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Pop nacional: A invenção da juventude

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 31 out 2004, 22h00

Texto Jamari França

Aquele verão foi diferente. Os exilados políticos estavam de volta, a ditadura perdia força dia após dia e, mais importante, respirava-se juventude: nas ondas de rádio, com a Fluminense FM, nos cinemas, com Menino do Rio, nos fins de semana no Circo Voador e em toda parte com “Você Não Soube Me Amar”, da Blitz. Era o sol anunciando o rock brasileiro dos anos 80

Em um Brasil que começava a ver um túnel iluminado no fim da escuridão da ditadura, havia algo a mais no ar do que a velha MPB no raiar da década de 80.

Uma geração nascida nos anos 60 começava a botar a cara de fora em busca de espaço, pois havia crescido numa dieta cultural magra sem ter muita consciência disso. Não havia a realidade efervescente dos festivais que revelaram toda a geração da música popular que se engajara na luta contra a ditadura. A nova casta, ávida por encontrar sua própria música, ficava ligada no que vinha de fora. O rock brasileiro era reduzido a praticamente Rita Lee, A Cor do Som, 14 Bis. Faltava alguém que tivesse a cara dessa geração, falasse sua língua e vivesse a mesma realidade.

O rock internacional aconteceu na década de 50, teve um gap, retomou nos 60 e seguiu adiante. Aqui, a jovem guarda deu flop e os anos 70 foram irregulares – duas décadas “perdidas” para o rock brasileiro. Grupos alternativos de rock (como o Vímana), de poesia (como o Nuvem Cigana) e de teatro (como o Asdrúbal Trouxe o Trombone) já vinham agitando nos anos 70 – com novas linguagens que faziam sucesso entre o pessoal mais novo – em redutos como o Teatro Ipanema e bares cariocas. Uma espécie de pontapé inicial do rock brasileiro viria dessa rapaziada. Luiz Maurício Pragana dos Santos, o Lulu, ex-Vímana, foi pioneiro ao emplacar três compactos ao longo de 1981: Tesouros da Juventude, Areias Escaldantes e De Leve.

Júlio Barroso, um jornalista e agitador musical carioca antenado, criou a Gang 90 & Absurdettes. Com visual e roupagem new wave entre B-52’s e Kid Creole & The Coconuts e uma música que virou referência, “Perdidos na Selva” (lançada no festival MPB-81, da Rede Globo), a Gang revelava outro sinalizador das mudanças a caminho.

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Um dos atores/músicos do Asdrúbal, Evandro Mesquita, já agitara várias aventuras musicais. Certo dia de 1981, quando uma amiga lhe perguntou se tinha uma banda para se apresentar no estiloso Bar Caribe, em São Conrado, Evandro, mesmo não tendo, afirmou positivamente. Mais que rapidinho juntou uma rapaziada para fazer o show. Era o embrião da banda que ia botar a geração 80 na rua, a Blitz – nome sugerido pelo baterista, Lobão, também egresso do Vímana, assim como Lulu e o inglês Ritchie, futuro autor do hit “Menina Veneno”.

Mais do que banda

O quartel-general foi armado em janeiro de 1982 em Ipanema, o Circo Voador – uma idéia do Asdrúbal pra congregar a rapaziada que rezava pela cartilha da nova linguagem poético-musical-teatral. Debaixo da lona voadora, a Blitz ganhou sua formação definitiva, com Evandro, Márcia Bulcão e Fernanda Abreu (vocais), Ricardo Barreto (guitarra), William Forghieri (teclados), Antônio Pedro (baixo) e Juba (bateria). O conceito ia além de uma simples banda. Havia um visual elaborado que transformava as canções em esquetes, como num musical. O conceito só fez crescer com o sucesso e a entrada de dinheiro para bancar as loucuras da trupe, como a participação de um grupo circense, os Banduendes por Acaso Estrelados. Tudo era novo na Blitz: a música, as roupas, as coreografias e as letras, um achado da nova linguagem na vertente oposta da intelectualizada MPB de então.

Um repertório básico levado para audição na gravadora EMI rendeu contrato para a gravação de um single – que, na época, era o formato usado pela indústria para testar novos talentos: quem se desse bem na bolachinha partia para o bolachão; se fracassasse, ia para o olho da rua. A desconfiança era tanta que a Blitz teve a singularidade de ser lançada num single de um só lado, com “Você Não Soube Me Amar”. A sorte é que, em meados de 1982, a música acertou em cheio no público-alvo, falando do dia-a-dia, da azaração, dos bares com chope e batata frita numa linguagem vibrante e um refrão pegajoso de um único verso.

Geração voadora

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Voltando à lona do Arpoador, por lá passaram bandas que viriam a marcar a primeira fase do rock nacional. Grupos como Brylho, formado pelo baixista Arnaldo Brandão (que estouraria adiante com “Noite do Prazer”), e João Penca & Seus Miquinhos Amestrados, uma turma anárquica do Leblon. O Brylho trilhava o caminho do soul, batendo cabeça para Tim Maia e Cassiano; enquanto João Penca era rock e surf rock como se fosse em 1962, cheio de sacanagens e humor colegial.

Já o Barão Vermelho era formado por estudantes secundaristas que se amarravam num rock de raízes negras ao estilo dos Rolling Stones. Seu vocalista se chamava Cazuza, rapaz rebelde, bom de poesia, aluno do grupo de teatro Nossa Senhora dos Navegantes, de Perfeito Fortuna, ator de uma adaptação esculhambada de A Noviça Rebelde. A noviça em questão era um travesti e Cazuza o capitão Von Trapp, soltando a voz em “Edelweiss” com um terno do pai, João Araújo, devidamente pisoteado em cena para desespero da mãe, Lucinha. A lona foi despejada do Arpoador em março de 1982, levantando vôo rumo aos Arcos da Lapa, o antigo bairro boêmio carioca, onde só chegou em outubro.

Urca

Enquanto isso, vamos subir a colina do Morro da Urca, a primeira montanha do Pão de Açúcar, cartão-postal maior da cidade juntamente com o Cristo Redentor. Naquelas alturas, o jornalista e agitador Nelson Motta instalou a segunda encarnação da boate Dancing’ Days, em 1978 (depois do sucesso da novela global de mesmo nome). Dois anos depois, a casa virou Noites Cariocas – nome que a inscreveria na história do rock como seu palco mais importante, ao lado do Circo. Nelson costuma dizer que as bandas eram lançadas no Circo e se consagravam no Noites. O custo operacional fazia com que no Morro da Urca se apresentasse gente mais conhecida. Algumas exceções rolavam na base da brodagem: o Barão Vermelho abriu para Sandra Sá, que fazia shows por lá com a Banda Black Rio e era amigona de Cazuza.

Um pouco mais adiante, o Noites Cariocas se tornaria realmente palco de grandes lançamentos e de noites inesquecíveis por causa do visual imbatível, dos shows e da discotecagem de Dom Pepe. O morro sediou as filmagens de Areias Escaldantes, muitas festas e encontros notáveis, além de render a Ritchie sua estréia-solo. Foi lá, por exemplo, que Eduardo Dusek convidou os Miquinhos para fazer o clássico álbum Cantando no Banheiro.

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No mesmo mês em que o Circo saía do Arpoador, nascia em Niterói a Rádio Fluminense FM, a Maldita, instrumento fundamental para a difusão da geração dos anos 80. Era um sonho de dois jornalistas, Luiz Antonio Mello (repórter da Rádio JB) e Samuel Wainer Filho (repórter do Jornal do Brasil). Os dois eram roqueiros e perceberam que havia lugar para uma rádio que tocasse o que as outras não tocavam: rock’n’roll du bão, com espaço para os novos nomes que estavam surgindo. Não deu outra. Logo a rádio estourava no segmento jovem. As novas bandas gravavam fitas demo sem as condições técnicas ideais e mandavam para a rádio, que as colocava no ar, e ainda eram chamadas para entrevistas ao vivo. Foi lá que “Vital e Sua Moto”, o primeiro sucesso dos Paralamas do Sucesso, viu a luz do dia e serviu de chamariz para que a banda fosse contratada pela EMI.

Todos numa direção

Em outubro de 1982, o Circo Voador baixou sob os Arcos da Lapa, trazendo Perfeito Fortuna como mestre-de-cerimônias, de asas e auréola. Os eventos semanais Rock Voador, produzidos pela guerrilheira cultural Maria Juçá, era um dínamo de idéias e disposição. Ali se lançaram todos os grandes nomes do rock (com a exceção do RPM). No começo, o Rock Voador reunia 400, 500 pessoas – em jornadas de quatro, seis e sete bandas que varavam a noite –, muitas vezes acabando quando o maçarico já despontava no céu. Bastava um telefonema da Juçá para qualquer banda ir tocar feliz da vida. Hoje, só num festival de grande porte seria possível reunir Paralamas, Kid Abelha e Lulu Santos. No Circo, isso aconteceu muitas vezes.

E muitas bandas e muitos nomes surgiram na época, como Papel de Mil, Sangue da Cidade, Maurício Mello & a Companhia Mágica, Água Brava, Ethiópia, UPI, Celso Blues Boy, Malu Vianna, Zé da Gaita, entre outras. A dobradinha Circo/Fluminense FM era reforçada por alguns jornalistas como Ana Maria Bahiana, em O Globo, e Maurício Kubrusly, na revista Somtrês.

Na minha trincheira, o Caderno B do Jornal do Brasil, publiquei a primeira matéria sobre a “Geração 80 do Rock Brasil”, em outubro de 1982. Passei a cobrir exclusivamente o rock brasileiro, me desdobrando em longas noites de trabalho. Estávamos todos acreditando naquela rapaziada, vendo nela a possibilidade de o rock ser finalmente establishment no Brasil.

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Punk

O Circo foi o palco do primeiro festival punk carioca, em março de 1983, quando virou um verdadeiro acampamento das bandas que vieram de São Paulo. Os Paralamas do Sucesso participaram porque tinham certa ligação com o movimento, mas foram hostilizados e acabaram tendo um pedal roubado pelo integrante de um grupo que achou por bem expropriar os “burguezinhos”. Naquela noite, os Paralamas tocaram “Química”, que Herbert anunciou ser de um amigo de Brasília: Renato Russo.

O primeiro show da Legião Urbana e do Capital Inicial no Rio também rolou sob a lona voadora, em julho de 1983. Assisti a esse show do canto do palco e, quando pedi para que tocassem “Veraneio Vascaína”, que já conhecia de fitas cassete, um carinha protestou atrás de mim: “Ei, ‘Veraneio’ é do nosso repertório!” Era Dinho Ouro-Preto, vocalista do Capital Inicial.

Além do Circo e do Noites, muitos shows rolavam em bares como o Western Club, onde os Paralamas fizeram seu primeiro show, no final de 1982, e o Let it Be, em Copacabana. Logo, seriam as danceterias a se multiplicar pela cidade, como Mamute, Metropolis, Mamão com Açúcar etc. Mas foi mesmo no Circo que, devagarinho, chegaram os grupos de outras plagas, como os paulistas Ira!, Titãs e Ultraje a Rigor, o baiano Camisa de Vênus, os brasilienses já citados e Plebe Rude. Foi assim que nasceu e se espalhou o “Rock Brasil” – a “Geração 80” ou, se preferir, o “BRock”.

1982

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Janeiro

• Morre Elis Regina, aos 36 anos, vítima de uma parada cardíaca.

Fevereiro

• O Police faz suas duas únicas apresentações no Brasil, tocando no Maracanãzinho, em pleno Carnaval.

Março

• Entra no ar a rádio carioca Fluminense FM, responsável pelo lançamento de bandas como Legião Urbana e Paralamas do Sucesso.

Abril

• Lançamento de Grito Suburbano, primeiro vinil punk nacional, com as bandas Inocentes, Olho Seco e Cólera.

Maio

• Começa a Guerra das Malvinas entre Inglaterra e Argentina, que terminaria com vitória inglesa.

Julho

• Estréia no circuito norte-americano Blade Runner, O Caçador de Andróides, o cult movie de Ridley Scott.

Agosto

• Os baianos do Camisa de Vênus lançam seu primeiro compacto, Meu Primo Zé, pelo selo independente baiano NN.

• Chega às bancas a primeira edição da Roll, revista mensal de rock, extinta no final de 1988.

Outubro

• A Blitz faz o primeiro show da programação musical do Circo Voador, até então dedicado ao teatro.

Novembro

• O Brasil conhece sua mais ampla eleição, onde são escolhidos 22 governadores.

• Ocorre em São Paulo o primeiro festival punk brasileiro, O Começo do Fim do Mundo

• Estréia mundial de E.T., O Extra-Terrestre, uma das maiores bilheterias da história.

• Lançamento do livro Feliz Ano Velho, best-seller de Marcelo Rubens Paiva.

Dezembro

• Michael Jackson lança Thriller, o disco mais vendido de todos os tempos.

• Roberto Carlos aparece vestido de Carlitos, em seu especial de Natal da TV Globo, considerado o programa mais bem produzido da história.

• A revista Time concede o prêmio de “Homem do Ano” para o Computador.

O personagem: Celso Blues Boy

Se no início dos anos 80 o rock brasileiro ainda trocava as fraldas, o que dizer de um artista que apostava no legado de blueseiros norte-americanos dos anos 50? O carioca Celso Ricardo Furtado de Carvalho poderia ser um estranho no ninho do rock nacional se não tivesse ajudado a construí-lo. Antes de se lançar como Celso Blues Boy, ele acompanhou a dupla Sá & Guarabyra e Raul Seixas com apenas 17 anos de idade.

Sua história mudou quando enviou uma fita com quatro músicas à rádio Fluminense FM – antes de a emissora lançar os Paralamas do Sucesso. “Aumenta Que Isso Aí É Rock’n’Roll” repercutiu como um hino de resistência, um chamado para a invasão que aconteceria em 1982. Seu primeiro disco, Som na Guitarra (1984) trazia o hit, além de “Blues Motel”. Apesar de banhar-se no som lamacento do Mississippi, Celso foi adotado temporariamente pela público de rock – mesmo porque fãs de blues praticamente não existiam no país. Também pela Polygram, lançou Marginal Blues (1986), com participação de Cazuza, e Celso Blues Boy 3 (1987), antecipando o blues nacional em pelo menos quatro anos.

Deslocado da turma que se projetou no Rock in Rio, Celso foi parar no pequeno selo Retoque com Blues Forever (1988), de versões de Eric Clapton e Willie Dixon, entre outros. Ainda ativo, mas curtindo o sossego de Joinville, lançou Vivo e Indiana Blues na década de 90.

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