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A história do Brasil contada pelos genes

80% dos genomas sequenciados até hoje no mundo são europeus. Mas um projeto chamado DNA do Brasil quer mudar esse placar. A importância disso não é só recontar nossa história. É também tornar a medicina do futuro mais igualitária.

Texto: Maria Clara Rossini | Ilustração: Tayrine Cruz | Design: Natalia Sayuri Lara | Edição: Bruno Vaiano


A

pré-história do Brasil começa há 15 mil anos, durante a última era glacial. Foi quando um grupo de humanos cruzou uma ponte de terra que permitia a travessia das águas do estreito de Bering – interligando o extremo leste do continente asiático ao Alasca. Esses pioneiros deram origem a quase todos os povos nativos das Américas. Algumas populações se estabeleceram nos atuais EUA, México ou América Central; outras foram descendo no mapa até alcançar o território brasileiro há 12 mil anos.

Os primeiros americanos preservaram muito do DNA de seus parentes que ficaram do outro lado da ponte. Mas eles também permaneceram aqui tempo o suficiente para passar por seleção natural e gerar descendentes com novas características, ideais para a sobrevivência nas condições locais.

Um exemplo é uma mutação no gene ABCA1 entre povos que adotaram a agricultura de milho (a versão domesticada do teosinto, um vegetal nativo da América) a partir de 8,7 mil anos atrás, nos arredores do México. Ela leva a um acúmulo 30% maior de colesterol nas células – uma reserva energética que foi vantajosa diante da baixa oferta de calorias após o início da agricultura.

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Sim, baixa: no Neolítico, os grupos de humanos caçadores-coletores tinham acesso a uma maior oferta e diversidade de alimento do que povos que optaram por plantar. Enquanto os primeiros comiam frutas, carnes e vegetais – mesmo que alguns dias acabassem de barriga vazia –, os segundos se limitavam a uma única fonte de alimento, o milho.

Essa mutação no gene ABCA1 continua sendo frequente em mexicanos, mas não aparece muito por aqui. Os indígenas brasileiros eram caçadores-coletores e não sofreram essa pressão seletiva. Hoje, nós saímos na vantagem: com o aumento da oferta de comida no século 20, o gene se tornou responsável por altos índices de obesidade e diabetes na população do México, enquanto os descendentes de nativos do Brasil não sofrem do mesmo mal.

A seleção natural reservou outras adaptações para os primeiros brasileiros: “Não é fácil sobreviver na Amazônia se você não for indígena. Esses grupos estão há 10 mil anos convivendo com parasitas que causam várias doenças. É provável que haja algum sinal de adaptação”, diz Tabita Hünemeier, geneticista da USP. Após ela e seus colegas montarem o quebra-cabeça do gene ABCA1, o próximo passo é buscar indícios de adaptação a doenças tropicais.

Não é necessário recorrer a resquícios arqueológicos para nada disso. As descobertas explicadas acima são conclusões de um estudo de 2012 que analisou parte do DNA de integrantes de 126 grupos nativos americanos. As mutações no gene ABCA1 e sua possível relação com a domesticação do milho foram publicadas após a análise genética de mais de 5 mil indivíduos.

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Apenas duas décadas atrás, os geneticistas não fariam a menor ideia de como obter ou interpretar essas informações. O DNA de um único indivíduo foi sequenciado integralmente pela primeira vez em 2003, graças ao Projeto Genoma Humano. A façanha foi fruto de 13 anos de pesquisa e US$ 3 bilhões de investimento – na ponta do lápis, essa brincadeira saiu um dólar por cada letra do código genético de um único indivíduo. Em reais, no câmbio da época, isso dá pouco mais que a verba da USP inteira em um ano.

Mas o jogo virou rápido: hoje, apenas duas décadas depois, já é possível decifrar todo o genoma de qualquer mortal em 24 horas por menos de US$ 500. Essa pechincha é resultado de um avanço estratosférico: um novo estojo de técnicas conhecidas pela sigla NGS (em português, “sequenciamento de nova geração”). Graças ao NGS, o Reino Unido já sequenciou 100 mil genomas, e mira em 500 mil até 2024. A Islândia afirma já ter em mãos o DNA exato de todos os 364 mil habitantes da ilha. China e EUA também estão investindo pesado no sequenciamento.

É promissor, mas o problema é que 80% dos genomas estudados até hoje são de indivíduos europeus ou de ascendência europeia. Essa falta de variedade, você descobrirá ao longo do texto, é um empecilho para a ciência e a saúde. Mas o panorama deve mudar a partir da década de 2020, em parte graças a esforços vindos daqui: o genoma dos brasileiros, um dos mais diversos do mundo, está prestes a entrar em campo com o projeto DNA do Brasil. Vamos conhecê-lo nas próximas páginas – começando pela parte do DNA.

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Desbravando o DNA

Você pode pensar no código genético de cada indivíduo como o manual de instruções para construir e operar o organismo. Ele é feito de um “alfabeto” com apenas quatro letras: A, T, G e C. Cada uma delas representa uma moleculinha diferente: as bases nitrogenadas adenina, timina, guanina e citosina. Bilhões delas, misturadas, enfileiram-se como miçangas de um longo colar – o moleculão de DNA. A ordem em que as letras aparecem é o código genético.“Sequenciamento”  significa decifrá-lo letra por letra. E não é fácil: esticada, cada cópia do nosso DNA mede 1,8 metro. 

Impressas, todas as letras do seu genoma preencheriam 1.250 livros do tamanho de Game of Thrones. Só com letrinhas: GATTACATC… Ah: quase todos os meus livros são cópias dos seus, já que 99,9% do genoma é idêntico em todos os humanos.

Esse 0,1% que sobra é considerável. Apesar de ser pouco perto dos 1.250 volumes, ele ainda equivale a mais de um livro inteiro com letras que variam de pessoa para pessoa. Você pode ter um A na segunda letra da terceira linha da página 123, enquanto seu amigo pode ter um G no mesmo local. Esses pontos do DNA onde há variação de letras são chamados de SNPs, abreviação em inglês para polimorfismo de nucleotídeo único. Eles são a principal forma de variação genética entre indivíduos.

Na nossa metáfora, não dá para olhar um único livro e ignorar os outros 1.249. Essas letrinhas-chave surgem por mutações aleatórias que não fazem questão de se concentrar em apenas um volume: estão salpicadas aleatoriamente por todos eles. Já é possível prever onde esses SNPs aparecem mais e olhar diretamente aqueles pontos para estudar as doenças e a história de alguma população.

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É o que fazem as empresas que oferecem testes de ancestralidade. Esses não possuem finalidade acadêmica, mas conseguem estimar a origem dos seus antepassados sem precisar olhar o genoma completo. Eles analisam 700 mil pontos do DNA do indivíduo e os comparam com bancos de dados de outros países. Se você tiver SNPs típicos de populações do sul da França, por exemplo, é provável que pelo menos um dos seus tataravós tenha vindo de lá (para ter uma ideia de como funciona, aqui você encontra os resultados desta repórter). Algumas das empresas que oferecem esses serviços no Brasil são a Genera e meuDNA.

Os pesquisadores já têm uma boa ideia do que vão encontrar no DNA de alemães ou ingleses, seja olhando para o genoma inteiro ou apenas parte dele. O Brasil, porém, é um caso à parte – com a miscigenação maciça de povos e a baixa compreensão do genoma de populações indígenas e africanas, SNPs inéditos podem brotar em qualquer canto. 

E brotam: um projeto de sequenciamento genômico de 1,7 mil brasileiros, concluído em 2020, revelou 2 milhões de variantes genéticas nunca vistas, que não estavam registradas em nenhum banco de dados internacional. Algumas dessas variantes estão em trechos do DNA que não têm função conhecida. Outras, em partes plenamente operacionais: os genes. Eles têm muita história para contar, pois mutações neles podem ter impacto prático na nossa sobrevivência. 

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Em suma: o Brasil precisava de um grande projeto, que desse conta de abraçar particularidades como essa. O projeto DNA do Brasil foi lançado no final de 2019 mirando em 15 mil genomas; hoje a meta passou para 100 mil. O sequenciamento em si é feito pela Dasa (controladora do do Delboni e de outros laboratórios nacionais). Os dados são armazenados e processados pela Google Cloud, e a análise fica a cargo dos cientistas de universidades de todo o País. Os doadores dos genomas vão de ribeirinhos amazônicos a moradores das capitais, passando por tribos indígenas isoladas e comunidades quilombolas.

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(Tayrine Cruz/Superinteressante)

O objetivo não é só recontar nossa história evolutiva, mas também melhorar a medicina do presente: terapias e medicamentos vão se tornar muito mais precisos quando forem modelados de acordo com o DNA de cada um de nós. Problemas de saúde raros geralmente são identificáveis pela mudança de uma única letra no genoma, enquanto as mais comuns – como diabetes e hipertensão – aparecem associadas a centenas ou milhares de SNPs, que mudam conforme o grupo étnico. Ou seja: quanto mais comum a doença, maior precisa ser a base de dados para identificá-la e combatê-la. Os bancos de genomas europeus são homogêneos demais para dar conta da miscigenação brasileira. 

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O desafio fica especialmente cabeludo quando nos damos conta de que o continente africano, que contribuiu com parcela razoável do nosso DNA, é esmagadoramente mais diverso que a Europa do ponto de vista genético. O sapiens surgiu na África há 300 mil anos, e o resto da Terra foi ocupado por um grupo que saiu de lá há 70 mil anos. Todos os humanos não africanos descendem dessa onda migratória. Logo, têm uma variedade genética muito inferior à dos africanos. Um estudo publicado em 2020 com o genoma de 426 africanos de diferentes países lista 3 milhões de variantes genéticas inéditas.

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Relógio genético

Apesar de existirem documentos que evidenciam a miscigenação no Brasil desde a chegada de Cabral, foi só a partir de 1750 que ela se tornou frequente a ponto de deixar uma marca indelével no genoma brasileiro. O meio do século 18 foi marcado pelo auge do ciclo de extração de ouro em Minas Gerais, pelo desembarque de um enorme número de imigrantes europeus, pela escravização em massa de indígenas e pelo pico de chegada forçada de africanos ao Brasil.

O genoma é um calendário preciso, capaz de mostrar a história de um povo com grau matemático de exatidão. Isso é possível porque os geneticistas são capazes de contar quantas gerações atrás um determinado trechinho de DNA característico de uma linhagem foi encaixado em outra linhagem por um cruzamento. 

Funciona assim: recebemos metade do material genético da mãe, e metade do pai. Eles, por sua vez, receberam suas metades de nossos avós. Que receberam suas metades dos bisavós. Isso significa que você tem um quarto do DNA de cada avô, um oitavo do DNA de cada bisavô… A contribuição de cada geração se dilui pela metade conforme avançamos rumo ao passado. 

Se você, por exemplo, é de uma linhagem majoritariamente europeia e apenas um dos seus bisavós foi indígena, um oitavo do seu genoma será indígena. Quanto menores são os trechos de DNA de uma etnia no genoma de alguém, mais antigo foi o cruzamento que inseriu esse DNA na linhagem. 

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Esse método permitiu verificar, por exemplo, que a miscigenação no Nordeste é mais antiga – algo esperado, dado que os colonizadores atracaram originalmente no litoral baiano e que a chegada de escravizados começou pelo atual território de Pernambuco. A população desses Estados e seus vizinhos possui a maior quantidade de marcadores genéticos africanos, diluídos mesmo em pessoas com fenótipo branco.

Além da miscigenação principal entre portugueses, indígenas e africanos, é possível aferir a chegada de outros imigrantes europeus entre os séculos 19 e 20. A população menos misturada é a de origem oriental, por ser a mais recente: o último grande fluxo migratório foi o de japoneses, cujo marco inicial é a chegada do navio Kasato Maru, em Santos, no ano de 1908.

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Tal mãe, tal filha

Um modo de verificar a origem geográfica da linhagem materna de alguém sem precisar olhar o genoma inteiro é analisar o DNA mitocondrial (mtDNA). Essa é uma porçãozinha do DNA que não fica no núcleo da célula, mas em uma estrutura externa ao núcleo chamada mitocôndria. No momento da concepção do bebê, é o óvulo que fornece a mitocôndria – sem participação do espermatozoide. Suas mitocôndrias vieram da sua mãe, que vieram da mãe da sua mãe, que vieram da mãe da mãe…

O mtDNA também sofre mutações ao longo dos milênios. Cada linhagem tem um mtDNA diferente, e diferenças maiores significam que duas populações se separaram há mais tempo e acumularam diferenças. Com amostras de 1.200 brasileiros, a equipe do projeto DNA do Brasil revelou que, em média, 36% do nosso DNA mitocondrial vem de mulheres africanas, e outros 34% de nativas americanas. Os 30% restantes abarcam a Europa e um pouco da Ásia. Entenda, no mapa abaixo, a origem de alguns mtDNAs e sua chegada ao Brasil.

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(Tayrine Cruz/Superinteressante)

Do lado dos homens – que pode ser rastreado pelo cromossomo Y de maneira análoga ao que acontece com a mitocôndria, já que apenas homens o possuem –, esse equilíbrio não se mantém: 75% das linhagens paternas brasileiras são europeias, 14,5% africanas e 0,5% indígenas. 

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Os resultados refletem a miscigenação assimétrica e o passado violento do Brasil. Ficam evidentes três coisas: o massacre dos homens indígenas, o fato de que homens africanos tinham poucas oportunidades de gerar filhos, e os muitos estupros das mulheres negras e nativas pelos colonizadores.

Esse padrão não é exclusivo do Brasil. O DNA mitocondrial indígena e o cromossomo Y europeu são maioria em toda a América Latina, com pequenas flutuações. Embora essa conclusão apareça em estudos da área há duas décadas, sua divulgação pela grande mídia nunca havia gerado tanta repercussão como neste ano, em que a notícia foi amplamente compartilhada nas redes sociais: “Em 2000, os dados eram os mesmos, mas a sociedade era outra […] Não dá para dissociar a história da biologia”, diz Tábita Hünemeier. 

Historiadores sempre analisam documentos cientes de que a história é escrita pelos vencedores. Os genes talvez sejam as únicas testemunhas neutras do passado. Mas os geneticistas não são. 

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Análises de DNA podem preencher lacunas do passado que a documentação, sozinha, não consegue. Mas, para isso, precisamos garantir que pessoas de todas as etnias e faixas de renda tenham acesso ao sequenciamento. Esse também é o único meio de garantir que todos tenham acesso a futuros medicamentos, talhados sob medida para o genoma de cada paciente. 

Com o sequenciamento cada vez mais acessível, a comunidade científica internacional se defronta nas próximas décadas com uma escolha: gerar uma forma inédita de desigualdade na área da saúde ou impedir que ela surja. Para os pesquisadores brasileiros, não há opção senão combatê-la desde já. Afinal, mesmo o mais branco entre nós provavelmente tem ancestrais negros e indígenas. Os genes não toleram racismo: se um brasileiro ficar para trás, todos ficam.

Fontes: Lygia da Veiga Pereira, geneticista e coordenadora do projeto DNA do Brasil; Iuri Ventura, biólogo e coordenador de conteúdo do meuDNA; Ricardo di Lazzaro Filho, médico e fundador da Genera; Michele Migliavacca, geneticista da GeneOne; Guilherme Yamamoto, geneticista e bioinformata da GeneOne.

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