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Oxford

7.538 caracteres de literatura

Por Jacques Fux
Atualizado em 27 out 2020, 13h58 - Publicado em 19 dez 2017, 13h26
Oxford
(Renato Palmuti/Superinteressante)

“Prometo não remover, marcar, desfigurar ou ferir qualquer volume, documento ou outro objeto que pertença ou esteja sob custódia da Biblioteca. Prometo ainda não atear fogo, não fazer estripulias e obedecer a todas as regras da Biblioteca.”

Passados milhares de anos, ainda me lembro do espanto e do encanto ao pronunciar o meu primeiro juramento entrando pelos corredores sagrados da magistral Biblioteca de Oxford. Ali eu me encontraria com reis, impérios, dinastias, heresias, magos, senhores, anéis… tudo que aconteceu! Tudo que foi inventado, falseado, apagado… tudo que jamais deixaria de existir. Tudo que me acompanharia – e me afrontaria – pelo resto da eternidade.

Nesse primeiro encontro, tinha apenas poucas páginas escritas e não tinha a menor ideia da minha imortalidade. Lembro-me apenas da beleza convulsiva ao ver e sonhar tantos livros, aventuras e romances. Aquilo era um espetáculo fascinante e perfeito. Mas o que mais me chamou a atenção foi o cuidado milimétrico na ordenação dos livros daquela infinidade de narrativas. De todas as diferentes maneiras de classificação que podemos conceber, alfabética, por continentes ou países, por cores, por data de aquisição, por data de publicação, por formato, por gênero, pelo acaso, por grandes períodos literários, por idioma, por prioridade, por amizade com o autor, por cor da meia do escritor, etc., uma em particular – a que a Biblioteca adotou – hipnotizava. Toda ordem, hoje dolorosamente sei, é completamente aleatória e inútil. Contudo, essa Biblioteca, que tanto primava por sua estética quase fantástica, acomodava seus ilustres habitantes separados por tamanho e cor. Imaginem a harmonia, a simetria e o esplendor daquele maravilhoso universo!

Aquilo havia me chocado de tal maneira que acabaria transformando e transtornando toda a minha vida. Anos depois, já como pesquisador daquela prestigiosa universidade, voltaria à Biblioteca para de lá nunca mais sair. Depois de muito navegar pelos labirintos incríveis, pelas incontáveis passagens secretas, pelos reinos mágicos das páginas ali concebidas, fascinei-me por um canto especial daquele cosmos. O lugar exato em que eu poderia conceber o infinito.

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Resolvi, então, dedicar minha pesquisa a essa localidade particular da Biblioteca. Um campo de estudos ainda enigmático, inédito, secreto e sinuoso. Uma área do conhecimento dedicada a cientistas extremamente corajosos e destemidos, e até com uma certa prepotência e arrogância – como é de costume entre os acadêmicos. Decidi estudar, e fazer disso o meu sublime projeto, todos os livros azuis de exatos 13 centímetros de altura, sem tolerância alguma para variações de decímetros ou milímetros. 13 centímetros de altura e azuis! Era isso. Sem mais. Não havia dúvida que essa era a seção que mais me comovia e que mais despertava meu desejo.

Inicialmente essa minha proposta de pesquisa ocasionou grande repulsa e desconfiança dentro da universidade. Um grande mal-estar foi gerado: “Por que estudar somente os livros com tal tamanho e cor? Por que a discriminação, o preconceito e talvez o ódio em relação aos outros comprimentos e colorações? Todos não seriam igualmente importantes para as leis e os olhares da Biblioteca? E você, quem é você afinal para falar em nome deles? Você, que certamente mede menos do que 13 centímetros e nem é tão azul assim, se apropria indevidamente do discurso do outro, chama para si uma autoridade que não tem, e ainda resolve escrever em nome desses livros?”

O caso foi parar nos jornais e nas redes sociais. A Comissão de Ética foi acionada. Reuniões infindáveis foram realizadas. Grupos religiosos, extremistas, direitistas, esquerdistas de todo o mundo passaram ou a protestar com veemência ou a apoiar com afinco minha pesquisa. Recebi ameaças de morte, pedidos de canonização, e várias comunidades de haters e lovers foram criadas em meu nome. Minha vida se tornou um inferno – mas eu tinha fé e convicção de que nos livros azuis de 13 centímetros de altura eu encontraria a tão almejada Verdade.

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Oxford
(Renato Palmuti/Superinteressante)

Mas escrever uma tese, como sabem, sobretudo uma acerca de livros tão especiais, demandou muito tempo e esforço. Foram tantos anos de completa devoção àqueles habitantes insólitos da Biblioteca que o mundo, os haters e os lovers acabaram me esquecendo e passaram a dedicar seu ócio apoiando ou atacando outros livros, outras pessoas e outras entidades.

Finalmente defendi minha tese de doutorado intitulada “A Verdade e a Eternidade Apócrifa dos Livros Azuis de 13 Centímetros de Altura” e virei o maior especialista do mundo em livros com essa peculiar característica. Qualquer evento que houvesse – disputas familiares, conflitos pessoais, angústias galácticas, supernovas, problemas sexuais – certamente teria a solução em um livro azul de 13 centímetros. E só eu saberia desvendá-la.

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E, como é de costume com os grandes pesquisadores, acabei me tornando professor universitário e tive que ampliar um pouco a minha área de atuação. Passei a investigar os livros azuis com exatos 13,1 centímetros de altura. Um pequeno passo para mim, um grande salto para a humanidade. E esse, amigos, foi o meu fim.

Parece que 0,1 centímetro não é muita coisa, porém um novo mundo – com inéditas verdades, mentiras, apologias e guerras – se abre. Todos os livros azuis que foram concebidos para ter exatos 13 centímetros, mas que por razões, falhas e problemas diversos, tiveram a altura aumentada, passaram a fazer parte do escopo da minha nova pesquisa. Até aí tudo bem, se eu não tivesse invadido o campo de pesquisa e de crenças de um outro professor, muito mais renomado e influente dentro da universidade. Além disso, esse outro decano possuía uma característica impossível de se atacar: o caríssimo colega tinha exatos 13,1 centímetros de altura e sua pele era, na escala universal de cores, exatamente azul. Portanto, era de seus pares que ele sempre falava e por quem sempre lutou. Ele possuía, prezados leitores, o lugar da fala. Eu não. Pobre de mim. Eu media exatos 12,99 centímetros e muitos notavam um leve desvio do meu azul, mas sempre mentia em relação a isso. Dizia convenientemente que media 13 centímetros e que, por motivo de uma doença translúcida, teria passado por uma transformação de pigmentação e tamanho, passando a ser azul e medir 13,1 centímetros.

E se um Deus havia criado a universidade e a Biblioteca, um Diabo, com certeza, criou o colega de departamento. A minha pesquisa foi vista como um ato de guerra. Foi evocada a lei da abolição da ficção e da subjetividade, e uma comissão de constituição e justiça veio me examinar oficialmente.

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Não consegui ludibriá-los e acabei sendo condenado por postura imprópria e atos fraudulentos. E por fazer ficção – crime que mereceria a pena máxima.

E qual foi minha pena, nobres apóstatas? Por certo teria que ser exemplar e eterna. Uma punição que ficaria registrada em sangue nos anais e nas estantes de Biblioteca. Eu fui condenado a passar o resto da minha eternidade posicionado numa estante inimiga, corrompendo a simetria, a estética e a ordenação sagrada da Biblioteca. É visível o horror de quem passa por essas prateleiras. Causa angústia, nojo, repulsa. Se os visitantes não tivessem prestado o imaculado juramento, por certo já teriam me ateado fogo, rasgado minhas páginas, ou alguma alma virtuosa já teria me transferido para outro lugar. O meu lugar de direito. Egrégios comparsas, fui colocado na estante dos degradantes livros antípodas a mim, aqueles que têm a largura de exatos 12,99 centímetros e a hedionda cor amarela.

Jacques Fux é escritor, matemático e mestre em computação. É vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2013 com o livro Antiterapias. Autor de Literatura e Matemática, Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor e Meshugá: um romance sobre a loucura. Foi pesquisador visitante na Universidade Harvard.

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