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Se liga no estilo: novo rock

Depois de cinco décadas de revolução einconformismo, quem empunha uma guitarra no Brasil se vê numa encruzilha-da entre o ronco dos amplificadores, os hormôniosda juventude e os apelos de um mercado voraz

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h50 - Publicado em 31 out 2004, 22h00

Texto Ricardo Alexandre

Parece um show de rock: enfumaçado, cybercolorido, cheio de adolescentes tatuados suados em polvorosa em suas roupas x-large. Soa como um show de rock: guitarras à frente, bateria marcial, influências da cultura do rap. De repente, a música pára e o cantor, um homenzarrão de 34 anos vestido como seus fãs, dá uma bronca em um garoto franzino: “Pô, brother, tá nessa? Vou te dar um toque: se liga no estilo!” Ah! Não é um show de rock: é uma campanha da Coca-Cola lançando sua coleção de miniaturas de garrafas coloridas. O Charlie Brown Jr., a primeira e a maior entre as bandas brasileiras de “novo rock”, empresta sua imagem à multinacional dos refrigerantes. No final, de posse de sua garrafinha, o garoto ganha um abraço do vocalista Chorão. A paz se fez, ele já havia se ligado no estilo.

O Charlie Brown Jr. apareceu em 1997, quando bandas da chamada MPopB já passeavam pelas paradas de sucesso (Skank, Raimundos) e a morte de Chico Science e dos Mamonas Assassinas deixaram um gosto amargo tanto nas fusões globalizadas quanto no humor colegial. Produzido pelo mesmo Rick Bonadio dos Mamonas, o quinteto santista fazia skate rock – um tipo de música facilmente identificável pelo público dos esportes radicais, mas que remetia a coisas tão diferentes quanto Rage Against the Machine e Sublime, punk rock, ska, reggae e rap. Na verdade, mais do que um tipo de música, “skate rock” é um target, um segmento de mercado.

Com seu vocalista carismático e uma banda com impressionante domínio de palco, entre 1997 e 2002, o Charlie Brown Jr. foi colecionando hits em rádios roqueiras e mantendo sua reputação extreme com faixas mais pesadas e discurso repleto de menções a esportes e à vida familiar conturbada de Chorão. Sem contar o hábito do cantor de brigar com jornalistas, executivos de gravadora, músicos, esportistas e transeuntes em geral. “Extreme”, como eles se autodefinem.

Em cinco anos, venderam, ao todo, mais de 1 milhão de exemplares e instituíram um novo padrão para o rock brasileiro. Ou, ao menos, um padrão para o rock brasileiro presente nas rádios rock, na MTV e nas grandes gravadoras: pesado, agressivo, ligado a esportes radicais e direcionado a um público bastante jovem, hiperativo, gamemaníaco, superinformado. Um pouco relacionado ao dito “novo rock” americano, de bandas como Blink 182, Linkin Park e System of a Down. O departamento de marketing da Coca-Cola (sempre às voltas com a questão de se manter “classic” e jovem) não poderia desejar garotos-propaganda mais eficientes. Em outubro de 2003, estreou sua nova campanha em que a banda que cantava “ela é tão diferente e eu igual a todo mundo” dizia que quem não fosse igual a todo mundo estava fora da turma.

Na imprensa, pouco se falou a respeito. Numa solitária reportagem do suplemento Folhateen, da Folha de S.Paulo, a psicanalista paulista Maria Rita Kehl definiu a mensagem publicitária como “rebeldia obediente”. “Não há nada a ser contestado pelo jovem nessa lógica: sua rebeldia é exatamente o que a economia quer que ele queira.” Entre os colegas músicos, o único que fugiu do habitual “cada um sabe de si” foi Marcelo Camelo, do grupo carioca Los Hermanos. Poucas semanas depois, em um vôo para Fortaleza, em julho de 2004, Chorão o agrediu com uma cabeçada e um soco. A discussão passou dos cadernos culturais para os policiais. Quase nada, se comparado à polêmica formada quando o grupo Jota Quest estrelou uma campanha do refrigerante Fanta (1999) ou quando o Planet Hemp refez o refrão de “Queimando Tudo” para vender um cartão de crédito (“eu continuo pagando tudo até a última conta”, em 1997). Ou todo mundo temeu levar cabeçadas ou ninguém esperaria outra coisa de uma banda de rock rebelde – e ingênuos fomos nós.

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“A música perdeu sua importância”, diagnostica o produtor Rick Bonadio, descobridor do Charlie Brown Jr. “Agora é só uma opção de entretenimento a mais. Concorre com internet, celular, cinema, home theatre, DVDs etc. Na minha época, você comprava o último do Led Zeppelin, a revista Status e acabou. O grande negócio estava na música. Hoje, o garoto quer fazer programa de computador, jogar aqueles jogos idiotas…”

Se tem alguém que entende exatamente o que é rock e seu significado para o público do século 21, esse alguém é Rick Bonadio. Assinatura por trás de sucessos como Charlie Brown Jr., CPM 22, O Surto e Tihuana – todos evidentemente mais agressivos do que o que se convencionou chamar de “pop radiofônico”, mas todos com grande execução em rádios direcionadas ao público de roqueiro. Mas qual seria esse público? “É um garoto despretensioso, entre 12 e 18 anos, de qualquer classe social, que busca se identificar com a emoção que a música traz”, determina o produtor, tão claramente quanto enxerga a função do rock para esse público. “O discurso tem de refletir o que a molecada é – e ela muda constantemente, odeia hoje o que adorava ontem… O importante é que naquela música específica exista uma emoção com a qual o ouvinte se identifique. Não é preciso se identificar com o disco todo, muito menos com o discurso. Era assim quando o rock foi criado, e isso é que é o legal: não ter compromisso, não ter a obrigação de ser coerente.”

Atitude e visual

Uma das principais bandas surgidas após o sucesso do Charlie Brown Jr. foi a carioca Detonautas Roque Clube. A partir de seu próprio nome, a banda faz questão de levantar a bandeira do rock nacional – e isso também ajuda a conjugar certa turma, a dos que se assumem roqueiros. “Bandas como nós, o CPM 22, a Pitty e o Tihuana, surgidas depois do Charlie Brown Jr., são influenciadas por outras bandas de rock brasileiro, dos anos 80 e 90”, afirma Tico Santa-Cruz, vocalista do Detonautas. “Mas a palavra ‘rock’ não define um estilo musical exatamente. Pode ir do eletrônico ao punk às influências mais brasileiras. Eu escuto todas as vertentes. Creio que o que determina o que pode ser chamado de rock ou não passa muito mais pela atitude e pelo visual.”

Apesar de seu significado pouco preciso, a palavra “atitude” é muito usada como atestado de credibilidade dessa geração. “O que vale é a atitude, e atitude é o que não falta”, canta Chorão em “Somos Poucos, Mas Somos Loucos”. Tico Santa-Cruz entende atitude como “o controle para fazer o que tua consciência manda ou recusar o que ela condena”. A baiana Pitty, talvez o derradeiro grande sucesso do primeiro meio século do rock brasileiro, já passou pelo constrangimento de ver uma revista atestar sua “atitude” pela quantidade de tatuagens e piercings espalhada por seu corpo. “Atitude é fazer o que se quer sem prejudicar ninguém”, define ela, vagamente. (O dicionário é traiçoeiro nesse caso: além de significar “postura”, a palavra pode querer dizer “afetação de comportamento”.)

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O streetwear trajado pelas bandas roqueiras é outro fator agregador. Para dar uma idéia da força das conexões moda-atitude-rock, basta lembrar que ela teve força para fazer do lojista Alberto “Turco Loco” Hiar deputado estadual. No início dos anos 90, o então proprietário da grife Vision Street Wear atuava como uma espécie de mecenas, bancando equipamentos e produções, enquanto os músicos atuavam como garotos-propaganda voluntários da marca. Até quem não era patrocinado passou a vestir a marca, buscando se integrar à mesma atitude e ao mesmo visual. Em 1994 (não coincidentemente o ano da explosão do MPopB), Hiar entrou para a política como suplente de vereador, ao mesmo tempo em que fundou, ao lado do baterista do Sepultura, Igor Cavalera, a Cavalera Streetwear, hoje uma potência comercial e verdadeiro sinônimo de “atitude” no mundo da moda.

“Claro que a roupa que você usa ou a tatuagem que você tem não determinam nada”, esclarece Tico Santa-Cruz. “Tem a ver com seu estilo de vida. Mas quando você fala de ‘rock’, hoje em dia, existe esse elemento visual, que é comum na maior parte das bandas que me influenciaram, como os Chili Peppers ou o Jane’s Addiction.” Pitty acredita que o jeito de se vestir tem muito a ver com o fator geracional. “Há sempre negação e substituição de alguns valores que podem ser resgatados no futuro”, nota a cantora. “Para mim, o uso do termo ‘rock’ engloba som, posicionamento, comportamento.”

Sem problemas

Pitty era tudo o que a mídia roqueira esperava ansiosamente em 2003: música pesada, guiada por guitarras, com leve informação eletrônica, uma garota nos vocais (bonita, mas de uma beleza cotidiana), tatuada e vestida de streetwear, com um piercing na língua, compondo seu próprio material e cantando verbos no imperativo em frases como “seja você” e “quem não tem teto de vidro que atire a primeira pedra”. Sob esmerada produção de Rafael Ramos (no nível do pós-grunge estrangeiro de bandas como Hoobastank, Lostprophets e Evanescence), o álbum Admirável Chip Novo fez a feira: emplacou quatro hits em rádios roqueiras e uma balada (“Equalize”) entre as mais tocadas em todo o Brasil. Foi eleita a cantora do ano pelo público do canal Nickelodeon e revelação pelo público do Multishow. Mas, principalmente, foi abraçada pela MTV como não se via desde os velhos tempos de Banda Sim. Com cinco clipes em alta rotação, foi sugerida pela emissora para participar do Acústico do Ira!, entrou ainda no Ao Vivo de Rita Lee, participou do reality-show Família MTV e acabou vencendo o prêmio mais disputado do VMB de 2004, o de escolha da audiência.

Uma das razões é elementar: ao contrário da maior parte de seus colegas, a baiana Pitty não problematiza sua relação com a mídia roqueira. “Não adianta ter uma idéia legal enfiada na gaveta”, ela diz. “É preciso ter moral e voz ativa pra espalhar isso por aí. Além disso, o soro antiofídico é feito do veneno da cobra – ou seja, é preciso aproveitar os espaços para injetar novas perspectivas.”

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Quando vivia em Salvador, Pitty tocava numa banda de hardcore metalizado chamado Inkoma. O hardcore, também fortemente associado ao visual e ao estilo de vida dos esportes radicais, foi uma das tendências mais fortes no underground brasileiro no final dos anos 90 – mais precisamente a partir do sucesso nacional dos Raimundos. Desse cenário, a principal banda a chegar ao mainstream foi o CPM 22. Também produzida por Rick Bonadio, a banda conseguiu arregimentar o público roqueiro por um instrumental calcado no punk rock inglês de 1977 e letras românticas que não ficariam deslocadas na voz dos artistas “bregas”. Como os Detonautas, eles citam as bandas do rock nacional nos anos 80: “Naquela época, o rock falava de relacionamentos, e sentíamos muita falta disso entre as bandas dos anos 90”, explica o vocalista Badauí, assumido discípulo de Nasi, do Ira!

Apesar de partilhar o mesmo jovem público, o CPM 22 é uma banda de rock absolutamente elétrica, sem quedas para baladas ao violão ou qualquer modernismo eletrônica. O que comprova, mais uma vez, a teoria de Tico Santa-Cruz de que o que se convencionou chamar de “rock” entre quem se convencionou chamar de “roqueiro” no início dos anos 2000 tem mais a ver com o streetwear e com a postura do que com a música. Sem pretensões revolucionárias, desideologizado e despreocupado com isso, a música de guitarras feita no país do samba chegou à maioridade do jeito que os adultos chegam: aprendendo a conviver com todos aqueles que desprezou em seus tempos de rebeldia.

2002

MARÇO

• Roger Waters toca pela primeira vez no Brasil.

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JUNHO

• Brasil vence a Alemanha e sagra-se pentacampeão mundial de futebol.

• O jornalista Tim Lopes é assassinado no complexo do Alemão, no Rio de Janeiro.

SETEMBRO

• Os Paralamas do Sucesso voltam a tocar ao vivo.

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• Fernandinho Beira-Mar e o Comando Vermelho matam quatro detentos em rebelião no Complexo Penitenciário Bangu I.

OUTUBRO

• Luiz Inácio Lula da Silva é eleito presidente do Brasil.

• O dólar atinge a cotação de 4 reais.

NOVEMBRO

• A estudante Suzane von Richthofen, de 19 anos, assassina os pais.

• O filme Cidade de Deus é lançado mundialmente.

DEZEMBRO

• Morre Joe Strummer, ex-The Clash.

2003

JANEIRO

• O rapper Sabotage é assassinado.

FEVEREIRO

• A ovelha Dolly é sacrificada, com seis anos de idade.

MARÇO

• Os Estados Unidos bombardeiam o Iraque.

• Morre Celly Campello.

• O filme Tiros em Columbine ganha o Oscar de melhor documentário.

ABRIL

• A Apple lança a iTunes Store, loja vitual com mais de 1 milhão de músicas em seu catálogo.

JUNHO

• É realizado em Porto Alegre o IV Fórum Internacional do Software Livre.

AGOSTO

• Morre Roberto Marinho, fundador das Organizações Globo.

OUTUBRO

• Morre a cantora Nora Ney.

NOVEMBRO

• Michael Jackson é preso pela polícia acusado de molestar crianças.

DEZEMBRO

• Tropas americanas prendem Saddam Hussein.

O produtor: Rick Bonadio

Exemplos de produtores que ajudaram a fortalecer toda uma cena musical não faltam no pop. Foi assim com Jack Endino no grunge, Rick Rubin no rap, Liminha no nosso rock dos anos 80. Mas outro brasileiro tem um mérito peculiar: Rick Bonadio espalhou guitarras pelo final da década de 90. Charlie Brown Jr., Tihuana, O Surto, CPM 22, todas elas encontraram espaço nas rádios e no coração adolescentes sob sua orientação. Seus créditos junto à indústria do disco, entretanto, se devem ao fato de haver descoberto e produzido o fenômeno Mamonas Assassinas. Logo depois, assumiu a direção artística da Virgin e buscou em Santos o maior expoente de sua lavra: Charlie Brown Jr. Apesar da predileção pelo rock juvenil e pelo rap, sabe dialogar com o mercado – veio de sua mesa discos de ET & Rodolfo, Rouge e Br’oz. Mas não esperneie, indie honesto: Bonadio também produziu, anonimamente, o primeiro disco do Los Hermanos, famoso por “Anna Júlia” – que, segundo conta, só entrou por sua insistência. Rick Bonadio já afirmou que “a música perdeu a importância” no mundo do entretenimento. É mais ou menos a versão anos 2000 do que dizia Rogério Duprat no primeiro volume de nossa História do Rock Brasileiro (“o que importa na música é o acontecimento”). O diferencial é que, como homem de negócios, Bonadio não perde de vista o business da coisa. “Isso aqui não é filantropia!”, define seu selo, Arsenal.

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