Mas esse rigor não é de agora. As mudanças de Francisco são pequenos ajustes em regras que atravessam os séculos. Ainda hoje valem as exigências estabelecidas em 1734 pelo então cardeal Prospero Lambertini – que anos depois se tornaria o papa Bento 14.
A Igreja adota sete critérios para o reconhecimento de uma cura extraordinária (veja quadro abaixo). Ela exige, por exemplo, que a doença seja gravíssima. Em um dos casos analisados, uma mulher curada de um câncer de mama agressivo não teve seu “milagre” aprovado porque, antes de recorrer ao santo de sua devoção, ela tinha 10% de chances de se curar. A exigência para “cura milagrosa” é um prognóstico com 0% de esperança. E as outras demandas são igualmente radicais. “Talvez o maior obstáculo seja a exigência de que não pode haver nenhum tratamento relacionado com a cura”, diz o escritor americano Michael O’Neill, especialista na pesquisa de milagres. Isso acaba descartando grande parte dos casos. Outra exigência da Igreja é que a enfermidade não pode voltar – o que às vezes torna o processo de investigação bastante longo (o que levou a análise da cura de Danila Castelli, hoje uma saudável septuagenária, a demorar tanto tempo).
Apesar de as entidades de Lourdes e do Vaticano terem seus próprios times, não é preciso fazer parte desses clubes para participar. Médicos locais, que tenham tratado do paciente, e especialistas de renome também costumam fazer parte dos processos. E não precisam ser católicos. Médicos ateus são bem-vindos, para confirmar a lisura das avaliações.
Esse é o caso da hematologista canadense Jacalyn Duffin, que também é historiadora da medicina da Queen’s University, de Ontário. Em 1987, ela foi procurada por um colega para analisar amostras de medula óssea de uma mulher com leucemia mieloide aguda, um tipo superagressivo de câncer. Duffin não foi informada do porquê do trabalho. Achou que o sigilo tivesse a ver com algum processo jurídico, e por isso foi especialmente criteriosa em suas análises – afinal, talvez tivesse de explicar as conclusões num tribunal. Mas seu trabalho não foi encaminhado para a polícia ou advogados, e sim para o Vaticano. A análise fazia parte do processo de canonização de Marie Marguerite d’Youville, fundadora da Ordem das Irmãs da Caridade de Montreal. “Quando vi o estado da medula óssea e o diagnóstico, imaginei que a paciente já estivesse morta”, diz Duffin. Mas não. Na época, a mulher já estava com a medula perfeita – e permanece viva até hoje, mais de 30 anos depois.
Por mais que estudasse o caso, Jacalyn não encontrou explicação plausível. Com base no testemunho dela, a Igreja oficializou o segundo milagre realizado por intercessão de Marie Marguerite d’Youville. Canonizada pelo papa João Paulo 2º, em 1990, ela se tornou a primeira santa nascida no Canadá – padroeira das viúvas e dos casamentos complicados (seu marido era um alcoólatra abusivo). “Não acredito em Deus, mas meu testemunho foi aceito. O Vaticano está interessado no nosso conhecimento científico, não em nossas credenciais religiosas”, diz Jacalyn.
Ainda que o papel desses doutores nos processos religiosos se restrinja ao campo da medicina, é difícil fugir à impressão de que há uma contradição em sua atividade. Afinal, são homens de ciência trabalhando em prol de dogmas religiosos – mesmo que indiretamente. Mas o professor Niels Christian Hvidt discorda. “Eu não vejo um paradoxo. De uma perspectiva religiosa, se Deus abrange o Universo, a ciência também pode olhar para questões de fé.” A médica Duffin tem uma resposta mais secularizada a essa questão: “Nós não somos questionados, em nenhum momento, sobre a ocorrência de um milagre. Eu fui chamada para confirmar, com meu conhecimento científico, a alegação de uma paciente. Isso é papel de um médico. Por que eu diria não?”.
Continua após a publicidade
Como a esmagadora maioria das “curas milagrosas” é rejeitada pelos médicos, a hipótese de doutores convertidos para a causa da santidade parece não se sustentar. Na verdade, acontece o oposto. Cada vez mais, o catolicismo recorre a especialistas ateus e à tecnologia, para reduzir sua própria dependência do sobrenatural. Vaticanistas já apontam, inclusive, uma tendência: no futuro, ao decidir quem vai ser canonizado, a Igreja deverá preferir o critério de uma vida plena de virtudes (e não os supostos milagres daquela pessoa).
Lázaro, o ressuscitado por Jesus, poderia sofrer de narcolepsia ou catalepsia – quadros que o conhecimento de 2 mil anos atrás não teria como dissociar da morte. Os médicos dos grandes centros religiosos trabalham justamente para que recuperações de saúde “impossíveis” sejam invulneráveis ao escrutínio dos céticos no futuro – graças à excelência de uma investigação científica. Ainda que curas sem explicação, em tempos de medicina ultrassofisticada, já pareçam tão improváveis quanto alguém transformar água em vinho.
***
As regras da cura milagrosa
Continua após a publicidade
Na obra De servorum beatificatione et beatorum canonizatione (“A beatificação dos servos de Deus e a canonização dos beatos”), do século 18, o italiano Prospero Lambertini, futuro papa Bento 14, estabeleceu sete critérios.
1 A doença tem de ser muito grave.
2 O diagnóstico deve ser certo e preciso.
3 A doença deve ser “física” (distúrbios mentais não entram).
Continua após a publicidade
4 Um eventual tratamento não pode ter ajudado na cura.
5 A cura deve ser repentina, inesperada e instantânea.
6 O paciente deve retomar a vida normal, e sem convalescência.
7 A cura deve ser duradoura, sem recaídas.
–