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Os vioelétricos: Sem perder a ternura

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 31 out 2004, 22h00

Texto José Nêumanne

Há uma diferença fundamental entre os grupos que tomaram de assalto a música brasileira dos festivais de meados dos anos 60 – baianos do tropicalismo e mineiros do Clube da Esquina especialmente – e a patota de nordestinos que chegou e se “arranchou” no Sudeste: enquanto aqueles atuavam em grupo, defendendo-se uns aos outros como se fizessem parte de uma confraria, estes mantiveram a individualidade artística e comercial. Nunca fizeram parte de um movimento, embora mantivessem relações pessoais estreitas: Elba Ramalho e Geraldo Azevedo foram casados, a exemplo de Amelinha e Zé Ramalho, que acompanhou Alceu Valença, e de Rodger Rogério e Teti, do Pessoal do Ceará; Robertinho de Recife tocou na banda de Fagner e vamos parar por aqui, senão isso vai terminar virando o poema Quadrilha, do mestre Drummond.

Quando, no fim do século passado, Belchior e eu planejamos escrever um livro para esclarecer a contribuição que essa turma deu ao mercado do espetáculo e à indústria fonográfica no Brasil, escolhemos um título sintético: Os Violétricos. É que o fio comum na meada de todos era a fusão entre a viola dos repentistas nordestinos da infância de todos e a guitarra elétrica da adolescência de cada um. Eles cuidaram de transportar a viola ou rabeca dos poetas do sertão para os palcos dos grandes teatros do Sudeste. E o fizeram com empenho e engenho.

O mamulengo e a cantriz

Cada um deles encarnou um personagem do povo em sua imagem de astro. Alceu Valença, pernambucano de São Bento do Una, levou a graça e os trejeitos de um tipo de teatro infantil festejado nas feiras livres do Nordeste, os bonecos de pano, vulgo mamulengos. No Recife, rumo dos meninos do interior que queriam estudar, cruzou com o violonista Geraldo Azevedo e produziram o álbum Quadrafônico (1972).

Teatro também corre nas veias de Elba Ramalho, paraibana de Conceição de Piancó e criada na cidade mais cosmopolita do interior nordestino, Campina Grande. A mocinha chegou, enturmou-se e foi parar nos corais falados de Cecília Meireles e Manuel Bandeira. Até São Paulo, foi um salto. No desvario da Paulicéia, conheceu Luiz Marinho e participou, com ele e Tânia Alves, de um dos movimentos de teatro underground mais marcantes da história – no começo dos anos 70, estrelou Viva o Cordão Encarnado. Depois, fez a Ópera do Malandro e ficou amiga de Chico Buarque. Foi quando a coriféia virou cantriz.

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É isso aí: cantora e atriz. Agora, uma pausa para refrescar o recreio. No começo dos anos 70, este escriba imodesto estava em João Pessoa e resolveu comparecer a um espetáculo estreado por Elba Ramalho e Tadeu Matias no Teatro Santa Rosa. Tadeu substituía Geraldo Azevedo, à época marido e parceiro da menina do Vale do Piancó, no show Baião de Dois. Fui, vi, detestei e sapequei: “Elba Ramalho jamais será uma estrela”. Este foi o título de meu comentário publicado no jornal A União, inspirado na antipatia que me causara a excelente atriz virar uma mera imitadora de Gal Costa. Não tive humildade nem paciência para perceber como Elba se tornaria uma estrela justamente por levar à classe média do Sudeste a tradição antes circunscrita aos forrós da periferia e defendida com competência pela campinense Marinês. Mas tive a pachorra de me confessar um mau profeta ao assisti-la brilhar como poucas no céu da canção.

O almuadem que berra aboios

Como Elba Ramalho, Raimundo Fagner nasceu muito perto de onde nasci (eu no sertão seco de Uiraúna, Paraíba, ele às margens do açude de Orós, no Ceará). Do sertão, migrou para Fortaleza e de lá para o universo batizado de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde virou ídolo cult, daqueles compositores mais lidos que ouvidos, ao lançar “Velas do Mucuripe”, parceria com Belchior, pelo Pasquim, que tinha editora e selo. A canção seria gravada por Elis Regina e Roberto Carlos, e serviu de plataforma para lançar o astro de Orós num LP magistral, Manera Frufru Manera (1973). O disco contém regravações antológicas do clássico nordestino “O Último Pau de Arara” e do totem pop “Nasci para Chorar (Born to Cry)”. Mas Fagner ficou conhecido mesmo por um plágio: uma fã lhe havia dado um poema que ele musicou: era Canteiros, de Cecília Meireles, e ele não sabia. Gravada a canção, os herdeiros da poeta entraram na Justiça e o disco se tornou uma raridade, até que as partes entrassem em acordo.

Fagner é um compositor que gosta de poesia erudita (é parceiro de Ferreira Gullar, Florbela Espanca, Francisco Carvalho) e popular (é o maior responsável por seu conterrâneo Patativa do Assaré ter virado moda urbana), mas sua maior importância na MPB é como intérprete. Ele é um almuadem, aqueles pregoeiros muçulmanos que cantam orações, que berra aboios. E traduz como ninguém um sentimento sertanejo por excelência, a urgência.

No rastro de suas pegadas, no programa Mixturação, da TV Record, surgiram artistas de primeira grandeza, como Ney Matogrosso (Secos & Molhados), Simone, Raul Seixas, Pekim e o Pessoal do Ceará. Este bando, composto de Rodger Rogério, Teti e Ednardo, lançou Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem, em 1973, mas logo se desfez. Ednardo faz sucesso até hoje com “Pavão Misterioso”, tema da novela global Saramandaia, escrita por Dias Gomes.

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O Chuck Berry de Brejo do Cruz

O sucesso de Fagner levou sua gravadora à época a apostar em seu talento de produtor. O cearense sabia que aquela patota estava mudando o rock ao injetar no gênero doses maciças de poesia sertaneja. E quem fez isso com mais talento, sucesso e precisão foi José Ramalho Neto. Na fazenda do avô, Zé ouvira violeiros pelejarem; e, em grupos de rock de João Pessoa, como Os Quatro Loucos, fizera cover dos Beatles e Stones. Após gravar Paêbiru: o Caminho do Sol, com Lula Côrtes, e de acompanhar Alceu Valença num festival da Globo (em “Vou Danado pra Catende”), Zé teve gravada sua obra-prima “Avohai”, primeiro por Vanusa e depois por ele mesmo no LP de estréia em que era acompanhado por Bezerra da Silva no zabumba e Elba no backing vocal.

Zé Ramalho, o Chuck Berry de Brejo do Cruz, é um bicho bruto, um poeta intuitivo, puro, natural. Já Belchior, cearense de Sobral lançado em 1974 com “A Palo Seco”, conhece poesia erudita e popular como poucos. Mas essa erudição toda empalidece se comparada com o fato de ter ele escrito dois ícones do cancioneiro brasileiro: “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”, lançadas por Elis quando o autor era apenas um retirante.

E, falando em retirante, chegou a hora de este aqui se retirar. Inté!

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