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Petróleo verde

De vegetais como a mamona, o dendê e o milho estão saindo plásticos, engrenagens, combustíveis e até órgãos artificiais do corpo humano num movimento que tende a superar o petróleo como a principal fonte de matéria-prima da Química moderna.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h59 - Publicado em 30 nov 1991, 22h00

Flávio Dieguez e Marcelo Affini

Uma pessoa desavisada, ao observar o trabalho do químico Gilberto Chierice em seu laboratório da Universidade de São Paulo, em São Carlos, SP, poderia confundi-lo com uma espécie de mago. É a impressão que se tem quando ele derrama num copo duas colheres contendo líquidos amarelados e de aparência oleosa, extraídos da mamona, arbusto que cresce em qualquer terreno baldio do país. Em seguida, como se entrasse em ebulição, a mistura começa a se expandir, se transforma em espuma e em pouco mais de um minuto já não há sinal dos líquidos originais. Em seu lugar, com a forma aproximada de um sorvete e um volume até 35 vezes maior que o original, resta uma massa elástica, resistente e macia, que lembra, de longe, o isopor.

Naturalmente, Chierice não é um mago, mas, como cientista, aperfeiçoa as reações de urna química inovadora — a dos óleos vegetais. Seu objetivo é nada menos que dar um basta ao petróleo, fonte quase exclusiva das matérias-primas com que se fazem extraordinárias substâncias artificiais, sejam plásticos ou remédios. No entanto, as plantas contêm óleos que, transformados da maneira adequada, produzem substâncias equivalentes às antigas. E com inúmeras vantagens, já que, entre os difíceis problemas derivados do petróleo, encontram-se a poluição e o fato de existir em quantidade limitada, enquanto os vegetais podem ser indefinidamente colhidos e replantados. Isso explica o entusiasmo dos pesquisadores com a chamada “química verde”.

“Os recursos agrícolas constituirão a base da química não-poluente do amanhã”, aposta Wagner Palito, parceiro de Chierice na USP de São Carlos. Sua confiança concentra-se, em especial, na mamona, de onde sairiam mais de 600 produtos diferentes. Embora pouco conhecidos, muitos deles já são usados com sucesso. Nos aviões, por exemplo, eles são empregados como estofo nas poltronas, revestimento para as paredes, assim como nos vasos sanitários e até nos carpetes. Sua vantagem é a segurança, pois não queima com facilidade e, quando isso acorre, não libera gases tóxicos Assim se evitam tragédias como o célebre acidente de Orly, na França, quando 116 passageiros morreram durante o incêndio de um Boeing 707 da Varig, em 1973. Mas, antes que o fogo atingisse as vítimas, elas já haviam sido sufocadas pelos gases do polivinil, o PVC, derivado de petróleo, usado na época como revestimento e isolante térmico e acústico.

Também os automóveis começam a incorporar derivados dos óleos de mamona. Nos países desenvolvidos, estes servem para fazer espumas anti-ruido, instaladas por força de lei sob os carpetes dos veículos. Por outro lado, na Europa e nos Estados Unidos a lei exige que os pára-choques e boa parte do revestimento interno de carros e caminhões sejam fabricados de plástico poliuretano de origem vegetal. Em futuro próximo, resinas poliuretanas vegetais, boas isolantes térmicas, ocuparão lugar de destaque em câmaras frigoríficas e geladeiras brasileiras.

Elas devem substituir o atual sistema à base do gás CFC e podem desbancá-lo como componente das pranchas de surfe. Há três anos, grandes grupos empresariais europeus, como o italiano Ferruzzi, começaram a produzir sacos plásticos de origem mista em derivados de petróleo e do amido de milho. Denominado amido termoplástico e usado para ensacar mercadorias ou lixo, esse plástico é o primeiro do tipo biodegradável: semanas depois de enterrado se decompõe, enquanto os plásticos tradicionais podem entalhar o solo por até um século antes de se desfazer.

Além de conquistar a simpatia dos defensores do meio ambiente, a novidade alertou os agricultores de que existe um florescente mercado, pois a demanda de vasilhames degradáveis pode absorver 320000 toneladas de milho ao ano, na Europa. “É um sinal de que em diversos países, como a França ou os Estados Unidos? a nova tecnologia já saiu dos laboratórios para as casas das pessoas”, afirma Herman Rittner, consultor de empresas especialistas no assunto. No Brasil, embora mais lentamente, há um avanço incipiente, por exemplo na Medicina, onde fazem sucesso os biopolímeros, substâncias de origem vegetal e grande plasticidade. Eles são alternativas promissoras para as próteses metálicas ou vindas do petróleo, que apresentam problema de rejeição pelo corpo humano e têm preço proibitivo para grande número de pessoas.

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A mudança renovaria a indústria de implantes ósseos. Além disso, no Hospital Amaral de Carvalho, em Jaú, SP, estão em teste peças auxiliares na cirurgia plástica de dutos vaginais e em prótese de testículos extirpados. Um trabalho realizado pela equipe de São Carlos em convênio com o IMC, Instituto de Moléstias Cardiovasculares de São José do Rio Preto, SP, resultou em filtros para hemodiálise e bombas extracorpóreas para filtragem do sangue. Em São Paulo, o Hospital Universitário da USP está analisando lentes para serem implantadas no lugar das acrílicas após cirurgias de catarata. Igualmente de biopolímeros são feitas lentes de contato mais flexíveis e bem mais aceitas pelo organismo que as usuais: não irritam tanto os olhos nem precisam ser retiradas quando se vai dormir ou nadar numa piscina.

É surpreendente como se podem moldar engrenagens tão duras quanto as de metal a partir do mesmo óleo com que se fazem assentos estofados dos aviões ou lentes de contato. Chierice construiu em São Carlos nada menos que paredes transparentes à prova de bala, que vem testando há algum tempo Não sem riscos, como prova uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda. “Num tiro de azar, a bala ricocheteou no escudo e voltou para mim”. Ainda mais surpreendente é verificar o inesperado potencial de uma planta, como a cana, cuja riqueza poderia parecer limitada ao álcool e ao açúcar. Nada mais falso.

Tanto a cana quanto a beterraba (também grande produtora de álcool) podem seguir até quatro grandes rotas químicas as quais acabam se traduzindo em plásticos, tecidos, filmes, espumas, adesivos, explosivos, borrachas sintéticas, solventes, inseticidas. Chierice ensina que a chave para conseguir artefatos tão diferentes está nas fórmulas que os químicos empregam para misturar moléculas, que podem ser de dois tipos. Os polióis, em primeiro lugar, são substâncias orgânicas que contêm diversas duplas de átomos, cada uma delas formada por um oxigênio e um hidrogênio.

As outras moléculas essenciais são os prepolímeros, cuja estrutura contém, em vez de duplas, trios de átomos, cada trio composto de um nitrogênio, um carbono e um oxigênio. Dependendo da quantidade de poliol e prepolímero que se mistura, se obtém um tipo diferente de substância: de modo geral, quanto mais poliol se introduz, maior é a flexibilidade do material resultante. E, o que é ainda mais interessante, polióis e prepolímeros podem ser produzidos com materiais extraídos de qualquer planta que tenha semente: estão incluídas, portanto, desde uva e café, até soja, dendê, babaçu, girassol, ou algodão. Além, é claro, da mamona, que tem a grande virtude de não ser comestível.

Óleos alimentícios são a mais concentrada fonte de energia de que dispõe o organismo humano e por isso não devem ser empregados em grande escala na indústria de artefatos. E o que aconselha o engenheiro Daniel Barrera Arellano, do ultramoderno Instituto de Pesquisas em Tecnologia de Óleos e Gorduras, instalado na Faculdade de Engenharia de Alimentos, da Unicamp, em Campinas, SP. Na verdade, o brasileiro já ingere uma quantidade de óleo bem menor do que precisa-15 quilos per capita ao ano, contra os 36 quilos considerados ideais, afirma Arellano. “Na Europa o consumo chega a 40 quilos.”

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Apesar disso, o mercado de óleos vegetais não alimentares pode ser aumentado se a área de plantio também se ampliar na mesma proporção. Como o Brasil dispõe de vastíssima extensão de terra agricultável e mão-de-obra ociosa, os produtos oleoquímicos se apresentam como um negócio de futuro. Mas melhor ainda é lançar mão da mamoneira, arbusto capaz de se adaptar às mais diferentes condições climáticas, da gelada região norte dos Estados Unidos às tórridas plagas etíopes. Bagas de mamona encontradas nas pirâmides do Egito, junto com outros objetos depositados nos sarcófagos, fazem pensar que a planta ajudava a preservar as múmias e que já fosse cultivada há pelo menos 4000 anos.

Trazida ao Brasil durante o século XVI, ela acabou ganhando espaço nas lavouras nacionais (cerca de 300 000 hectares, comparados com mais de 9 milhões de hectares, no caso da soja). Seu óleo tem grande valor como lubrificante e aditivo, já que se mantém em estado líquido até 30°C negativos, muito aquém do ponto de congelamento dos combustíveis puros. Largamente utilizado na aviação e nos ônibus espaciais, é visto pelo governo dos Estados Unidos como produto militar estratégico. A evolução tecnológica iniciada no século XIX prenunciava um papel de destaque para os óleos vegetais, que então começaram a ser empregados, em grande escala, na iluminação e na Medicina.

O advento do petróleo frustou essas expectativas, e não sem motivo, já que se tratava de matéria-prima abundante, barata e versátil. Agora, porém, quando suas reservas se aproximam, literalmente, do fundo do poço e os problemas de poluição desenham uma negra perspectiva para o futuro. não seria má idéia se os governos acenassem com luz verde para a química das plantas. Bem provida de recursos humanos e financeiros, ela poderia impulsionar a indústria de transformação a um novo salto de qualidade, mais importante. talvez, que o do início do século.

 

 

 

 

Para saber mais:

A promessa da fusão

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(SUPER número 8, ano 3)

 

A força do Sol

(SUPER número 11, ano 4)

 

O mundo sem petróleo

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(SUPER número 6, ao 7)

 

 

 

 

Pesquisa em massa

Os europeus acreditam que é possível acelerar o estudo da química das plantas—basta centralizar as pesquisas em uma única instituição de modo a não pulverizar os recursos existentes. Assim, desde 1983, criaram o Cavisa, centro que integra empresas do porte da Ferruzzi italiana e da Imperial Chemical Industries inglesa, além de diversas órgãos científicos. No Brasil existe um projeto parecido para os laboratórios nacionais, o Centro de Oleoquimica, que seria financiado pelo governo estadual e funcionaria na cidade de São Carlos, SP. Um dos pais da idéia, o químico Gilberto Chierice, da USP, defende-a: “No centro, cinqüenta cientistas poderiam investigar tecnologia de ponta, essencial ao pais.” Para se ter uma idéia da aposta que se faz no futuro, só a Ferruzzi investe 400 milhões de dólares por ano na chamada química verde e emprega 5 000 pesquisadores.

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Energia que dá em árvore

Se dependesse apenas de bons resultados nas pesquisas, há tempos já se poderiam encontrar, em lugar do óleo diesel, óleos extraídos das plantas nos postos de combustível. Mas, de certa forma, dentro das indústrias, eles já são uma realidade prática. A Volkswagen, por exemplo, está testando o familiar óleo de soja e o azeite-de-dendê como combustível, respectivamente, da camionete Saveiro e do carro Parati. O óleo de mamona, já testado e aprovado nos motores do Fiat Fiorino, só não chegou ao mercado até agora porque há um parecer favorável emperrado em alguma prateleira da burocracia ministerial. Enfim, os executivos da empresa Central de Álcool, de Lucélia, SP, estudam a montagem de uma fábrica de extração de óleo de mamona para abastecer seus caminhões. Sua utilização, seja em veículos de transporte de carga, na operação de máquinas industriais ou em equipamentos agrícolas, apresenta vantagens imediatas por ser um produto nacional e menos poluente que o diesel— emissor de gás carbônico e por isso causador do efeito estufa, que eleva a temperatura do planeta.

 

 

 

 

 

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