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A partilha da África pelas potências europeias

Monarcas e investidores bancaram as viagens de geógrafos para o interior profundo da África no século 19. Mais do que conhecimento, buscavam calcular as riquezas do continente - para então dividi-lo entre as grandes potências da Europa.

Texto: Maurício Brum | Edição de Arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria

O

explorador inglês John Hanning Speke tinha 30 anos quando embarcou na grande aventura de sua vida: viajar aos confins da África para encontrar a nascente do Nilo. Havia séculos que os europeus escutavam e liam rumores sobre a existência de “grandes lagos” no interior do continente: africanos, obviamente, e árabes, que traficavam pessoas escravizadas da região, já haviam mencionado e mapeado grandes volumes de água. Mas nenhum europeu os havia visto.

Decidido a mudar isso, Speke fez as malas, juntou-se a outro explorador mais famoso, o geógrafo militar Richard Burton, e os dois iniciaram a jornada na metade de 1857, com uma comitiva de serviçais e guias experimentados na região. Por vezes a pé, em outras tantas em lombo de jumento ou remando em canoas, os britânicos partiram da região da atual Tanzânia, na costa leste, e seguiram sempre em frente, rumo ao centro da África. Eles se tornariam os primeiros europeus a alcançar o lago Tanganica, o mais extenso do mundo, mas a viagem foi tão cheia de imprevistos que os dois estavam doentes quando chegaram lá.

Burton, afetado por algo que eles desconheciam, passou dias parcialmente paralisado e precisava ser carregado em uma maca por seis escravos durante o trajeto – oito, nos trechos mais difíceis. Ele, pelo menos, podia enxergar onde haviam chegado. Speke não teve a mesma sorte.

Já andava meio surdo após tentar tirar um besouro de seu ouvido com um canivete, perfurando o tímpano no processo, e quando pisou às margens do Tanganica também não estava bem em outro de seus sentidos: a visão. Com os olhos inflamados, só pôde lamentar: “o lindo lago foi visto em toda a sua glória por todo mundo, menos eu”, registrou em seus diários.

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O Tanganica, descobririam mais tarde, não era a verdadeira nascente do Nilo – apesar de impressionante pela sua extensão e de ser próximo ao rio, ele não tem qualquer ligação com o curso mais longo da África. Esse ponto estava a Nordeste, a 450 quilômetros dali, onde Speke chegou em 30 de julho de 1858 – Burton, fraco demais, ficou acampado pelo caminho. Lá, encontrou o maior dos lagos africanos, ao qual decidiu dar o nome da então rainha de seu país: Vitória. O lago é formado por dois rios que são as verdadeiras origens do Nilo.

Speke não viveu para ter sua descoberta confirmada. Burton, que nada viu, discordou dos métodos do colega e, convertido em rival, argumentou que a expedição não era uma comprovação definitiva. Em 1864, com a Real Sociedade de Geografia da Grã-Bretanha estremecida pelas discussões entre os dois, Speke acabou dando um tiro em si mesmo durante uma viagem de caça para o interior da Inglaterra.

O episódio nebuloso foi considerado um acidente pelas autoridades, mas Burton passaria anos dizendo que seu oponente havia se suicidado por temer um debate público entre os dois que estava marcado para o dia seguinte.

No fim, Speke estava certo mesmo. Quem confirmou que o Lago Vitória era o local onde o Nilo se tornava um rio foi outro explorador britânico, o jornalista galês Henry Morton Stanley, uma década mais tarde. Stanley viria a se tornar um dos maiores nomes da era “romântica” das expedições ao coração da África.

Romântica, evidentemente, aos olhos dos europeus: sob o pretexto de acumular conhecimentos geográficos sobre áreas remotas e “selvagens”, o que os monarcas e investidores que mandavam homens destemidos aos confins africanos realmente queriam era ter uma noção das riquezas que os aguardavam por lá. As relações entre os dois continentes vinham de muito longe, e novos pontos do mapa passaram a entrar no imaginário europeu após as Grandes Navegações, que contornaram a África pela primeira vez e deram início a um tráfico transatlântico de negros.

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Mas esses velhos contatos eram, geralmente, litorâneos. Foi o século 19 que abriu caminho para o interior profundo: entre 1870 e o início do século seguinte, o controle direto da Europa passou de cerca de 10% do território africano para mais de 90% Poucos entenderam esse potencial tão bem quanto o rei Leopoldo 2º, da Bélgica, que cobriu Stanley de ouro para desbravar o continente.

Já famoso por suas viagens, o galês foi contratado pela Associação Internacional Africana (AIA), fundada por Leopoldo como uma organização humanitária dedicada à ciência e à filantropia no continente, dando um disfarce aceitável para as intenções menos nobres que guiavam seus trabalhos.

Na prática, a AIA funcionava como uma empresa privada que transformaria grande parte da África Central, ao redor da bacia do Rio Congo, em propriedade pessoal do rei. A conquista do Congo, uma área de difícil acesso, ainda hoje coberta por uma densa floresta tropical úmida, removeu o último grande mistério africano. E provocou uma corrida entre as potências europeias para aumentar suas zonas de influência no continente. Até mesmo o Império Alemão, um dos menos envolvidos na área, intensificou sua presença.

<strong>Inferno verde – A presença belga na África ficou marcada por doenças e atrocidades.</strong>
Inferno verde – A presença belga na África ficou marcada por doenças e atrocidades. (Universal History Archive/Getty Images)

Era uma versão colonialista de uma doutrina que já estava em prática na própria Europa: para evitar grandes guerras que arrasariam os seus países, era preciso garantir um equilíbrio de poderes. De acordo com esse pensamento geopolítico, nenhuma nação deveria controlar um território muito maior que nos demais ou possuir recursos superiores – um legado do trauma vivido pelo continente durante as conquistas de Napoleão, 70 anos antes.

Agora, para manter o delicado equilíbrio, a divisão da África deveria seguir os mesmos critérios, tentando balancear a ganância das várias partes envolvidas. O próprio Congo foi um dos centros da disputa: além da Bélgica, a região era desejada por Portugal, que alegava ter direito sobre o território por conta de velhos acordos firmados com a Espanha e a Igreja Católica, e pela França, que enviou seu próprio explorador, Pierre de Brazza – a capital da atual República do Congo, Brazzaville, deve seu nome a ele, que cravou a bandeira francesa na margem norte do rio e fundou a cidade em 1880.

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O rei Leopoldo 2º logo percebeu onde a coisa ia parar. Temendo que seus interesses econômicos fossem prejudicados, o monarca passou a agir nos bastidores para que os poderosos europeus chegassem a um acordo lucrativo para todos: partilhar o território e o comércio da África entre si. Finalmente, sob influência de Leopoldo e com apoio britânico e português, o chanceler alemão Otto von Bismarck convocou uma reunião em seu país para discutir os rumos do continente vizinho.

A chamada Conferência de Berlim iniciou seus trabalhos em 15 de novembro de 1884 e prosseguiu por mais de cem dias, até o final de fevereiro do ano seguinte. Ali, representantes de 13 nações europeias e dos Estados Unidos, que entraram como observadores, colocaram seus interesses sobre a mesa e propuseram diferentes formas de como redesenhar a África. As explorações realizadas ao longo de décadas ajudaram cada país a entender melhor o que podia conseguir nessa barganha por terras alheias.

Os próprios africanos, é claro, não foram convidados. Embora os contornos do domínio europeu tenham mudado ao longo dos anos – a presença alemã, por exemplo, foi varrida após a derrota desse país na 1ª Guerra –, a exploração seguiu firme até meados do século 20. O próprio Leopoldo 2º garantiu a posse das terras que tanto desejava, fundando o Estado Livre do Congo, um dos regimes mais brutais do período colonial. De fato, o rei tinha mais poder na África do que em seu próprio país.

Se na Bélgica ele já havia sido reduzido a uma figura decorativa em um regime parlamentarista, no Congo seu poder era irrestrito: a conferência garantiu aquelas terras como propriedade sua. Interessado na exportação do látex abundante na região, o rei controlava a população local por meio de tropas mercenárias que matavam e mutilavam quem se colocasse em seu caminho ou, simplesmente, não produzisse o suficiente – não pouparam nem as crianças.

Entre os horrores, o que se tornou mais infame foi o decepar de membros das vítimas: os asseclas do rei precisavam comprovar seus assassinatos levando de volta as mãos dos “mortos”, uma maneira de mostrar que não estavam gastando a munição para caçar. Estima-se que até 15 milhões de pessoas tenham morrido naquilo que ficou conhecido como “o estupro do Congo”.

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Muitos deles, no entanto, acabavam sobrevivendo aos ferimentos, aparecendo em fotografias que aterrorizaram a Europa e deixaram escancarada a violência da exploração colonial. A opressão foi desconcertante mesmo em um cenário em que todas as potências europeias cometiam brutalidades. Em 1908, a revolta da opinião pública convenceu o rei a vender o Congo para o governo da Bélgica por 215 milhões de francos, um valor equivalente a mais de US$ 2 bilhões atuais.

Nem sempre tão chocantes quanto o destino dos congoleses, as outras colônias africanas também sofreriam por décadas em mãos estrangeiras. As fronteiras desenhadas em Berlim colocaram dentro de territórios artificiais povos que nem sempre se entendiam, na cultura e na língua – acabando por moldar uma história de conflitos que, em alguns países, perduram ainda hoje.

Mas, em outros casos, a exploração também teria um reflexo de unidade, criando resistências em comum: para combater os invasores, pela primeira vez muitos africanos passariam a se enxergar como parte de um mesmo continente, com valores e objetivos semelhantes, e uma mesma luta a ser travada. A partir dos anos 1950, muitos movimentos pela independência dos países da África seriam construídos a partir dessa ideia, que começara a ganhar força cinco anos antes.

Como era

Mapa com os principais povos e reinos pouco antes da divisão feita pelos europeus na Conferência de Berlim entre 1884 e 1885. Algumas regiões do norte já eram colonizadas pelo Império Otomano, mas a maioria, autônoma.

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Domínios difíceis

As fronteiras artificiais não foram aceitas pacificamente. Indo para o embate, alguns povos mantiveram certa autonomia por mais tempo.

Bôeres
Descendentes de holandeses que colonizaram o sul africano, eles viviam no Estado Livre de Orange e no Transvaal, áreas que passaram ao controle formal britânico. Os bôeres, porém, resistiram em duas guerras. O que viria a ser a atual África do Sul só se organizou em 1910, obtendo sua independência em 1931.

Derviches
Liderados pelo líder religioso Mohammed Hassan, os muçulmanos da Somália fizeram longa resistência armada para combater os colonizadores britânicos e seus aliados etíopes. O Estado Derviche nunca foi reconhecido, mas manteve certa autonomia até 1920, quando Hassan morreu de malária logo após uma grande derrota, e as tropas se dispersaram.

Marrocos
Os alemães usaram o país como campo de testes para ver até onde ia sua influência na África. O Marrocos havia virado “francês”, mas, na prática, seguiu autônomo. No início do século 20, o kaiser Guilherme 2º deu discursos em prol da independência marroquina, gerando duas crises que só foram resolvidas em 1912. Acabou virando um protetorado franco-espanhol até a independência em 1956.

Como ficou

Mapa da África após a Primeira Guerra, com fronteiras definidas entre 1884 e 1885 na Conferência de Berlim. O domínio do território ficou principalmente nas mãos francesas e britânicas.

Quem se manteve independente

Apenas dois países tiveram sua soberania formalmente respeitada após a Conferência de Berlim.

Etiópia
Com uma história de autodeterminação que vinha de séculos, a Etiópia conseguiu manter essa condição após a partilha do continente. Em toda a sua longa trajetória, o Império Etíope só teve a independência afetada uma vez, durante a 2a Guerra – a Itália ocupou o país entre 1936 e 1941, mas acabou derrotada.

Libéria
Se os etíopes seguiram livres por sua antiguidade, os liberianos mantiveram a autonomia porque eram recentes. No início do século 19, norte-americanos ricos começaram a mandar negros libertos da escravidão de volta para o seu continente originário, na região da Costa da Pimenta, que logo adquiriu o nome Libéria. O país declarou sua independência em 1847, quase 40 anos de Berlim, e assim se manteve após a divisão da África.

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