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A civilização – sociedades complexas criam deuses éticos, e vice-versa

Os chamados Deuses Grandes foram importantes para cimentar a solidariedade entre populações numerosas.

Texto: Reinaldo José Lopes | Edição de Arte: Estúdio Nono / Cris Kashima
Design: Andy Faria | Imagens: Getty Images

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o capítulo “Como nascem os deuses”, vimos como uma série de vieses cognitivos típicos da nossa espécie acabam facilitando a crença em entidades sobrenaturais de modo geral: para a maioria das pessoas, em todas as épocas, é difícil conceber um Universo no qual agentes intencionais não estejam por trás do que enxergamos como complexidade, ordem e mesmo Destino com D maiúsculo. Esse tipo de intuição, no entanto, não diz muita coisa sobre o que se passa na cabeça de tais entidades, nem sobre o que elas desejam dos reles mortais.

É aí que entra em cena outra predisposição mental típica do “Homo sapiens”: somos criaturas intensamente sociais, cuja vida e bem-estar dependem do relacionamento mais ou menos equilibrado e “justo” com outras criaturas do mesmo tipo.

E se fosse possível conceber os agentes intencionais sobrenaturais como seres que têm um interesse especial por justiça? É o que muitas sociedades andaram fazendo desde a aurora dos tempos, e o resultado são os chamados Deuses Grandes, termo cunhado pelo psicólogo social Ara Norenzayan, da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá. Os Deuses Grandes são divindades que monitoram o comportamento ético das pessoas – e punem transgressões, segundo a crença de seus seguidores.

Para entender melhor o impacto social dos Deuses Grandes, proponho que a gente esboce aqui uma pequena taxonomia do altruísmo e da cooperação. De fato, é impressionante como os membros da nossa espécie são capazes de trabalhar em equipe e de confiar uns nos outros.

Para dar um exemplo banal e que, à primeira vista, não parece ter nada de muito elevado moralmente: se você está acostumado a fazer compras pela internet, como eu, pense um instantinho na maluquice que é fornecer o número do seu cartão de crédito para um site que pertence a completos desconhecidos e, alguns dias úteis depois, o produto que você adquiriu chega direitinho na sua caixa de correio, em perfeito estado e com nota fiscal. O que impediu os sujeitos do site de pegar o dinheiro e deixar você na mão?

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A resposta cínica é: o medo da polícia ou dos seus advogados. Ou ainda, no mínimo, o desejo puramente egoísta de continuar vendendo cacarecos pela internet e ganhando dinheiro com isso. Superficialmente, a resposta está certa, mas é preciso considerar que o comércio de longa distância surgiu milênios antes da internet, dos advogados e da polícia, e mesmo assim funcionava. E a questão não é apenas a cooperação para fins econômicos.

Tanto no mundo de hoje quanto no passado remoto, as pessoas se unem para enviar doações a gente que está passando fome do outro lado do planeta (gente, aliás, que elas nunca viram nem verão), formam exércitos gigantescos para lutar contra inimigos comuns, obedecem a autoridades que elegeram, caminham em meio a multidões de desconhecidos sem nenhum sinal de hostilidade.

O esquisito é que, durante dezenas de milhares de anos de existência da nossa espécie, todas essas coisas que acabei de descrever seriam absolutamente impensáveis, pelo simples fato de que o ser humano passou quase toda a sua história evolutiva vivendo em grupos minúsculos de caçadores-coletores, cada um deles com, no máximo, algumas centenas de membros – o mais comum é que fossem algumas dezenas, na verdade. A diferença entre esse estado e as sociedades de grande escala com as quais estamos acostumados é brutal, acredite.

Para começo de conversa, entre esses grupos sociais “versão 1.0”, qualquer estranho ou intruso é, quase por definição, um inimigo, uma ameaça. Outro ponto crucial é que essas sociedades costumam ser radicalmente igualitárias: não há divisão de trabalho (com exceção da que às vezes existe entre homens e mulheres), nem “governo”, nem ao menos caciques. Finalmente, a tendência é que cada grupo seja formado, em boa parte, por gente que tem parentesco entre si.

<strong>Agricultura: a descoberta mais transformadora da história da nossa espécie.</strong>
Agricultura: a descoberta mais transformadora da história da nossa espécie. (DenPotisev/Getty Images)
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Isso significa que as regras que controlam a cooperação e o altruísmo nesses grupos tendem a seguir princípios que valem, -grosso modo, para muitas outras espécies de animais. Em primeiro lugar, quando as pessoas pensam em seu círculo social, está em plena operação a chamada seleção de parentesco. Ou seja: os indivíduos têm uma tendência naturalmente maior de agir de forma altruísta quando isso beneficia membros do grupo com os quais têm parentesco mais próximo.

Não se trata apenas de amor entre pais e filhos, mas também, em última instância, de autointeresse genético. Seus parentes próximos, afinal de contas, carregam uma fração significativa de seu DNA – filhos, por exemplo, têm 50% dos genes dos pais.

Mas mesmo grupos de caçadores-coletores não são tão pequenos para que todo mundo seja parente próximo, ou mesmo de segundo grau. Sem a força extremamente poderosa da seleção de parentesco, para cimentar a cooperação e o espírito de doação e sacrifício pelo próximo, um dos princípios mais importantes que entram em ação é o chamado altruísmo recíproco.

Se quisermos bancar os cínicos, podemos apelidá-lo de “É dando que se recebe”, “Uma mão lava a outra” ou outros lemas de políticos. Mas não há nada essencialmente calhorda em ser legal com quem trata você decentemente. Gentileza gera gentileza, afinal de contas.

Vamos supor que o seu grupo de caçadores-coletores costuma interagir de forma relativamente pacífica com dois ou três outros grupos que vivem no mesmo vale da floresta tropical. Ainda assim, o raio geográfico das suas interações sociais é tão restrito que fica impossível alguém daquela área não conhecer no mínimo a sua reputação, ainda que não conheça você pessoalmente.

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É o que os teóricos costumam chamar de altruísmo recíproco indireto: mesmo quem nunca interagiu com você já ouviu dizer que fulano é um bom sujeito ou um traíra e agirá de acordo com tais informações. De novo, o crime, em geral, não compensa nesses casos.

A coisa inevitavelmente muda de figura quando as sociedades humanas atingem outra escala de tamanho – situação que, em quase todos os lugares do mundo, é resultado da agricultura e/ou da criação de animais. A questão é que sociedades com dezenas de milhares de membros não têm como manter os elementos centrais do altruísmo recíproco, seja ele direto ou indireto. Não há como interagir, cara a cara e chamando pelo nome, com todos os membros daquele grupo — e a boa e velha reputação tampouco funciona. Como resolver esse dilema?

Em parte, é claro que a resposta é inventar um Estado que funcione: burocratas para cobrar impostos; soldados para manter a ordem; tribunais, cadeias e carrascos para punir os malfeitores, e por aí vai. No entanto, durante milênios, da Mesopotâmia antiga até o século 19, até os Estados mais poderosos em geral eram “mínimos” no mau sentido. Funcionavam mal, em especial para os pobres (90% da população antes da modernidade).

Para o bem e para o mal, pessoas comuns tinham de se virar sem governo e sem polícia quase sempre. Sem polícia e sem governo, mas pelo menos com Deus ou os deuses.

A piada de Haldane

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O resultado do cálculo sobre o compartilhamento de genes entre parentes próximos indica que é do seu interesse garantir que eles sobrevivam e, principalmente, consigam se reproduzir, porque isso lhe confere uma chance de “imortalidade”; eles passam adiante boa parte do que você é.

Como brincou certa vez o biólogo britânico J.B.S. Haldane (1892–1964), ele não seria capaz de dar a vida por um irmão, mas se sacrificar por dois irmãos ou oito primos já parecia um bom negócio – basicamente porque, somando os genes compartilhados por essa parentada toda, o resultado era igual a “1 Haldane”. Ou seja, era como se ele nem morresse, do ponto de vista genético, caso seu sacrifício salvasse os irmãos e primos.

Deuses que se importam

O primeiro argumento do psicólogo e seus colegas é, no fundo, estatístico. O fato é que existe uma correlação muito curiosa entre a crença em Deuses Grandes e a complexidade política e social. Em outras palavras, é bem raro que grupos de caçadores-coletores acreditem em divindades dessa natureza, mas pessoas que vivem em sociedades complexas e Estados quase sempre seguem esse tipo de deus.

Um levantamento feito pelo antropólogo Christopher Boehm, da Universidade do Sul da Califórnia, que examinou as crenças religiosas de 18 sociedades de caçadores-coletores, mostrou que apenas quatro delas adoram deuses que proíbem enganar os outros, e só sete possuem divindades que condenam o assassinato.

Num estudo parecido, o sociólogo Rodney Stark, da Universidade Baylor (EUA), examinou um banco de dados sobre as religiões de mais de 400 culturas pré-industriais diferentes mundo afora (ou seja, incluindo tanto caçadores-coletores quanto agricultores e criadores de gado “primitivos”). Resultado: só um quarto delas reverencia deuses que se interessam pelos assuntos humanos e pregam o comportamento ético.

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Nada disso significa que caçadores-coletores ou agricultores primitivos fossem ateus. Praticamente todos eles acreditam em deuses, espíritos ancestrais etc., mas a questão é que tais entidades 1) não estão muito aí para o que seus seguidores andam fazendo e 2) possuem poderes bastante limitados. A “onisciência” delas pode se restringir ao que acontece no território de uma aldeia, digamos.

E, apesar de os deuses de caçadores-coletores raramente punirem a trapaça ou o assassinato, isso também não significa que esses grupos sejam um vale-tudo amoral. Pelo contrário: eles também condenam várias das práticas que nós vemos como violações éticas – sem que as divindades que adoram precisem meter o bedelho nisso.

Outra ressalva importante tem a ver com a associação automática que as pessoas fazem entre o Deus único dos monoteísmos ocidentais – do judaísmo, do cristianismo e do islamismo – e as diretrizes éticas. O fato é que é perfeitamente possível a existência de Deuses Grandes entre pagãos, ou seja, politeístas, gente que adora uma família ou até uma multidão de deuses.

Independentemente do número de Deuses Grandes, o fato é que as sociedades que acreditam neles se tornam mais coesas e aguerridas do que as demais, numa dinâmica “cooperar para competir” – no sentido de que os adeptos desse tipo de divindade cooperam com mais facilidade entre si e, portanto, competem com mais sucesso contra os membros de outras sociedades não tão devotas.

<strong>Não é à toa que Deus pode ser retratado como um enorme olho: tal imagem ajuda as pessoas a se comportarem.</strong>
Não é à toa que Deus pode ser retratado como um enorme olho: tal imagem ajuda as pessoas a se comportarem. (Dencake/Getty Images)

Existem alguns dados empíricos intrigantes a esse respeito. O caso mais clássico é um estudo feito pelo antropólogo Richard Sosis, da Universidade de Connecticut (EUA), sobre as comunas religiosas e não religiosas que floresceram no território americano ao longo do século 19. Estamos falando de gente que, insatisfeita com a maneira como as coisas funcionavam nos Estados Unidos da época, resolveram fundar suas próprias sociedades semiautônomas.

Ocorre que alguns desses grupos seguiam crenças religiosas muito específicas. Os mais peculiares, ou simplesmente malucos, talvez fossem os chamados perfeccionistas de Oneida, que acreditavam que o reino de Deus na Terra já estava acontecendo e praticavam “casamento complexo” – todo mundo era casado com todo mundo do grupo – e o costume de as mulheres com mais de 40 anos iniciarem sexualmente os adolescentes do sexo masculino. E havia ainda as comunas seculares, ou seja, não religiosas – em geral congregando praticantes de uma forma primitiva de socialismo.

Quais comunidades você acha que duraram por mais tempo, num intervalo examinado de 110 anos? Acertou se você disse “as religiosas” – e com folga. Em média, elas sobreviveram quatro vezes mais tempo que suas contrapartes.

A questão, é claro, é como a crença em Deuses Grandes produz benefícios sociais. Uma pista importante sobre isso vem de experimentos nos quais a pessoa estava sujeita à tentação de trapacear em jogos de computador. Nesses casos, a exibição extremamente rápida de palavras como “Deus”, “céu”, “pecado” etc. diminuiu significativamente a frequência de atitudes desonestas.

Experimentos também sugerem que a participação ativa na adoração a Deuses Grandes torna as pessoas, em média, mais propensas a contribuir para o bem-estar de seus pares, aumentando sua tendência a cooperar em jogos de laboratório – é o que se viu tanto entre adeptos brasileiros do candomblé quanto entre muçulmanos da Índia.

Aliás, parece que, do ponto de vista psicológico, o problema que os crentes em Deus têm com os ateus é essencialmente de confiança. Em outras palavras, as pessoas parecem enxergar a adesão a um Deus Grande como parte importante da fé do sujeito no “contrato social”, ou seja, nas regras que governam a justiça e moralidade na vida em grupo.

Segundo esse ponto de vista, não é que os ateus sejam maus – eles apenas não teriam um fiador sobrenatural quando se sentissem tentados a fazer algo errado. A ideia é apoiada por dados que mostram, também em jogos experimentais, que as pessoas têm mais probabilidade de cooperar com parceiros sabidamente religiosos, mesmo que tais parceiros não sejam da mesma religião que a sua.

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