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O que aprendi jogando o RPG de Stranger Things

Dungeons and Dragons, o jogo de Mike e seus amigos, mistura atuação, estratégia, matemática e muita imaginação - mas já foi visto como satanista e quase levou um processo por copiar "O Senhor dos Anéis"

Por Helô D'Angelo Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 11 mar 2024, 11h22 - Publicado em 8 ago 2016, 19h45

Atenção: o texto pode conter spoilers sobre Stranger Things.

Meu nome é Shay. Sou uma elfa da ilha de Pedragon – um pedaço de terra esquecido pelos deuses e assolado pela guerra. Há alguns dias, fugi de casa porque meus pais não aceitavam meus poderes mágicos, e acabei conhecendo dois outros elfos, chamados Motos e Sidarta, e também o hobbit Bütyök. Sem ter para onde ir, embarquei com eles numa aventura em busca do lendário ladrão Capuz Verde – um justiceiro famoso por assassinar cobradores de impostos.

Bom, pelo menos, essa é a história da personagem que criei para jogar Dungeons and Dragons (D&D), o RPG que os amigos Will, Mike, Dustin e Lucas jogam em Stranger Things. Depois de assistir à série, eu (assim como o mundo inteiro) fiquei completamente apaixonada pelo universo da história, e não queria que que ela terminasse. Por sorte, descobri que alguns amigos jogavam há anos o tal D&D, e decidi ter um gostinho a mais: fui jogar. 

Dungeons and Dragons – que pode ser traduzido bem porcamente como “Calabouços e Dragões” -, é o primeiro sistema de RPG, ou Role-playing Game (jogo de interpretação de papéis). “Sistema”, em RPG, é o conjunto de regras, que muda para cada jogo – existem vários sistemas diferentes, mas o D&D é o básico. E dentro do sistema, o universo em que se passa a história é desenvolvido: no caso do D&D, é um ambiente medieval baseado em Senhor dos Anéis, cheio de dragões, cavaleiros, magos e, claro, monstros como o demogorgon que arrastou Will para o Mundo Invertido. O D&D é importante dentro da cultura nerd porque foi a base não só para todos os outros sistemas de RPG, mas para vários games que a gente joga hoje – como Witcher, Skyrim, Fallout e por aí vai.

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A coisa é uma mistura interessante de jogo de tabuleiro, improviso teatral, muita imaginação e alguma coisa de matemática. Quem me conta isso é Lucas Guanaes, um desses jogadores. “Jogador, não: mestre”, ele corrige, assim que sentamos para jogar. “No D&D, existe o mestre o os outros jogadores. O meste é o narrador que vai conduzir a aventura, basicamente o deus da coisa toda”. Entendi: na série, o mestre da turma é o Mike. E o sistema – no caso, o D&D – é a base sobre a qual o mestre vai criar a história.

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Entrando no calabouço
Antes do jogo, imaginei que iríamos sentar, escolher um personagem e começar a partida. Mas a coisa é bem mais complexa do que isso: o mestre passou uma semana inteira planejando a “campanha” – como é chamada a aventura que ele iria narrar e que nós, jogadores, viveríamos através das nossas escolhas e ações. Pasme: existem campanhas que duram horas, dias e até anos. Na série, a última de Mike & Cia. durou “só” dez horas, mas Guanaes tem aventuras que, oito anos depois, ainda estão rolando. 

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E o nosso mestre caprichou: ele havia criado mapas, nomes de governantes, embates políticos e várias armadilhas lógicas (e até descolou uma trilha sonora medieval e cuidou da iluminação da sala). 

Uma vez planejada a campanha no D&D, é hora dos jogadores criarem um personagem para jogar. Mas tem um detalhe: no RPG, você não está simplesmente atuando – você é o seu personagem. Isso significa que, antes de realmente começar, você precisa pensar em tudo sobre ele – quem você é dentro do sistema, qual a sua história, no que você é bom e qualquer outro detalhe adicional, como as línguas que você fala, que pet você tem… 

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Para ajudar nesse processo criativo, o D&D tem algumas categorias: primeiro, você escolhe uma raça – elfo, humano, halfling (hobbit), anão, gnomo ou mestiço. Depois, você decide a que classe você pertence (mago, feiticeiro, guerreiro… acredite, elas são bem específicas) e define as suas habilidades (escalada, magia, pulos, boa visão e por aí vai). Por fim, determina a sua moral – se você é bom, mau ou outras variações dentre dessa dualidade.

Assim como em um videogame, todos os personagens começam no nível um e vão subindo conforme a campanha avança – e todas essas características são catalogadas em uma ficha, para você não esquecer durante o jogo. E é isso – mais um jogo de regras – que os meninos ficam consultando em Stranger Things

No final, você batiza o seu personagem com o nome que quiser e é isso aí – um dos jogadores, por exemplo, criou o nome de seu hobbit traduzindo “joanete” em húngaro; deu Bütyök. E foi assim que eu encarnei Shay, a elfa feiticeira nível um.

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Começa a aventura
Campanha planejada, personagens criados, fichas nas mãos: é hora de jogar. Sento, animada, e o mestre começa a narrar: 

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“A Ilha Pendragon não é muito grande, nem muito próspera. Ela fica ao sul de um continente que está há anos em guerra. Isso porque quando o rei morreu, deixou dois herdeiros gêmeos, Peredur e Uther. Os dois dividiram as terras igualmente, mas Peredur atacou o reino do irmão, e mergulhou aquelas terras na guerra…”

É trabalho do mestre criar toda uma atmosfera – e o nosso faz isso de um jeito bem legal. Realmente parecia que a gente estava em uma cidade portuária da tal ilha de Pendragon, com cheiro de peixe e tudo. Na série, Mike também é um ótimo mestre, que cativa os jogadores e cria mistérios no ritmo certo.

O jogo continua. O mestre olha para um dos jogadores – um elfo monge nível um chamado Sidarta – e diz: “Você está chegando na cidade, depois de passar semanas em um navio sujo e fedido. Você está cansado e com fome. A leste, há uma taverna. O que você faz?”. Bom, é aí que o bicho pega. No RPG, existe uma boa dose de imaginação e de atuações teatrais, mas só isso não basta: o resto jogo é inteiro baseado em estatísticas. 

Dados esquisitos
Lembra como, em Stranger Things, os amigos escolhem determinadas ações e, logo em seguida, jogavam dados? Então: essa é a base dos sistemas de RPG.


  
Funciona assim: na sua ficha (aquela que você criou junto com o seu personagem), cada habilidade tem um número – quanto mais alto esse número, mais habilidoso seu personagem é nela. E esses números mudam para cada personagem, assim como, na vida real, cada pessoa tem habilidades diferentes. O número da ficha é somado ao que você tira nos dados – chamado de modificador, ou simplesmente “mod” -, e quanto mais alta a sua pontuação somando os dois números, mais chances você tem de conseguir realizar a ação que você escolher.

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Por exemplo: em determinado momento, a minha elfa precisava se mover em silêncio. Na minha ficha, essa habilidade tinha o número 6. Lancei o dado – deu 20, o máximo. Tive sorte: somando os dois números, o mestre concluiu que a minha personagem conseguiu, tranquilamente, se mover silenciosamente. 

Pensa que é só isso? Não: existe um dado para cada tipo de ação. O D20 (de 20 lados) define as habilidades – como escalar, pular, mentir, correr; O D4 (uma piramidezinha de 4 lados) dá a probabilidade dos ataques de uma arma; o D6 (o dado comum) determina os ferimentos causados por magia – e por aí vai. Ao todo, são sete tipos de dados, embora eu só tenha jogado com esses dois, já que não passei do nível três. Bütyök, o hobbit, me conta que existe até um dado de 100 lados, o D100, “mas, como ninguém tem esse, a maioria dos jogadores usa dois D10 [de 10 lados]: um para a dezena, o outro para a unidade”.

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Parece frescura, mas toda essa matemática é importante para deixar o jogo ainda mais realista e imersivo – afinal, na vida real, as nossas ações também são baseadas nas probabilidades de aquilo dar certo ou não. Cada personagem tem peculiaridades próprias – um elfo é mais rápido; um anão é mais forte -, o que também influencia nos resultados e ajuda a deixar tudo mais verossímil. Depois de apanhar bastante dos dados malucos, percebi que é muito mais legal (e realista) depender da sorte do que, por exemplo, da arbitrariedade do mestre.

No fim, entendi por que é que RPG é visto como “coisa de nerd”: não é fácil. A coisa requer paciência, dedicação e uma esperteza quase numérica. Bütyök, o hobbit, me conta que a gente estava jogando no nível fácil – se a gente fosse pegar pesado, eu precisaria ler um livro de 400 páginas com todas as regras estatísticas, monstros e mapas do sistema. “E é um livro para os jogadores e outro para o mestre”, completa. 

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Uma história de sucesso, processos e satanismo  
Quando acabamos a partida, Guanaes e os outros jogadores me contaram um pouco da história do D&D. O jogo foi criado pelos designers de jogos Gary Gygax e Dave Arneson, e publicado pela primeira vez em 1974, nos EUA. A inspiração dos caras veio de jogos de estratégia e guerra, os chamados WarGames (um bom exemplo é o clássico War), mas a sacada foi especial: em vez de o tabuleiro preencher todo o jogo, o D&D deixa lacunas que podem ser completadas pelos jogadores, usando nada mais que a imaginação. 

Foi um sucesso. Em menos de um mês, mil conjuntos de D&D foram vendidos; seis meses depois, o número chegou a cinco mil (lembrando que não existia Twitter pra viralizar coisas na época). Dez anos depois, o RPG já tinha ganhado fama o suficiente para inspirar um desenho animado: o queridinho A Caverna do Dragão, cujo título em inglês é Dungeons and Dragons. 

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Com isso, os criadores de D&D ganharam tantos seguidores que acabaram ameaçados de processo pela Tolkien Enterprises, empresa do criador de O Senhor dos Anéis, por infração de copyright – isso porque o D&D tinha um universo inteiro baseado na obra de Tolkien. Para evitar o processo, Gygax e Arneson mudaram os nomes de algumas classes, como hobbit (que viroiu “halfling”). E deu certo: o processo não pegou.

Mas os problemas do jogo estavam só começando. Nos anos 80, depois de alguns jovens jogadores cometerem suicídio, os pais e professores começaram a ficar preocupados, pensando que o RPG estava motivando as mortes – alguns chegaram a criar um grupo anti D&D, chamado Bothered About Dungeons and Dragons (algo como Incomodados com Dungeond and Dragons). 

Como os livros de regras do jogo traziam demônios nas capas (e tinham títulos como “Manual dos Monstros”), não demorou para a opinião pública ver o jogo como “satanista” e “influenciador de violência” – exatamente como acontece em os games de computador, hoje em dia. Ironicamente, porém, toda a propaganda contra o RPG só aumentou a sua popularidade, principalmente entre adolescentes rebeldes – o que fez com que as suas vendas disparassem, chegando aos milhões em 1983.  

O engraçado é que é exatamente nesse contexto que Mike, Lucas, Dustin e Will jogam D&D, em Stranger Things – e nenhum deles é uma criança violenta. O jogo, claro, não passa de uma inocente plataforma para a imaginação dos jogadores; uma válvula de escape para qualquer um fugir da própria realidade – e montar uma outra, na qual a elfa Shay exista e possa lançar suas magias. 

 

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