliados usariam. E – o pior de todos – “Overlord”, o código para toda a operação que levaria ao fim da 2ª Guerra Mundial.

Poderia uma cruzadinha ser instrumento de espionagem para os alemães? Os britânicos resolveram investigar. Interrogaram o autor das cruzadas, que alegou ter adicionado as palavras por sugestão de colaboradores – entre eles, um grupo de soldados americanos, acostumados a usar aqueles termos na rotina. O caso acabou engavetado. Mas, se os alemães tivessem prestado atenção àquelas cruzadas, a história do século 20 poderia ter sido diferente.

Poderiam ter transformado o mundo. Mas, em geral, fazem parte das experiências mais banais da nossa vida: viagens de ônibus, cafés da manhã, domingos chuvosos. São um passatempo. Quer dizer, não pra todo mundo. Tem gente que leva a coisa a sério: os profissionais das cruzadas.

Eles se referem a si mesmos como “construtores”. É o nome oficial de quem constrói um jogo de palavras cruzadas. Os construtores formam uma irmandade de autores anônimos, sem celebridades. Diga lá: nome do editor de cruzadas mais conhecido do mundo, com 10 letras. A menos que você seja um aficionado por cruzadinhas, não deve saber a resposta. (Calma, ela vai aparecer daqui a pouco na reportagem.) Tudo bem, alguns famosos até se aventuraram nesse ofício, como Vladimir Nabokov e Manuel Bandeira. Mas o grosso da mão de obra é de professores, estudantes universitários, médicos, engenheiros.

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Um pelotão de colaboradores com formações tão diferentes é uma estratégia da indústria das cruzadinhas. A diversidade garante uma receita equilibrada de temas nas cruzadas. “Nos ajuda a ter conteúdos que enriqueçam o conhecimento do leitor”, diz Henrique Ramos, diretor da Ediouro, que publica as revistas de cruzadinhas Coquetel, as mais vendidas na área de passatempos no Brasil.

Para criar as cruzadinhas da Coquetel, 75 pessoas quebram a cabeça, entre funcionários e colaboradores externos. Como Norma Nascimento, de 54 anos. Formada em jornalismo e pós-graduada em educação a distância, ela é assessora legislativa da Câmara Municipal de Ubá, Minas Gerais. Há 30 anos escreve cruzadinhas. “Gosto de compartilhar conhecimento com os leitores”, diz. Entre as palavras e expressões que costuma usar estão LEI MARIA DA PENHA (que coíbe violência contra a mulher), AQUECIMENTO GLOBAL e DOUTORES DA ALEGRIA.

Norma diz ganhar mais dinheiro com as cruzadinhas do que com seu emprego público, mas prefere não revelar os valores. Na Ediouro, o pagamento vai de R$ 11 por um jogo bem fácil a R$ 100 por um difícil. Para um construtor experiente, isso dá até R$ 4 mil por mês trabalhando 6 horas por dia (com folga aos fins de semana). É um salário maior do que o de um médico ou um contador em início de carreira em São Paulo. Nos EUA, o trabalho rende mais dinheiro. O New York Times, maior referência em cruzadas, paga US$ 200 por jogos fáceis e US$ 1 000 pelos mais difíceis.

Nem sempre a indústria das cruzadinhas funcionou com tanta gente. Elas nasceram da cabeça e do vocabulário de uma só pessoa: Arthur Wynne, inglês que migrou para os EUA e trabalhou como editor do jornal New York World. Em 1913, ele publicou a primeira cruzadinha. Os leitores pediram mais. A coisa se espalhou pelo mundo, sempre com um tom sisudo. “As respostas eram baseadas em termos que só existiam no dicionário”, afirma Ramos. Sim, mas isso até gente como Will Shortz entrar na jogada.

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Palavras do povo
Shortz é o editor de cruzadas do New York Times. E a maior celebridade da área (aí a resposta para a pergunta que fizemos antes). Assumiu o cargo em 1993, no lugar de um professor de latim. A formação de Shortz era diferente – enigmatologia, estudo das palavras cruzadas, charadas e quebra-cabeças. Detalhe: ele é o único no mundo com essa formação. O próprio Shortz criou o curso na Universidade de Indiana (a faculdade permitiu), pedindo aulas a professores de disciplinas como inglês, matemática e lógica. No jornal americano, resolveu dar uma cara mais popular às cruzadas. “Eu adoto uma linha ligada ao dia a dia dos leitores”, diz. Os jogos incorporaram termos coloquiais, marcas e trocadilhos. “Foi uma revolução mundial”, diz Sérgio Ximenes, autor e pesquisador de cruzadinhas.

Mas não dá pra dizer que abriram a porteira. Nos EUA, os jogos raramente têm palavras ligadas a sexo, crimes hediondos ou doenças. Os construtores acham que ninguém quer formar a palavra DIARREIA no café da manhã. No Brasil, evita-se o destaque a bandidos. A política de “não apelar” também impõe outra regra nos EUA: nada de respostas de uma ou duas letras. É para evitar gambiarras. Respostas assim são usadas quando o jogo já está preenchido por termos importantes ao tema ou à dificuldade da cruzadinha, e é preciso fechar os espaços restantes. Nos EUA, mais de 7% das cruzadas têm a palavra “ERA” (que em inglês também significa período de tempo). Norma, a construtora de Ubá, gosta de usar CÃO, MAR e L para quebrar um galho.

Norma, aliás, é só a ponta de uma longa linha de produção. Nas maiores empresas de cruzadinhas, a equipe é grande. Tem um “criador”, que pesquisa conteúdo e escolhe as respostas. Outra pessoa faz a pergunta. É ela que torna as cruzadas uma moleza ou um desafio (para a resposta PALMEIRAS, a pergunta pode ser “time de futebol da capital paulista” ou “plantas de porte arbóreo, cuja família inclui o dendezeiro”). Ainda existe o avaliador, que checa se as perguntas estão no tema e dificuldade da cruzadinha, um editor, e resolvedores, que testam o jogo.

Nos EUA, as equipes se reúnem em um torneio de cruzadinhas anual. Lá encontram os fãs de palavras cruzadas, que também participam do concurso. Em fevereiro, mais de 600 pessoas participaram. Gente tão fanática que circula pelo evento com camisas estampadas de palavras cruzadas, e aproveita os intervalos da competição para brincar de… cruzadinhas! Ou seja, só vá a essa grande festa se você for um aficionado. Ou um sinônimo disso, com 4 letras – a resposta 5 da cruzadinha que abre esta reportagem.

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As escolas das cruzadas
Os estilos que se cruzam pelo mundo

Americano
Baseado em temas. Geralmente 4 respostas longas têm relação com um tema oculto, que deve ser descoberto pelo leitor. Como as cruzadas nasceram nos EUA, se replicou por muitos países.

Inglês
Cruzadas crípticas e complexas dominam. Nelas, a dica é uma charada. É preciso pensar em ditados e anagramas e inverter palavras para chegar à resposta.

Francês
Pistas piadistas. A resposta para “Sharon Stones” seria “Intifada”, um jogo com o nome de Sharon Stone que significa “pedras de Sharon” (referência ao ex-primeiro-ministro de Israel).

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Sueco
É o que predomina no Brasil. As pistas são diretas e aparecem dentro do jogo. Também é popular em países nórdicos, na Alemanha e no Leste Europeu.

Para saber mais
Crossworld
Marc Romano, Broadway, 2006.

Palavras Cruzadas (documentário)
Patrick Creadon, 2008.

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