Terceira maior fabricante de aviões comerciais do mundo, a brasileira Embraer revisa suas rotas após o desacordo com a Boeing.
Texto: Paulo César Teixeira | Edição de Arte: Inara Pacheco | Design: Andy Faria
Oano é 1945. O tenente-coronel Casimiro Montenegro Filho está em uma planície descampada da região de São José dos Campos, a 90 quilômetros de São Paulo, diante de um grupo de oficiais do Estado Maior do Ministério da Aeronáutica. Em uma mão, segura o mapa com dados topográficos identificados por fotografias aéreas. Com a outra, o ex-piloto do serviço de correio militar indica a localização de cada prédio a ser construído para a criação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o ITA, embrião da indústria aeronáutica do Brasil. “Ali teremos o túnel dinâmico. À direita, o laboratório de motores e, um pouco adiante, a pista de pouso.” Ao encerrar a exposição e se despedir dos oficiais, escuta a voz do chefe do grupo: “Até a vista, Júlio Verne!”
O comentário jocoso, com menção ao escritor francês – tido como o pai da ficção científica –, dá a medida do descrédito que havia em relação à construção de uma indústria aeronáutica competitiva no Brasil. Não era para menos. Nos anos 1940, o país nem sequer produzia bicicletas. Mas a prova de que o sonho poderia se concretizar é a Embraer, formada em São José dos Campos (SP) a partir da pesquisa e do conhecimento técnico desenvolvido no ITA.
Antes da pandemia, um avião fabricado pela Embraer decolava a cada dez segundos em algum aeroporto do planeta. Em 2019, a empresa completou meio século de atividades na condição de terceira maior fabricante de jatos comerciais do mundo – atrás apenas de Airbus e Boeing. Além disso, lidera com folga o segmento de aeronaves de passageiros de até 130 assentos.
A Embraer é o que de melhor o Brasil oferece ao mundo em termos de evolução tecnológica. Quem diz isso é Aaron Schneider, professor de Relações Internacionais na Universidade de Denver, nos Estados Unidos. Segundo ele, poucos países conseguem certificar seus aviões para uso em rotas internacionais. É um grupo seleto do qual o Brasil faz parte como único representante das nações em desenvolvimento.
“Mesmo economias mais avançadas não atingiram esse patamar”, diz Schneider. Ele cita os exemplos de China e Japão, que alcançaram evolução superior de seus parques industriais – mas que, no setor de aviação, estão atrás do Brasil. Outra virtude da empresa foi ter preenchido um nicho que ninguém havia ocupado.
“A performance da Embraer é incomparável do ponto de vista de produtividade no segmento de jatos de média distância, com aeronaves que alcançaram grande penetração, especialmente nos mercados de Ásia e Europa”, acrescenta o economista Ricardo Balistiero, coordenador do curso de Administração do Instituto Mauá de Tecnologia (IMT), de São Caetano do Sul (SP).
Abandono à porta da igreja
Em 2020, essa joia da indústria nacional esteve prestes a passar às mãos da Boeing. O acordo seria uma resposta à altura para outro movimento do setor: a incorporação da Bombardier pela Airbus, em 2017. A canadense Bombardier é a principal concorrente da Embraer no mercado de jatos regionais. É consenso entre analistas que a Bombardier ganhou escala, após sua venda, e se viu em condições de penetrar em mercados dominados pela Embraer. Para a fabricante brasileira, juntar forças com a Boeing parecia um bom negócio.
Em julho de 2018, após um ano de namoro, as empresas assinaram um acordo avaliado em US$ 5,2 bilhões. A Boeing assumiria a maior parcela das operações de aviação comercial da Embraer. Os segmentos de aviação executiva e agrícola, alta tecnologia e defesa e segurança não faziam parte da aliança. No começo do ano seguinte, com a aprovação dos termos do acordo pelo governo brasileiro e pelo Conselho de Administração da Embraer, tudo indicava que o noivado ia dar em casamento.
O nome da nova empresa a ser constituída, da qual os americanos teriam 80% de participação, chegou a ser divulgado: Boeing-Brasil Comercial. Havia a expectativa de que ela movimentasse algo em torno de US$ 150 bilhões anuais a partir do terceiro ano. Mas tinha uma pandemia no caminho.
Da noite para o dia, o setor teve diminuição drástica e repentina de voos em escala global. A Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA) estima que os níveis de ocupação de 2019 das aeronaves só deverão ser retomados em 2023. Em meio à crise mais aguda da história da aviação, a Boeing desfez o acordo no último 25 de abril. A multa de rescisão ficou na casa de US$ 100 milhões. Não faltou lavagem de roupa suja no distrato.
Para além da pandemia, a Boeing mencionou uma “decepção profunda” em relação à Embraer, que não teria cumprido as condições previstas durante as conversações. A brasileira, por sua vez, citou “problemas comerciais e de reputação” como pano de fundo do divórcio – indireta nada sutil ao avião 737 MAX, modelo da Boeing proibido de voar desde março de 2019 após dois acidentes em que morreram 346 pessoas. Só em 2020 foram canceladas mais de 300 encomendas da aeronave.
À primeira vista, a Embraer teria sido abandonada na porta da igreja. Mas parte dos especialistas chegou à conclusão de que a noiva teve mais sorte do que juízo. “Não era uma junção de forças, e sim uma venda disfarçada. Seria como transferir o cérebro e o coração da Embraer. Depois disso, pouco sobraria da empresa”, afirma Marcos José Barbieri Ferreira, professor da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp. Outra situação delicada era o destino de metade dos quase 20 mil empregados da Embraer – a incorporação pela Boeing, segundo sindicalistas, colocava os trabalhadores em uma rota de extrema nebulosidade.
O inventor do futuro
Há muito a se preservar da Embraer. Não apenas as atuais posições de mercado, mas também sua história repleta de personagens idealistas. É o caso de Casimiro Montenegro Filho, que enfrentou o descrédito de oficiais da Aeronáutica em 1945. É verdade que esse cearense de Fortaleza, nascido em 1904 (faleceu em 2000), estava habituado a encarar dificuldades.
Como piloto do correio militar, Montenegro havia desbravado o céu brasileiro sob ingratas condições de clima e temperatura, muitas vezes voando sem ajuda de instrumentos ou aterrissando em pistas improvisadas no meio do nada. Mais tarde, foi um dos primeiros engenheiros aeronáuticos formados pela Escola Técnica do Exército, curso de nível superior aberto em 1939 no Rio de Janeiro.
Em 1941, com a criação do Ministério da Aeronáutica, ele assumiu a direção da divisão de materiais da pasta. Após dois anos, ao viajar para os EUA com a missão de comprar aeronaves, resolveu por conta própria esticar o roteiro até Ohio para visitar o Massachusetts Institute of Technology. Fundado em 1861, o MIT já era considerado um templo da pesquisa de engenharia e tecnologia. O brasileiro não estava lá para turismo, e sim para recolher dados e informações a fim de convencer o governo a criar uma instituição similar.
O projeto virou realidade com a fundação do ITA, em 1950, e do Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento (IPD), em 1953. Não era uma combinação aleatória. As instituições se complementavam. A estratégia era criar uma escola de formação de engenheiros de alto nível e então encaminhá-los para as atividades de pesquisa. Montenegro convidou alguns dos melhores especialistas do mundo para ajudá-lo na missão de inventar a indústria aeronáutica brasileira.
Do MIT chegou o pesquisador Richard Harbert Smith, primeiro reitor do ITA. Outra figura de expressão, o alemão Heinrich Focke desembarcou em 1952 para desenvolver um convertiplano – aparelho híbrido entre avião e helicóptero. Depois, Focke liderou os estudos para a construção do Beija-Flor (Hummingbird, em inglês), que deveria ser o primeiro helicóptero projetado e construído no Brasil. Ambas as ideias resultaram em protótipos, mas não se transformaram em produtos comerciais.
Em 1965, a convite do então diretor do IPD, Ozires Silva, o designer francês Max Holste concebeu o primeiro avião de passageiros projetado no Brasil. Batizado de Bandeirante, o bimotor turboélice voou pela primeira vez em 27 de outubro de 1968. Dessa vez, a ideia era fazer com que o protótipo chegasse à linha de montagem. E, para isso, havia que se construir uma fábrica de aviões – o que se materializaria em 19 de agosto de 1969, com a criação da Embraer por decreto assinado por Arthur da Costa e Silva, o segundo presidente da Ditadura Militar.
A estatal começou promissora. Mas a crise das finanças públicas, no começo dos anos 1990, quase levou a Embraer à bancarrota. Em outubro de 1990, 4 mil funcionários foram demitidos. Surgiram pressões para privatizar a empresa, o que aconteceu em dezembro de 1994, ao final do governo de Itamar Franco. “Quando foi criada, não tinha como não ser estatal. Mas, com a descapitalização do Estado, a privatização foi um ganho”, diz Ferreira, da Unicamp.
Quem é que manda
Ao cabo de 25 anos de controle estatal, apenas dois chefes-executivos pilotaram a Embraer: Ozires Silva, o fundador, e Ozílio Silva. Eles não eram irmãos, como muita gente chegou a supor. Hoje, a Embraer é uma empresa de capital aberto com ações negociadas na NYSE, em Nova York, e na B3, a bolsa de São Paulo. Embora os papéis se dividam quase paritariamente entre as duas bolsas, 80% do capital é de fora do Brasil, já que a maior parte das ações negociadas no mercado brasileiro pertence a investidores estrangeiros.
O controle acionário está pulverizado em fundos de investimento como Brandes e Black Rock (ambos dos EUA), Mondrian (Reino Unido) e BNDESPar (Brasil). Há que se considerar, entretanto, que os acionistas de fora do Brasil estão sujeitos ao limite de 40% do direito a voto, por força de uma regra introduzida no estatuto da empresa em 2006.
Além disso, o governo brasileiro tem assegurado poder de veto em decisões estratégicas por meio do chamado golden share, um instrumento de salvaguarda criado em 1994 durante a privatização. O mecanismo nunca foi aplicado, mas transforma o presidente brasileiro em interlocutor privilegiado para tomada de decisão. No caso com a Boeing, haveria a possibilidade de Jair Bolsonaro vetar a operação, mas o governo jamais demonstrou interesse em vetar o negócio.
Descartada a relação com a gigante americana, a Embraer está desafiada a repensar a sua estratégia de futuro. Na ponta do lápis, a companhia admitiu ter gastado quase meio bilhão de reais em medidas de preparação para a negociação. Algumas perdas, contudo, são difíceis de mensurar.
“A transição exigiu a suspensão de sinergias e o desmembramento de equipes e estruturas, além de comprometer a capacidade de integração entre áreas da Embraer”, explica Barbieri Ferreira, da Unicamp. Não é pouca coisa, se levarmos em conta que a tarefa de um fabricante de aviões é exatamente integrar sistemas oriundos de diferentes fontes. O solavanco se tornou ainda mais traumático por coincidir com a pandemia.
OVNIS no rastro do Xingu
Em 19 de maio de 1986, Ozires Silva participou do episódio que ficaria conhecido como “A Noite dos Discos Voadores”. O avião em que estava, um turboélice bimotor Xingu, fabricado pela Embraer, foi perseguido por cerca de 20 objetos não identificados ao sobrevoar o Vale do Paraíba (SP). A FAB chegou a enviar cinco caças atrás das supostas naves extraterrestres.
A perseguição durou quatro horas, sem sucesso. Tão misteriosamente quanto apareceram, os OVNIs sumiram sem deixar rastros. Na época, Ozires era presidente da Petrobras. No currículo, acumulou passagens como presidente da Varig e como ministro da Infraestrutura e das Comunicações.
Nova parceria
A aproximação com a Boeing não foi o primeiro projeto de colaboração internacional da Embraer. Exemplos? Um dos primeiros aviões fabricados em São José dos Campos, o Xavante, nada mais era do que uma versão tropical do MB-326, monomotor a jato de dupla função militar da italiana Aermacchi. Produzido sob licença no Brasil de 1972 a 1981, o modelo foi uma das alavancas que permitiram a decolagem do negócio da Embraer em seus primeiros anos de vida, junto com o Bandeirante.
Na década de 1980, uma nova cooperação com a Aermacchi resultou na fabricação do AMX (Aeritalia Macchi Experimental), jato especializado em ataque ao solo. O avião propiciou à fabricante brasileira acesso à tecnologia de fly-by-wire. Também houve cooperação com a americana Piper Aircraft, em meados dos anos 1970, para a construção dos modelos Seneca, Corisco, Carioca, Minuano, Sertanejo e Navajo; além de uma joint-venture recente com a chinesa AVIC II, para viabilizar a família ERJ – incluindo os jatos executivos Legacy.
Analistas acreditam que será preciso mirar esses exemplos exitosos para que a Embraer continue firme nas posições já alcançadas. “Sozinha, a tendência é de que perca terreno. Uma parceria ajudaria a se fortalecer e explorar novos mercados”, avalia Balistiero, que já trabalhou na Varig e na IATA. Foi o que fez a Bombardier quando teve o programa de jatos C-Series adquirido pela Airbus.
Rebatizado de A220, a aeronave colocou a gigante europeia em disputa direta no mercado de aeronaves regionais. Recentemente, a Embraer perdeu uma concorrência da low cost americana Jet Blue, que vai substituir sua frota de E190 de primeira geração por 60 jatos A220.
A questão, para a Embraer, é saber escolher a parceira ideal, especialmente em um momento de crise. Companhias americanas como Lockheed Martin e General Dynamics Corporation estão ligadas a conglomerados mais robustos, por isso a Embraer correria o risco de ser “engolida”. Além disso, é difícil imaginar que a Lockheed Martin, por exemplo, esteja disposta a expor um de seus principais produtos, o C-130 Super Hercules, a uma disputa direta com o Embraer C-390 Millennium, avião militar que atua no mesmo segmento, o que conduziria à divisão de ganhos entre os eventuais parceiros.
Em relação à Dassault, da França, o maior entrave seria a política industrial do governo francês – arredio ao compartilhamento de tecnologias. A japonesa Mitsubishi Aircraft, por sua vez, pouco teria a oferecer, já que detém um grau de conhecimento técnico inferior ao da brasileira. Para Balistiero, do IMT, a melhor opção seria a Comac, da China, que facilitaria o acesso ao mercado asiático.
Como fator negativo, a parceria não estaria livre de barreiras impostas pela política externa dos EUA, que conta com aliados inclusive em solo brasileiro. “Algumas alas governamentais no Brasil têm restrições de cunho ideológico em relação à China, o que é um equívoco”, diz ele.
Em outubro, a planta da Embraer em Gavião Peixoto, interior paulista, recebeu o primeiro caça militar F-39 Gripen. Desenvolvido pela Saab, da Suécia, e envolvendo um amplo acordo de transferência tecnológica, o avião é parte de uma frota de 36 unidades que, nos próximos anos, colocarão a Força Aérea Brasileira em um patamar hegemônico na América Latina.
A Embraer é peça fundamental no processo, pois coordena o trabalho geral de produção no Brasil. Além disso, responde pelos testes dos sistemas de controle de voo, de climatização em condições tropicais, de integração de armamentos e ensaios em geral.
De um modo ou de outro, a menina dos olhos da alta tecnologia do Brasil está em busca de uma rota viável para o seu voo de cruzeiro. No primeiro semestre de 2020, a empresa registrou prejuízo de R$ 2,95 bilhões – volume três vezes maior do que o prejuízo de R$ 862,7 milhões contabilizado ao longo de 2019.
Na tentativa de contornar os efeitos da turbulência provocada pela Covid-19 e do distrato com a Boeing, 2,5 mil funcionários foram demitidos em setembro – 900 cortes diretos e 1,6 mil via programa de demissão voluntária.
Antes da pandemia, a empresa somava 20 mil empregados. A Embraer também promete seguir firme com os investimentos no Brasil e no exterior, com foco nos setores aeronáutico e de defesa. A inovação, tão vital para o negócio no passado, seguirá indispensável.
Diário de bordo
As principais áreas de atuação da Embraer:
• Aviação Comercial: 3ª maior fabricante mundial e líder em jatos de até 130 assentos. Produtos – Famílias de aeronaves ERJ e E-Jets.
• Defesa & Segurança: Líder na América Latina. Principais produtos – A-29 Super Tucano e KC-Millennium.
• Aviação Executiva: Principais produtos – Praetor 500 e Praetor 600.
• Aviação Agrícola: Principal produto – Ipanema – fabricado sem interrupções há quase 50 anos.
NA ASA DA INOVAÇÃO
Não surpreende que a Embraer seja a maior exportadora de bens de valor agregado do Brasil.
Quase metade de seus ganhos decorre de inovações e melhorias adotadas nos últimos cinco anos. Além de possuir centros de pesquisa e desenvolvimento em São José dos Campos (SP), Belo Horizonte (MG) e Florianópolis (SC), a empresa mantém contato permanente com 27 universidades e institutos de pesquisa no Brasil e outros 15 do exterior. Para completar, trabalha com aproximadamente 50 startups.
Por meio de subsidiárias, a Embraer atua em áreas que vão além da aviação comercial, executiva ou agrícola, nas quais ganhou maior projeção. A empresa está envolvida, por exemplo, em projetos de mobilidade urbana, como pequenas aeronaves com capacidade de decolar e pousar em linha vertical (VTOL, em inglês), em parceria com a Uber. Projeta também aviões não tripulados, junto com a startup americana Elroy Air, para o mercado de cargas.
Outra parceria é com a WEG, uma das principais fabricantes de equipamentos elétricos do mundo, com quem desenvolve estudos para fabricar aviões 100% movidos por baterias elétricas. E ainda realiza testes de taxiamento sem interferência humana, em conjunto com as áreas de robótica e inteligência artificial da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
As ações de inovação abarcam ainda a produção de nanossatélites, junto com a Telebras, para atuação na agricultura e na proteção do meio ambiente. No campo militar, participa do programa Classe Tamandaré, que promove a renovação da esquadra da Marinha. Junto com a alemã Thyssenkrupp, a Embraer é responsável pela integração de sensores e armamentos dos novos navios. Fora isso, é protagonista de projetos governamentais de controle de fronteiras (SIVAM/SIPAM) e referência mundial em sistemas de gerenciamento do espaço aéreo.