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A nova era nuclear

Os russos criaram um míssil manobrável e um torpedo capaz de provocar tsunâmis. Os EUA reativaram seu maior bunker em 2020 – e estão desenvolvendo a primeira ogiva nuclear desde os anos 1980. E a China pretende triplicar seu arsenal.

Texto: Bruno Garattoni e Tiago Cordeiro |  Ilustração: Felipe Del Rio | Design: Carlos Eduardo Hara

Texto originalmente publicado pela Super em setembro de 2020

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e você entrar na floresta de Bardufoss, na Noruega, encontrará algo bem estranho: uma rede de 960 canos finos e rentes ao chão, que correm por entre as árvores numa área de 1,5 km2 e parecem grandes teias de aranha. Eles formam uma rede de medição infrassônica, que detecta sons de frequência inferior a 20 hertz – inaudíveis ao ouvido humano. No dia 8 de agosto de 2019, às 9h da manhã no horário local, o sistema registrou uma onda de choque atípica. Exatamente ao mesmo tempo, a estação meteorológica de Severodinsk, na Rússia, detectou níveis de radioatividade 16 vezes acima do normal.

Os dois eventos, como viria a ser revelado depois, tinham a mesma causa: a explosão de um míssil 9M730 Burevestnik, que os russos estavam testando numa base militar em Nyonoska, no noroeste do país. Cinco pessoas morreram, três ficaram feridas e a população da cidade correu para comprar iodo (que, tomado de forma preventiva, evita o envenenamento radioativo da tireoide). É que o Burevestnik não era um míssil qualquer. Além de carregar ogivas nucleares, ele possui o próprio reator nuclear, que gera energia para mantê-lo no ar.

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Os níveis de radiação voltaram ao normal em algumas horas (o reator do míssil é pequeno, com muito menos combustível nuclear do que uma usina), mas o cenário geopolítico não. O mundo constatou que os russos estavam testando um novo tipo de arma: capaz de ficar no ar por anos, driblar todos os sistemas antimísseis – e atacar de surpresa qualquer ponto do planeta.

No dia 25 de março deste ano de 2020, os militares americanos fizeram uma manobra profunda. Literalmente: anunciaram que os oficiais da Norad e da Northcom, as divisões que controlam seu arsenal nuclear, iriam se mudar para o Cheyenne Mountain Complex: o maior bunker militar do mundo, escavado sob 610 metros de rocha dentro da montanha Cheyenne, no Colorado.

Ele foi construído nos anos 1960, é formado por 15 prédios subterrâneos de três andares, com capacidade para abrigar 2 mil pessoas por até dois anos, e foi projetado para suportar uma explosão nuclear de até 30 megatons (2 mil vezes a potência da bomba de Hiroshima). Foi sendo desocupado após o fim da Guerra Fria e estava praticamente abandonado, com 70% de capacidade ociosa.

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Não mais. Os americanos também anunciaram que, pela primeira vez desde os anos 1980, vão desenvolver uma nova ogiva: a W93. Praticamente todos os detalhes a respeito são confidenciais – exceto que ela fará parte de um programa de US$ 1 trilhão para renovar o arsenal nuclear dos EUA.

Em maio, um grupo de cem países assinou uma resolução, na OMS, propondo “uma avaliação imparcial, independente e completa” da resposta inicial à Covid-19. A China entendeu isso como um ataque – e, logo em seguida, sofreu outro. A Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança militar capitaneada pelos EUA, que reúne a maioria dos países europeus) acusou a China de praticar “bullying e coerção” contra outros países, e afirmou que seus membros deveriam adotar “uma abordagem global mais ampla”.

Duas ameaças meio veladas – às quais os chineses responderam de forma direta e brutal. Seu presidente, Xi Jinping, afirmou que o país iria aumentar sua prontidão militar. E um editorial do Global Times, o jornal do Partido Comunista Chinês, detalhou a principal medida: triplicar o arsenal nuclear do país, alcançando mil ogivas, “num prazo relativamente curto”.

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A tensão entre as superpotências é a maior em décadas. Mas como chegamos a esse ponto? E o que vai acontecer daqui para a frente? Para entender, é preciso voltar a uma época em que a pandemia era só coisa de ficção científica: o dia 1o de março de 2018.

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(Felipe Del Rio/Superinteressante)
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Licença para atacar

“Agora a Rússia é um país líder”, disse Vladimir Putin em seu discurso anual à nação, naquela tarde. Como só faltavam duas semanas para as eleições presidenciais do país, a afirmação poderia ser interpretada como retórica política banal.

Mas era bem mais do que isso: um aviso para os países ocidentais. “Eles precisam entender a nova realidade, e entender que (…) não é um blefe”, completou Putin, para então anunciar seu trunfo: um conjunto de novas armas nucleares hiperavançadas. “Para recolocar a Rússia no patamar de grande potência, Putin precisava investir militarmente. É nas armas que o país se posiciona como um concorrente de alto nível para os EUA”, diz o cientista político Gunther Rudzit, professor de relações internacionais da ESPM. Além do Burevestnik, os russos anunciaram duas armas inéditas.

O Avangard, primeiro míssil hipersônico do mundo, que é capaz de alcançar 27 vezes a velocidade do som e fazer manobras para driblar qualquer tentativa de interceptação [veja infográfico abaixo]. Ele carrega uma ogiva convencional ou nuclear de até 2 megatons, e já está sendo usado pelas Forças Armadas russas, o que coloca o país à frente na nova corrida armamentista (os EUA ainda estão começando a testar seus mísseis hipersônicos, que devem levar dois a três anos para entrar em operação).

A terceira arma anunciada pelos russos é o torpedo nuclear Poseidon, que seria capaz de se aproximar da costa de um país inimigo e então detonar uma ogiva de 100 megatons – o suficiente para produzir um tsunâmi avassalador, com ondas de 90 metros de altura (mais que o dobro do tsunâmi que devastou o Japão em 2011).

O Poseidon ainda está em desenvolvimento. Das superarmas russas apresentadas por Vladimir Putin, ele é o que está menos adiantado – inclusive porque não se sabe se o país de fato possui uma ogiva de 100 megatons (a maior bomba já produzida na história, a russa RDS-220, tinha a metade disso).

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Mas aquilo foi o suficiente para que os Estados Unidos decidissem rasgar um dos documentos mais importantes das últimas décadas: o Tratado de Desarmamento Nuclear sobre Mísseis de Alcance Intermediário (INF, em inglês). Esse acordo, que foi assinado em 1987 pelo presidente americano Ronald Reagan e pelo líder soviético Mikhail Gorbachev, proibia os dois países de desenvolver, instalar ou usar mísseis terrestres (lançados do solo), nucleares ou não, com alcance entre 500 e 5.500 km.

Com o tratado, os americanos foram obrigados a remover seus mísseis nucleares das bases da Otan – e os soviéticos, por sua vez, tiveram que desmontar as baterias de mísseis que ficavam apontadas para a Europa.

Mas, em agosto de 2019, os americanos se retiraram do INF, alegando que os russos haviam desobedecido os termos do acordo ao desenvolver o míssil Burevestnik. Moscou reagiu dizendo que os EUA estavam distorcendo os fatos (já que o míssil pode voar mais que 5.500 km, e portanto não é coberto pelo tratado). Os dois têm sua razão, mas a verdadeira explicação pode estar num terceiro elemento. “A China não está no INF, e por isso não fazia sentido manter o acordo”, diz Rudzit. “Washington queria um acordo global, não bilateral. Como não deu certo, desistiu do tratado.”

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A China entrou na corrida nuclear com muito atraso. Só detonou a sua primeira bomba atômica em 1964, duas décadas após Hiroshima e Nagasaki. Mas compensou isso, e atualmente possui 320 ogivas nucleares, segundo estimativa do Stockholm International Peace Research Institute. É o maior arsenal do mundo depois da Rússia e dos Estados Unidos, à frente da Inglaterra e da França (e mais do que o dobro das 150 ogivas da Índia).

Em 2019, a China foi o país que mais construiu ogivas nucleares: foram 30, segundo o instituto. Os chineses possuem mísseis capazes de alcançar os EUA, já têm seu modelo hipersônico – o DF-ZF, que alcança dez vezes a velocidade do som e está operacional desde outubro – e estão desenvolvendo o Xian H-20, um bombardeiro supersônico stealth (invisível ao radar), que poderá carregar armas nucleares e vai operar na Ásia – inclusive sobre as bases americanas instaladas no Pacífico.

Assim, os chineses alcançarão o mesmo feito de americanos e russos: a chamada tríade nuclear, ou seja, a capacidade de atacar com mísseis lançados do mar, da terra e do ar.

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Com ou sem as novas armas russas, o fato é que o avanço da China tornou o acordo INF obsoleto. E os americanos são os maiores beneficiados pelo fim dele. Isso porque, agora,  poderão encher as bases da Otan com mísseis de médio alcance apontados para a Rússia. Essas armas seriam capazes de alcançar Moscou em menos de 5 minutos, tornando possível o chamado “ataque decapitador”, que destruiria a liderança política e militar russa antes que o país pudesse reagir.

Não há, até onde se sabe, nenhum plano concreto para fazer isso. Mas, formalmente, os EUA estão preparados. Em 2018, o país revisou a Nuclear Posture, um documento militar que estabelece as regras para uso de armas nucleares. A novidade é que, agora, os EUA admitem a possibilidade de utilizar seu arsenal nuclear para atacar primeiro (e não apenas, como antes, revidar uma agressão nuclear).

Em suma: os russos alcançaram a liderança tecnológica, mas os americanos fizeram uma jogada geopolítica genial – e a China pretende se equiparar a ambos nos próximos anos. Com direito, até, a algo que nem mesmo EUA ou Rússia possuem: um arquipélago militar artificial.

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(Felipe Del Rio/Superinteressante)
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Águas da discórdia

O mar do Sul da China, entre o Vietnã e as Filipinas, é uma rota comercial extremamente importante: 30% de todo o comércio marítimo do mundo (e 40% das exportações e importações chinesas) passa por ali. Seu ponto mais valioso é o Estreito de Malaca, uma faixa de 890 km que conecta os oceanos Pacífico e Índico. A China reivindica a posse dessa região. A partir de 2013, ela começou a construir o que ficou conhecido como “grande muralha de areia”: um conjunto de sete ilhas artificiais, que abrigam bases militares, na região.

As obras, que usaram centenas de dragas e barcaças para transportar a areia necessária, foram tensas desde o início, com vários episódios de estranhamento entre navios ocidentais e a Marinha chinesa. É assim até hoje. Entre abril e julho de 2020, os EUA e o Reino Unido enviaram navios militares para manobras na região – incluindo o HMS Queen Elizabeth, maior porta-aviões inglês.

A China respondeu, em agosto, estacionando um bombardeiro nuclear H-6J numa das sete ilhas. No dia 26, depois que um avião de espionagem americano U-2 sobrevoou a área, os chineses dispararam dois mísseis com capacidade nuclear: o DF-21 e o DF-26. Estavam desarmados, sem ogivas, e caíram num ponto desocupado do mar do Sul da China. Foi uma advertência.

Além dessas armas, que são lançadas de bases em terra – como as sete ilhas artificiais –, os chineses possuem submarinos do tipo SSBN (Submarine Ship Ballistic Nuclear), ou seja, de propulsão e armas nucleares. Mas a potência mais atuante debaixo d’água é a Rússia, que no fim de 2019 realizou um exercício militar simulando o revide a um ataque americano. Nessa ação, a primeira do tipo desde 1991, oito submarinos nucleares russos tentaram driblar o sistema de monitoramento do Atlântico Norte. O objetivo era ver o quão longe eles conseguiriam ir antes que fossem detectados – e se conseguiriam se posicionar para atacar a costa leste dos EUA. A ação foi descoberta, e revelada, pela Marinha norueguesa.

“A nova realidade é que os nossos navios e submarinos não podem mais operar na costa leste com total liberdade nem atravessar o Atlântico tranquilamente”, declarou o vice-almirante americano Andrew Lewis, durante um evento do Instituto Naval dos EUA. “Temos visto um número cada dia maior de submarinos russos circulando pelo Atlântico, e eles são mais capazes do que nunca. Permanecem ativos por períodos cada vez mais longos, operando sistemas mais letais.” Entre os submarinos russos detectados recentemente no Atlântico está o K-139 Belgorod, que é capaz de carregar o temido torpedo Poseidon.

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Essa proliferação de armas nucleares em mãos americanas, russas e chinesas não significa que os três países vão acabar entrando em guerra. Na verdade, é exatamente o contrário. “O principal objetivo de cada nação é impedir possíveis ameaças e invasões. E ter armas nucleares é o suficiente para dissuadir isso”, diz Juliano Cortinhas, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília.

Durante a Guerra Fria, EUA e Rússia se guiaram por um conceito conhecido como “destruição mútua assegurada” (MAD, na sigla em inglês). É o seguinte: uma potência nuclear não pode atacar a outra, pois o revide seria igualmente aniquilador – e a guerra terminaria sem vencedor, com ambos os lados arrasados. Um equilíbrio do terror; mas também da razão.

Nos últimos anos, o avanço tecnológico russo, os ganhos políticos americanos e o progresso econômico e militar chinês desfizeram temporariamente esse balanço – e é por isso que as três superpotências estão agindo, cada uma a seu modo, para se reposicionar. Mas esse não é o único motivo da nova corrida armamentista. A equivalência nuclear entre EUA, Rússia e China, que garante que nenhum dos três vá atacar o outro, é fundamental para que eles possam se enfrentar em outro campo: a disputa por recursos naturais e influência geopolítica sobre as demais nações.

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(Felipe Del Rio/Superinteressante)
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A política atômica

Na primeira metade do século 19, com a instituição da Doutrina Monroe (criada por James Monroe, presidente dos EUA entre 1817 e 1825), os americanos assumiram uma postura clara com relação à América do Sul: não admitiriam que as potências europeias voltassem a colonizar os países da região. Isso ampliou drasticamente a influência americana no continente. Foi naquela época, aliás, que surgiu uma expressão ouvida até hoje: de que a América do Sul seria o “quintal dos EUA”.

Mas, de uns anos para cá, esse quintal também passou a ser alvo da Rússia. Em fevereiro deste ano, a Marinha brasileira detectou a presença do navio russo Yantar a apenas 80 km da costa do Rio de Janeiro. O Yantar, que oficialmente é uma embarcação de pesquisa científica, circulou durante uma semana no espaço marítimo brasileiro, incluindo um período em que desligou o transmissor que permite sua identificação. O navio foi detectado perto do Uruguai, sumiu e foi reencontrado em local suspeito: perto dos cabos submarinos de internet que ligam o Brasil a outros países (segundo os EUA e a Inglaterra, o Yantar é um navio espião).

Mas o principal interesse russo no continente é a Venezuela, dona da maior reserva de petróleo do mundo (e a oitava maior de gás natural). Antes de o país mergulhar no caos econômico e social, o governo de Vladimir Putin e o grupo de Hugo Chávez e Nicolás Maduro estabeleceram uma forte aliança política, militar e comercial. “Os russos vendem armas e mantêm empresas atuando na exploração de petróleo. Não querem permitir que o governo local migre para a zona de influência americana”, diz o cientista político Marcelo Suano, professor do Ibmec.

No auge da tensão entre EUA e Venezuela, em 2019, a Rússia chegou a enviar um avião com 200 oficiais militares para Caracas, como advertência aos americanos (que cogitavam uma invasão do país). Os EUA querem derrubar Maduro porque, se conseguirem substituí-lo por um governo simpático a seus interesses, terão acesso ao gás natural venezuelano. “A Rússia ganharia um concorrente capaz de fornecer esse produto para a Europa”, afirma Suano. Atualmente, os russos provêm 39% de todo o gás consumido no Velho Continente.

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O gás natural também está na raiz de outro conflito envolvendo EUA e Rússia: a Guerra Civil Síria, que começou em 2011. Nela, forças rebeldes apoiadas pelos americanos tentam derrubar o presidente Bashar al-Assad, que comanda o país desde 2000 (ele foi eleito após a morte do pai, Hafez al-Assad, que estava no poder desde 1971). Bashar quase caiu, mas foi salvo pela intervenção russa, que nos últimos anos realizou uma série de ataques aéreos contra as forças rebeldes. Em troca dessa proteção, Al-Assad fez um favorzão a Moscou: impediu a construção do gasoduto Irã-Iraque-Síria, que iria levar gás natural do Catar para a Europa (e fazer concorrência ao gás russo).

A venda de petróleo e gás natural é extremamente importante para os russos: 50% de todo o orçamento do governo vem daí. E isso inclui os gastos militares. Se os negócios petrolíferos da Rússia se tornarem menos lucrativos, o país terá menos dinheiro para investir em seu arsenal nuclear, e poderá ser ultrapassado pelos EUA e pela China.

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(Felipe Del Rio/Superinteressante)
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Em 2014, a Rússia invadiu e anexou a península da Crimeia, até então um território autônomo ligado à Ucrânia. Adivinhe só o motivo: ela dá acesso ao Mar Negro, onde há grandes reservas de petróleo. A ação aconteceu meses depois que o presidente ucraniano Viktor Yanukovych, alinhado a Moscou, foi destituído. Desde então, a Rússia vem desafiando repetidamente a Otan, que pede o fim das operações militares na região.

A Ucrânia vive sob ameaça constante de ser novamente controlada pelos russos, como já aconteceu durante a Guerra Fria. Mas os EUA também estão nesse jogo. “De certa forma, foi o Ocidente que iniciou o conflito, ao alimentar o surgimento de grupos contrários ao governo local”, afirma o cientista político Kai Michael Kenkel, professor de relações internacionais da PUC-RJ.

De fato: em 2014, os senadores americanos John McCain e Chris Murphy foram até a Ucrânia, onde fizeram discursos inflamando a multidão a derrubar o regime. E, duas semanas antes da queda de Yanukovych, um grampo telefônico revelou que o Departamento de Estado americano já discutia a escolha do sucessor. Hoje a Ucrânia é alinhada aos EUA, o que os russos abominam. “A Síria e a Ucrânia, para a Rússia, representam uma oportunidade de mostrar para os EUA qual é o limite, onde o Ocidente não deve interferir”, diz Kenkel.

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Os russos também têm saído em defesa do Irã – que, segundo os americanos, estaria tentando desenvolver a própria bomba atômica. Em janeiro, um drone dos EUA matou o general iraniano Qassem Soleimani, o segundo homem mais poderoso do regime, numa tentativa de desarticular o programa nuclear do Irã. Mas nenhum país ilustra tão bem a complexidade da nova corrida nuclear quanto a Turquia.

O país não possui as próprias bombas atômicas. Só que é membro da Otan, e por isso abriga uma base militar americana: fica perto da cidade de Adana, no sul do país, e guarda 60 a 70 mísseis nucleares. Em 2016, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, escapou de um golpe de estado – graças, em parte, ao apoio militar que recebeu da Rússia. Em 2017, Erdogan virou a casaca de novo e invadiu o norte da Síria, o que desagradou o governo Putin – e, de lá para cá, voltou a comprar equipamento militar dos EUA.

É como se a Turquia fosse uma miniatura do planeta Terra, em que as superpotências lutam indiretamente entre si, manipulando nações e exércitos mais fracos, sem nunca entrar em confronto direto: o que, dado o arsenal nuclear de cada uma, certamente devastaria o planeta.

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É uma clara repetição de algo que já aconteceu. Coreia, Vietnã, Cuba, Afeganistão, Líbano, Nicarágua, Camboja… praticamente todos os conflitos armados da segunda metade do século 20 envolveram, em algum grau, o enfrentamento indireto entre as duas superpotências nucleares. São as chamadas “guerras por procuração”, típicas de uma época em que o mundo estava rachado em dois.

Agora ele está rachado em três, mas a lógica é a mesma. Entramos em uma nova corrida armamentista, em que a possibilidade de uma guerra nuclear volta a rondar a imaginação, e os medos, da humanidade. Na prática, ela é algo extremamente improvável. Talvez até impossível. Mas, só por existir, a ideia já cumpre seu papel: influenciar os rumos da economia, da política – e das guerras – nas próximas décadas.

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(Felipe Del Rio/Superinteressante)

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Guerra nas estrelas

Como um projeto inviável da era Reagan iludiu os russos, atiçou a corrida armamentista – e ajudou a destruir a URSS.

Uma rede de satélites armados com canhões laser, que seriam capazes de interceptar qualquer míssil disparado contra os EUA: que passariam a ser imunes a ataques de outros países, tornando as armas nucleares “impotentes e obsoletas”. Foram essas as palavras do presidente americano Ronald Reagan ao anunciar, em 1983, o projeto Strategic Defense Initiative (SDI). O negócio era tão ambicioso que logo a imprensa o apelidou de “Star Wars”, em referência à série de filmes – uma forma irônica de dizer que aquilo estava mais no terreno da ficção científica do que na realidade.

De fato. Durante dez anos, várias equipes de cientistas tentaram de tudo para desenvolver as tecnologias necessárias. Não conseguiram – e, depois de consumir  o equivalente a US$ 50 bilhões em valores atuais, o SDI foi abandonado em 1993. Ele era inviável  na época, e ainda é hoje: o laser necessário consome muita energia, que os satélites não conseguem gerar. Mas acabou tendo êxito de outra forma.  Os EUA chegaram a fazer testes falsos e vazar informações mentirosas para espiões russos, com a intenção de assustar a URSS. Deu certo.

Os soviéticos se sentiram ameaçados e resolveram desenvolver seu próprio sistema de guerra espacial ao mesmo tempo em que aumentaram a produção de mísseis nucleares, para tentar vencer os lasers americanos pela quantidade. Essa combinação de coisas exigiu um esforço financeiro brutal, que abalou a economia soviética – e ajudou a precipitar o colapso da URSS em 1991.

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Quando o mundo quase acabou

A história de Stanislav Petrov, o homem que salvou o planeta do apocalipse.

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Imagem sem texto alternativo (Scott Peterson/Getty Images)

No dia 1o de setembro de 1983, a União Soviética derrubou um Boeing 747 da Korean Air Lines, que estava viajando de Nova York para Seul, na Coreia do Sul, com 269 civis a bordo (entre eles, 62 americanos). O avião entrou sem querer no espaço aéreo russo, e foi abatido. Isso acirrou as tensões com os EUA, que decidiram instalar mísseis nucleares na Alemanha Ocidental – de onde poderiam alcançar Moscou em menos de dez minutos. E aí, na noite de 26 de setembro,  aconteceu algo pior ainda. A rede de satélites Oko (“olho”, em russo) detectou que havia cinco mísseis nucleares voando na direção da URSS. Os soviéticos tinham pouquíssimos minutos para reagir.

Mas o tenente-coronel Stanislav Petrov, de 44 anos, resolveu desobedecer o protocolo. Ele estava de plantão monitorando o Oko, e deveria informar imediatamente os seus superiores: que poderiam ordenar um contra-ataque, começando uma guerra nuclear. “Quando eu vi a mensagem de alerta, levantei da cadeira. Meus subordinados ficaram confusos, então comecei a dar ordens para evitar que entrassem em pânico”, disse ele em entrevista à TV russa em 2010. Inicialmente, o Oko apontou o disparo de um míssil. E não parou aí.

“A sirene tocou uma segunda vez. Letras vermelhas apareceram na nossa tela principal, indicando que mais quatro mísseis haviam sido lançados.” Petrov foi tomado pelo nervosismo da situação: “Eu admito, fiquei com medo. Eu sabia o nível de responsabilidade nas minhas mãos”. Mas ele desconfiou do número de disparos: se os EUA fossem atacar de surpresa, não seria com apenas cinco mísseis.

Então achou que fosse um alarme falso, um bug no sistema. Estava certo: não havia míssil nenhum. Petrov salvou o mundo, mas não foi condecorado pela URSS. Acabou transferido para uma função menos importante, se aposentou do Exército, e acabou tendo um colapso nervoso. Morreu aos 77 anos, sozinho, em sua casa num subúrbio de Moscou.

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A máquina do Juízo Final

EUA e URSS desenvolveram sistemas de detonação automática de armas nucleares – que parecem coisa de filme.

Se uma das superpotências atacasse a outra de surpresa com armas nucleares, poderia arrasar a inimiga, que perderia a capacidade de revidar. Mas, mesmo assim, haveria troco: pois um sistema automático, controlado por computador, dispararia centenas de mísseis nucleares contra o outro país, garantindo que ele também fosse aniquilado. Isso parece coisa de filme, mas realmente existiu. Na União Soviética, o sistema se chamava Perimtr (“perímetro”), e ficava desligado – ele foi projetado para só ser ativado em situações de grande tensão geopolítica.

Quando estava ligado, um computador (que ficava num bunker em Moscou) monitorava sensores de temperatura, pressão e radiação. Se a máquina detectasse valores anormais, que poderiam indicar um ataque nuclear, entrava em estado de alerta e tentava se conectar ao Kremlin. Caso não conseguisse, deduziria que a URSS havia sido destruída, e reagiria disparando um ou mais mísseis sinalizadores 15B99. A função deles era sobrevoar o país emitindo um comando, via rádio, para centenas de silos de mísseis nucleares espalhados pelo país: que então se abririam e disparariam contra os EUA.

Os americanos desenvolveram um sistema similar, que se chamava Emergency Rocket Communications System (ERCS) e foi desativado em 1991 – o que também aconteceu com o Perimtr. Mas analistas militares acreditam que ambos os países ainda mantenham sistemas do tipo.   

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