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A psicologia dos reality shows

Veja o que acontece na mente dos participantes do Big Brother – e entenda por que o formato deu mais certo no Brasil do que fora.

Texto: Rafael Battaglia | Ilustração: Rafael Nobre | Design: Maria Pace | Edição: Alexandre Versignassi

Reportagem originalmente publicada pela Super em 2020

Em 1973, estreou An American Family. Em uma dúzia de episódios, uma equipe de filmagem acompanhava o dia a dia dos Loud, uma família de classe média da Califórnia. Passava na PBS, a emissora pública dos EUA.

Foi um sucesso. A série agradou os produtores (por ser um programa de baixo orçamento) e o público. As pessoas, além de se sentirem representadas na tela, impressionavam-se com os dilemas da família, como um pedido de divórcio e a homossexualidade do filho mais velho (lembre-se: estamos falando dos anos 1970).

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Na época, a antropóloga Margaret Mead escreveu que aquilo era “uma invenção tão significativa quanto a criação do drama ou do romance”. Ela estava certa, mas o experimento midiático da PBS estava à frente do seu tempo. 

Os reality shows só teriam outro grande expoente em 1992, quando a MTV criou o The Real World (Na Real, no Brasil), que acompanhava, por seis meses, a vida de um grupo de jovens morando juntos. Mas a consagração mesmo só veio no final dos anos 1990, quando dois programas europeus conquistaram o mundo: Survivor (Reino Unido), em que participantes são largados para se virar no meio do mato e, ao mesmo tempo, evitar ser eliminados da competição; e, claro, Big Brother, lançado em 1999 na Holanda.

O Big Brother foi criado pela Endemol, uma produtora de lá. John de Mol, um dos fundadores da empresa, se inspirou no livro 1984, do inglês George Orwell, para criar o programa. O romance mostra um futuro distópico, no qual a sociedade tem sua liberdade cerceada por um governo vigilante – quem supervisiona tudo, com câmeras instaladas dentro de cada casa, é o Grande Irmão (em inglês, “Big Brother”).

Na primeiríssima edição, nove pessoas foram confinadas em uma casa pequena, e o programa foi exibido por 106 dias. Foi um hit: 4 milhões de holandeses (quase um terço da população) assistiram à final.

Não demorou para que emissoras de fora se interessassem. Em 2000, a Endemol ofereceu o programa a Silvio Santos. O SBT teve acesso a todo o “manual” do formato: como a casa deveria ser construída, onde as câmeras deveriam ser posicionadas e que tipos de pessoas escolher. Na última hora, Silvio desistiu do projeto, alegando que seria caro demais.

Mas o Homem do Baú já tinha percebido que ali estava uma galinha dos ovos de ouro. Então correu e lançou, em 2001, seu Casa dos Artistas: uma cópia descarada, mas com subcelebridades. O sucesso foi imediato. E a Globo, que ainda tinha dúvidas se o formato holandês emplacaria por aqui, deixou de ter, e em 2002 lançou o Big Brother Brasil, pagando os devidos royalties à Endemol. Ótimo para o criador da coisa, diga-se. John de Mol, que também está por trás do The Voice, tem um patrimônio de US$ 1,7 bilhão.

Casas vigiadas: o Big Brother já passou em 54 países – a versão brasileira é a mais bem-sucedida.
Casas vigiadas: o Big Brother já passou em 54 países – a versão brasileira é a mais bem-sucedida. (Rafael Nobre/Superinteressante)
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Fugir ou lutar

Na vida normal, é fácil escapar de situações que gerem algum problema, e sempre há uma autoridade a quem invocar em caso de conflito: o síndico do prédio, o RH da empresa, a diretora da escola.

Num BBB, não. Você precisa resolver tudo na raça. E o ambiente estimula os conflitos, já que os participantes ficam em competição constante.

Quando o pessoal entra na casa, tudo é novidade, claro. É como o primeiro dia da escola ou um novo emprego: nossa atitude é analisar o ambiente. Depois, procuramos semelhanças entre as pessoas, e ficamos amigos de quem despertou nossa empatia. Normal.

Então começa a análise política. O jogo ali é equilibrar o desafio de eliminar participantes do jogo e evitar que você seja esse eliminado. Dessa forma, não há como fazer amizade com todo mundo e ficar por isso mesmo. Os participantes precisam detectar quem tende a colaborar com eles, e identificar possíveis traidores. E aí criam-se as panelas. “Todos nós buscamos, de alguma maneira, posicionamentos dentro da vida social”, diz Marcelo Santos, professor de psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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Dentro da casa, alguns participantes são submetidos a castigos, tipo o do “monstro”: a produção escolhe uma fantasia e, em alguns momentos aleatórios do dia, são obrigados a pagar um mico, como uma dancinha. Essa brincadeira, assim como as da vida real, é uma via de mão dupla: quem não liga para o vexame se diverte; mas pode e vai deixar vulnerável quem se sentir desconfortável.

Algumas dinâmicas dentro da casa são feitas para turbinar certos tipos de comportamento. As festas, regadas a álcool, servem para que as pessoas se exponham. Já as provas de liderança e outras atividades com prêmios funcionam como um lembrete de que aquilo é uma competição, e mantêm o nível de rivalidade, e de estresse, lá em cima.

“Em situações de estresse, o nosso organismo se prepara para dois modos: lutar ou fugir”, explica Cláudia Oshiro, professora de psicologia da USP. No Big Brother, não há como fugir – e tentar conviver num ambiente aversivo causa alterações de humor. Os participantes se tornam facilmente irritáveis. Então coisas banais, como uma cama desarrumada ou uma louça suja, se transformam em brigas homéricas – que são uma delícia de assistir.

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“Existe a crença de que, em uma situação de grande pressão, as ‘máscaras vão cair’, e o sujeito vai revelar quem realmente é”, diz Bruno Campanella, professor de comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), que, na década passada, estudou como fãs brasileiros consumiam esse tipo de entretenimento.

A chave é que nós, humanos, somos animais sociais. Sentimos prazer quando outro humano “revela sua personalidade” – já que isso nos dá ferramentas para conviver com esse outro humano. Não importa que o outro esteja atrás de uma tela de TV: temos o instinto de sentir prazer ao ver máscaras caindo.   

Outro ponto essencial num reality é o conceito de “aversão à perda”, identificado pelo psicólogo americano e Nobel de Economia Daniel Kahneman. Seus experimentos mostram que a dor por uma perda é maior que a alegria por uma vitória. Traduzindo isso em termos de BBB: a dor de ser indicado para o paredão é maior do que a alegria de sobreviver ao paredão. Os brothers, então, farão de tudo para não passar por tal constrangimento. Como somos animais sociais, isso significa que não mediremos esforços para tecer as melhores alianças – o que alimenta o estresse geral, e a atratividade do programa.

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Pau-de-arara

Os produtores também vão criando artifícios para tirar os participantes de qualquer zona de conforto: dividir a casa ao meio, como os grupos de famosos e anônimos da última edição, ou trazer participantes da Casa de Vidro – uma redoma dentro de um shopping no Rio que funciona como grupo de acesso: os mais votados entram na casa depois que o programa já começou. Mas o mais pesado deles, nesses quase 20 anos de BBB, foi o polêmico Quarto Branco.

O método de confinar pessoas em ambientes cheios de luz branca não é exatamente uma criação da indústria do entretenimento, mas da indústria da tortura. De fato: as Forças Armadas dos EUA, da Venezuela e do Irã usam o artifício em prisioneiros, para obter confissões.

A tortura branca coloca o confinado em uma privação sensorial extrema, e a iluminação constante desregula o ciclo circadiano – nosso “relógio biológico”.  Saber a diferença entre dia e noite (e, consequentemente, a hora de dormir) é fundamental para que o cérebro regule a produção de hormônios importantes para o funcionamento do corpo, como a melatonina. Sem ela, você não dorme. E sem dormir você caminha para o estresse absoluto. E daí para a insanidade.

Em resumo: o Quarto Branco é um pau-de-arara. No Big Brother Brasil, o artifício foi usado poucas vezes, e há a preocupação de não deixar ninguém sozinho lá dentro. Mas, mesmo com tudo isso acontecendo dentro da casa, os especialistas dizem que o maior perigo à saúde mental dos participantes está no pós-jogo.

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Sem a proteção do confinamento, os participantes precisam lidar com o que disseram. E é nesse ponto que a falta de privacidade mais pesa. Lá dentro, você pode até ir ali no cantinho e contar um segredo para alguém, algo que você jamais falaria em público. Mas depois do programa, será como se você tivesse dito aquilo no horário nobre da TV – o que, de fato, aconteceu.

O pré-jogo também tem suas complicações. Antes de entrar na casa, todos passam dez dias isolados, cada um em um quarto de hotel, sem nenhum tipo de comunicação (TV, internet, às vezes até as janelas são lacradas).

A produção aproveita esse tempo para conversar com cada um deles e revisar as regras do programa. Nessa etapa, os produtores reavaliam a personalidade de cada um, e podem, inclusive, descartar jogadores. Alguns também jogam a toalha, por não aguentarem o confinamento. Foi o que aconteceu em 2012 com Netinho, advogado mineiro que desistiu do BBB ainda na fase do hotel.

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O segredo do sucesso

Mas, afinal, o que explica o sucesso do Big Brother depois de tantas edições? “Existem três tipos de reality show: os de transformação, com a fórmula antes/depois, os de competição e os de confinamento”, diz Campanella. “E, de certa forma, o BBB consegue ser uma mistura de todos eles.”

Bruno também destaca outros fatores, como a edição do programa, que constrói uma narrativa com heróis e vilões, adicionando cargas emocionais, e a internet: quanto mais se pode comentar sobre um reality, maior é o sucesso dele – o papo de acompanhar o show com uma “segunda tela” não é de hoje. Ele precede a existência dos smartphones. “Doze anos atrás, os fóruns de internet juntavam mil pessoas cada um na hora das entradas ao vivo do BBB”, relembra. Numa época em que não havia smartphone, é um número significativo.

A edição de 2020 trouxe, ainda, metade do elenco composto por artistas e influenciadores, e seus milhões de seguidores ajudaram a colocar o BBB nos holofotes como há muito não se via: foi a edição mais assistida dos últimos dez anos.

“Existem três tipos de reality show: de transformação, de competição e de confinamento. O Big Brother é uma mistura de todos eles”

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Show do Milhão: o merchandising está na essência do BBB. E foi fundamental para o programa sobreviver no Brasil quando a audiência estava em baixa.
Show do Milhão: o merchandising está na essência do BBB. E foi fundamental para o programa sobreviver no Brasil quando a audiência estava em baixa. (Rafael Nobre/Superinteressante)

Mas só isso não é o suficiente para explicar por que o BBB segue vivo, e crescendo. A verdade é que, em outros lugares, o programa nunca teve uma relevância equivalente à da edição brasileira: dos 54 países que já tiveram sua versão, 36 pararam de exibi-la. A última final nos EUA, em 2019, teve 4 milhões de espectadores – séries como The Good Doctor, por exemplo, chegam facilmente aos 10 milhões por lá. Aqui, a audiência da final foi de 11 milhões de pessoas só nas regiões metropolitanas de São Paulo e do Rio (as medições do Ibope são locais, só computam os maiores mercados, mas já dão uma boa ideia). Foi a maior audiência de uma final, 18 anos após a estreia.

No Brasil, houve um grande diferencial. Só aqui a principal emissora do País investiu pesado no programa, exibindo-o em seu horário nobre. Foi um prato cheio para a Globo. O BBB é  um programa barato. Não há a necessidade de altas remunerações aos participantes – a Globo paga um salário mínimo a eles, por seis meses. R$ 1,5 milhão, o valor do prêmio para o vencedor, era até outro dia o salário mensal do Galvão Bueno (baixou para R$ 500 mil em 2018).

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Além de gastar relativamente pouco na produção, a Globo também fez com que o programa rendesse muito – coisa que não aconteceu da mesma forma lá fora. A emissora soube usar o alcance que seu departamento de publicidade construiu ao longo de quase meio século de hegemonia no mercado para tirar leite de pedra com o BBB. Carros, produtos de beleza, empresas de varejo…Todo mundo anuncia ali. “O merchandising está na essência do programa, e ele é muito mais aceito lá do que numa novela”, pontua Campanella.

É por isso que, mesmo nas épocas de audiências magras, o programa continua rendendo. Da edição de 2019, a menos assistida da história, até 2020, as seis cotas de patrocínio colocadas à venda pela Globo aumentaram 13% – de R$ 37,3 milhões para R$ 42,6 milhões.

Gostando ou não do BBB, é preciso admitir: ele vai seguir no ar por um bom tempo. “Muita gente questiona sua qualidade, mas, ao mesmo tempo, ele continua como um dos assuntos mais comentados do País, inclusive durante a pandemia”, diz Campanella. Pois é. Também vale lembrar que, obviamente, ninguém lá dentro pegou o vírus enquanto esteve na casa. Ou seja: além de funcionar como experimento social, neste ano o programa serviu como prova empírica de que, sim, isolamento funciona.

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