“Os Banshees de Inisherin”: entenda o que foi a guerra civil irlandesa, pano de fundo do filme
Indicado a nove categorias do Oscar 2023, longa estreia no Brasil nesta quinta (2).
Em uma das cenas de Os Banshees de Inisherin, que estreia no Brasil na quinta-feira (2/2), o produtor de leite Pádraic (Colin Farell) contempla o horizonte rochoso da costa oeste da Irlanda. Ele mora em uma pequena ilha chamada Inisherin e observa, do outro lado do oceano, várias bombas explodindo.
“Boa sorte a vocês”, deseja Pádraic aos compatriotas. “Seja lá pelo que estejam lutando.”
Inisherin é uma ilha fictícia. Mas o conflito que Pádraic presenciou é bem real. O filme se passa em 1923, quando a Irlanda estava em plena Guerra Civil – um conflito que matou centenas de pessoas e dividiu o país.
Indicado a nove prêmios do Oscar deste ano (incluindo Melhor Filme e Melhor Ator para Farell), Os Banshees de Inisherin tem direção do meio britânico, meio irlandês Martin McDonagh (Três Anúncios Para o Crime). Conta a história da amizade entre Pádraic e o músico Colm (Brendan Gleeson) – ou melhor, do fim da amizade entre eles. Sem dar maiores explicações, Colm corta os laços com Pádraic, que vai passar boa parte do filme tentando entender o que provocou a súbita decisão do ex-amigo.
(Curiosidade: Farell e Gleeson vivem assassinos de aluguel no primeiro filme de McDonagh, a comédia ácida Na Mira do Chefe, de 2008. Tem no HBO Max.)
As notícias sobre a guerra chegam a conta-gotas na pacata Inisherin, onde todos se conhecem e os passatempos se resumem a ir à igreja e bebericar no único pub da ilha. É um lugar com habitantes peculiares, como a dona do armazém, que não se importa em abrir cartas alheias em busca de novidades, e o policial abusivo com o filho, o jovem Dominic (Barry Keoghan). E há também a Sra. McCormick (Sheila Flitton), uma velhinha que faz as vezes de banshee – entidade que, na mitologia celta, anunciava a morte de alguém com seus gritos e choros.
Existem vários níveis de interpretação em Os Banshees de Inisherin, e conhecer o contexto da guerra civil pode ser um bom ponto de partida para entender alguns deles. “É uma história em que uma pequena guerra está acontecendo entre dois amigos, enquanto uma guerra maior está acontecendo lá fora”, declarou McDonagh. Vamos ao conflito.
Do começo
No século 12, A Inglaterra iniciou o processo de anexação da ilha da Irlanda. Mas a dominação não rolou de imediato. O processo de ocupação só começou para valer no século 17. Milhares de colonos de maioria protestante passaram a viver em terras antes ocupadas por irlandeses, de maioria católica.
Assim, o mesmo território passou a ser ocupado por dois grupos hostis, um acreditando que suas terras haviam sido usurpadas e o outro temendo rebeliões. Entre as várias províncias da ilha, Ulster, ao norte, concentrou a maior parte dos imigrantes britânicos.
Ao longo do século 19, a região de Ulster (que, mais tarde, se tornaria a Irlanda do Norte) se industrializou e se urbanizou mais rápido que o sul do país, ainda dependente da agricultura, aumentando as diferenças econômicas entre os dois lados.
A Guerra de Independência…
No século 20, a tensão entre irlandeses e britânicos tornou-se insustentável. Em 1916, enquanto o Reino Unido lutava na Primeira Guerra Mundial, nacionalistas irlandeses organizaram uma das primeiras (e maiores) manifestações a favor da independência do país.
Na capital Dublin, uma organização chamada Voluntários Irlandeses liderou o que ficou conhecida como a Revolta da Páscoa. A manifestação se estendeu durante a Semana Santa e foi repreendida com violência pela polícia: vários líderes da revolta foram presos (e executados) pelos ingleses. Ao todo, 400 pessoas morreram.
Após a revolta, os irlandeses pró-independência passaram a se concentrar no partido político Sinn Féin, que, em irlandês, significa “Nós Mesmos”. O partido usou a repreensão truculenta das autoridades para reforçar o sentimento separatista da população – e conquistar votos.
Deu certo. Em 1918, o Sinn Féin conquistou 70% das cadeiras a que tinha direito no Parlamento Britânico. Só que eles nunca a assumiram. Em vez disso, os eleitos se reuniram em Dublin no dia 21 de janeiro de 1919 e instituíram a An Chéad Dáil – o Primeiro Parlamento – e formalizaram a declaração de independência da Irlanda.
Começava, naquele dia, a Guerra de Independência Irlandesa. De um lado, os separatistas, liderados pelos antigos Voluntários – que, àquela altura, tinham se reorganizado e formado o IRA (Exército Republicano Irlandês, na sigla em inglês), grupo paramilitar que recebeu do Parlamento autorização de combate. Do outro lado estava o Reino Unido, que contou também com a ajuda da polícia de Ulster.
O conflito se estendeu até o final de 1921; Mais de 2,3 mil pessoas morreram (desta, 900 eram civis). A guerra terminou com um cessar-fogo assinado pelos dois lados. O Tratado Anglo-Irlandês, ratificado em 6 de dezembro daquele ano, possibilitou a criação do Estado Livre Irlandês. À Irlanda do Norte, foi oferecida a possibilidade de não integrar esse novo Estado. E foi o que fizeram: até hoje, o país integra o Reino Unido, junto com Inglaterra, Escócia e País de Gales.
Só teve um problema: muitos irlandeses não concordaram com os termos do tratado.
…e a Guerra Civil
O acordo entre Irlanda e Reino Unido garantiu a criação de um Estado Livre. Contudo, ainda mantinha o país sob o guarda-chuva do Império Britânico, com um juramento de fidelidade ao rei.
Para uma parcela dos separatistas, tudo bem. O tratado afrouxaria as relações com a Coroa britânica e abriria caminho para a independência plena da Irlanda – e, quem sabe, para a reunificação com a Irlanda do Norte. Figuras como Michael Collins (diretor de inteligência do IRA durante a guerra) e Arthur Griffith (fundador do Sinn Féin) eram favoráveis ao acordo.
Mas houve quem discordasse do acordo, alegando que os termos eram insuficientes. E não demorou para que surgissem grupos divergentes dentro do Sinn Féin e do IRA.
No início de 1922, o Parlamento Irlandês pôs o tratado em votação. O resultado foi apertado: por apenas sete votos (64 a 57), o documento foi aprovado. Mas a insatisfação do lado perdedor não cessou. Em seis meses, o que era apenas uma disputa política deu origem a duas facções dentro do IRA – e o conflito armado começou.
Em abril de 1922, centenas de membros do IRA antitratado ocuparam a Four Courts, prédio da Suprema Corte da Irlandesa. A rebelião foi controlada depois de alguns dias, mas a tensão só crescia.
Em junho, dois membros do IRA assassinaram, em Londres, o britânico Henry Wilson, marechal aposentado do exército e conselheiro do primeiro-ministro da Irlanda do Norte. Embora nunca tenha ficado comprovado, há suspeitas de que Michael Collins tenha se envolvido no crime.
Seja como for, a morte foi o estopim para que o Reino Unido exigisse o fim dos conflitos irlandeses. O futuro primeiro-ministro britânico Winston Churchill, à época membro do Parlamento, culpou o lado antitratado pelo atentado e exigiu uma ação do governo irlandês – do contrário, as forças britânicas tomariam providências.
Estava instaurada a Guerra Civil. O lado pró-tratado passou a ser chamado de Exército do Estado Livre, ou Exército Nacional. Já o lado antitratado ficou como conhecido como Republicanos. O conflito se arrastou por meses e, apesar de ter se concentrado em Dublin, atingiu diversas outras regiões do país também.
Em agosto de 1922, Collins foi assassinado. Estima-se que mais de mil pessoas morreram durante a guerra, que só terminou em maio de 1923, com a vitória do lado pró-tratado.
Legado
Durante a guerra, não apenas grupos políticos e o IRA se dividiram – famílias inteiras se separaram por discordarem do tratado e dos rumos do conflito.
A guerra civil teve grande influência na política irlandesa nas décadas seguintes. Dois dos principais partidos políticos do país surgiram ao final do conflito: os apoiadores do tratado se juntaram no Fine Gael; os apositores, no Fianna Fáil.
Uma divisão que só recentemente parece ter diminuído. Em 2020 (e um juntos a um terceiro partido, o Verde), os dois se uniram pela primeira vez em uma coalizão para o governo da Irlanda.