Texto: Maria Clara Rossini | Ilustração: Tayrine Cruz | Design: Natalia Sayuri Lara | Edição: Bruno Vaiano
pré-história do Brasil começa há 15 mil anos, durante a última era glacial. Foi quando um grupo de humanos cruzou uma ponte de terra que permitia a travessia das águas do estreito de Bering – interligando o extremo leste do continente asiático ao Alasca. Esses pioneiros deram origem a quase todos os povos nativos das Américas. Algumas populações se estabeleceram nos atuais EUA, México ou América Central; outras foram descendo no mapa até alcançar o território brasileiro há 12 mil anos.
Os primeiros americanos preservaram muito do DNA de seus parentes que ficaram do outro lado da ponte. Mas eles também permaneceram aqui tempo o suficiente para passar por seleção natural e gerar descendentes com novas características, ideais para a sobrevivência nas condições locais.
Um exemplo é uma mutação no gene ABCA1 entre povos que adotaram a agricultura de milho (a versão domesticada do teosinto, um vegetal nativo da América) a partir de 8,7 mil anos atrás, nos arredores do México. Ela leva a um acúmulo 30% maior de colesterol nas células – uma reserva energética que foi vantajosa diante da baixa oferta de calorias após o início da agricultura.
Sim, baixa: no Neolítico, os grupos de humanos caçadores-coletores tinham acesso a uma maior oferta e diversidade de alimento do que povos que optaram por plantar. Enquanto os primeiros comiam frutas, carnes e vegetais – mesmo que alguns dias acabassem de barriga vazia –, os segundos se limitavam a uma única fonte de alimento, o milho.
Essa mutação no gene ABCA1 continua sendo frequente em mexicanos, mas não aparece muito por aqui. Os indígenas brasileiros eram caçadores-coletores e não sofreram essa pressão seletiva. Hoje, nós saímos na vantagem: com o aumento da oferta de comida no século 20, o gene se tornou responsável por altos índices de obesidade e diabetes na população do México, enquanto os descendentes de nativos do Brasil não sofrem do mesmo mal.
A seleção natural reservou outras adaptações para os primeiros brasileiros: “Não é fácil sobreviver na Amazônia se você não for indígena. Esses grupos estão há 10 mil anos convivendo com parasitas que causam várias doenças. É provável que haja algum sinal de adaptação”, diz Tabita Hünemeier, geneticista da USP. Após ela e seus colegas montarem o quebra-cabeça do gene ABCA1, o próximo passo é buscar indícios de adaptação a doenças tropicais.
Não é necessário recorrer a resquícios arqueológicos para nada disso. As descobertas explicadas acima são conclusões de um estudo de 2012 que analisou parte do DNA de integrantes de 126 grupos nativos americanos. As mutações no gene ABCA1 e sua possível relação com a domesticação do milho foram publicadas após a análise genética de mais de 5 mil indivíduos.
Apenas duas décadas atrás, os geneticistas não fariam a menor ideia de como obter ou interpretar essas informações. O DNA de um único indivíduo foi sequenciado integralmente pela primeira vez em 2003, graças ao Projeto Genoma Humano. A façanha foi fruto de 13 anos de pesquisa e US$ 3 bilhões de investimento – na ponta do lápis, essa brincadeira saiu um dólar por cada letra do código genético de um único indivíduo. Em reais, no câmbio da época, isso dá pouco mais que a verba da USP inteira em um ano.
Mas o jogo virou rápido: hoje, apenas duas décadas depois, já é possível decifrar todo o genoma de qualquer mortal em 24 horas por menos de US$ 500. Essa pechincha é resultado de um avanço estratosférico: um novo estojo de técnicas conhecidas pela sigla NGS (em português, “sequenciamento de nova geração”). Graças ao NGS, o Reino Unido já sequenciou 100 mil genomas, e mira em 500 mil até 2024. A Islândia afirma já ter em mãos o DNA exato de todos os 364 mil habitantes da ilha. China e EUA também estão investindo pesado no sequenciamento.
É promissor, mas o problema é que 80% dos genomas estudados até hoje são de indivíduos europeus ou de ascendência europeia. Essa falta de variedade, você descobrirá ao longo do texto, é um empecilho para a ciência e a saúde. Mas o panorama deve mudar a partir da década de 2020, em parte graças a esforços vindos daqui: o genoma dos brasileiros, um dos mais diversos do mundo, está prestes a entrar em campo com o projeto DNA do Brasil. Vamos conhecê-lo nas próximas páginas – começando pela parte do DNA.