Texto: Maria Clara Rossini | Foto: Studio Oz | Direção de fotografia: Juliana Krauss | Edição: Ana Carolina Leonardi
tirar queijo no coleguinha talvez não seja uma das formas mais frequentes de bullying na escola. Mais raro ainda é que a fatia láctea leve o garoto à morte – mas foi justamente o que aconteceu em 2017, com Karanbir Cheema, um garoto de 13 anos que estudava em Londres. Dez dias depois do pedaço de queijo tocar sua pele, ele faleceu.
Karanbir tinha alergia severa à proteína do leite. A escola sabia, e seus colegas de classe também tinham sido informados – mas explicação nenhuma foi capaz de ilustrar que algo tão banal como o queijo podia ser fatal para alguém. Eles não faziam ideia do quão grave uma reação alérgica pode ser.
As alergias, afinal, fazem parte da vida – tanto que dificilmente paramos para pensar em como elas funcionam. Mas a verdade é que o organismo de uma pessoa alérgica interpreta o mundo de uma maneira diferente.
Começa quando o corpo identifica algo inofensivo – uma fatia de queijo, por exemplo – como uma ameaça grave à saúde. O sistema imunológico entra em um ciclo de autossabotagem, que começa na identificação errônea da ameaça, mas não para por aí. Depois de classificar a substância como inimiga mortal, o corpo se prepara para o combate.
Nas alergias mais leves, e também mais conhecidas, ele reage produzindo anticorpos e substâncias chamadas inflamatórias, como a histamina. Esse grupinho forma os “primeiros socorros” do organismo.
A inflamação é importante para a defesa do corpo: dilata os vasos sanguíneos e facilita a chegada dos glóbulos brancos à área de risco. Por outro lado, a mesma histamina é justamente a responsável pelos incômodos sintomas das reações alérgicas: coceira, vermelhidão, inchaço, irritação das vias aéreas – até por isso os remédios contra alergia têm o nome de anti-histamínicos.
O sistema imunológico também decide a intensidade da reação. O corpo pode enviar uma viatura tradicional de anticorpos ou, então, chamar inúmeros batalhões de choque para combater a ameaça inexistente. Em grande parte, é isso que fará a diferença entre uma reação alérgica que produz um nariz entupido ou colapso total do organismo.
Quem é responsável pela confusão? Bem, a maior parte das alergias acontecem graças a um anticorpo em particular: a imunoglobulina E, mais conhecida como IgE. Ela não tem a função direta de eliminar ameaças – como fazem os glóbulos brancos, por exemplo. Funciona mais como um marcador: quando a IgE gruda numa substância estranha, começa a atrair os “soldados” do sistema imunológico, e o inimigo não tem como fugir. Dessa maneira, é a IgE que coordena o ataque – as células de combate vão para onde ele mandar.
Conforme o corpo se desenvolve, ele vai tomando contato com um número cada vez maior de substâncias externas. Quando chega algum intruso, o sistema imunológico age na base da tentativa e erro: vai lançando vários tipos de moléculas contra o invasor, e boa parte delas pode não surtir efeito algum. Mas alguma sempre vai funcionar. E é essa que ficará gravada, numa espécie de biblioteca do sistema imunológico.
Essa biblioteca trabalha, basicamente, com proteínas. São elas que servem de “RG” de uma substância ou micro-organismo. A proteína característica da membrana de uma bactéria, por exemplo, é o gatilho necessário para que o corpo perceba qual é o agressor que vem aí e como combatê-lo. Só que o organismo de um alérgico pode classificar proteínas banais, típicas do leite ou do ovo, por exemplo, como inimigos mortais. E aí a coisa complica.
Quando uma proteína entra em contato com o corpo pela primeira vez e é interpretada como perigosa, as células fazem um telefone sem fio, transmitindo a informação umas para as outras até chegar aos secretores de anticorpos. A partir daí, a alergia está formada. Toda vez que a substância alergênica voltar a entrar em contato com o corpo, não será necessário repetir esse processo de identificação. E reação de defesa acontece quase de imediato. Mas, afinal de contas, por que o corpo confunde ameaças reais com substâncias inofensivas?