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César Lattes: a vida e a obra do físico brasileiro indicado ao Nobel

Ele descobriu a partícula que “dá liga” aos átomos e carregou a ciência brasileira nas costas. Mas gostava mesmo era do seu cachorro, o Gaúcho. Conheça o herói nacional que não cai no vestibular.

Texto: Gabriela Bailas, do canal Física e Afins | Edição: Bruno Vaiano | Design: Juliana Krauss | Ilustrações: Gustavo Magalhães

Quando um cientista brasileiro está atrás de uma vaga ou de financiamento, não adianta montar um CV no Word. Ele precisa de um currículo Lattes. Nesse formulário online, criado em 1999, você insere tudo: mestrado, doutorado, seus artigos científicos, quem você orientou na pós, se fala biscoito ou bolacha. Para um acadêmico, um Lattes extenso é um perfil ouro no LinkedIn.

Só existiu uma pessoa no Brasil que poderia esbanjar no Lattes sete indicações ao prêmio Nobel de Física: o próprio Lattes. Estamos falando de César Lattes, o físico homenageado pelo nome do currículo. Ele morreu em 2005, sem montar seu Lattes. Sem Nobel. E sem se importar com nenhuma das duas coisas.

Sua vida foi bem maior que uma medalha sueca e uma base de dados acadêmica. O grande feito de Lattes foi descobrir a partícula que mantém o núcleo atômico coeso, mas ele também foi conhecido por suas particularidades: dava aula com seu cachorro, escolheu a carreira pensando nas férias e chegou à velhice crente de que havia recebido uma carta psicografada de Santos Dumont.

Cesare Mansueto Giulio Lattes nasceu em Curitiba em 11 de julho de 1924. Era playboy assumido; herdou ações e imóveis. Na adolescência, decidiu que daria aulas no ensino médio porque “professor tira três meses de folga por ano”, e escolheu fazer física porque “as outras disciplinas são pura decoreba”, conforme disse numa entrevista à Super em 1997.

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O pai, o imigrante italiano Giuseppe, era gerente do Banco Franco-Italiano, sediado na Rua 15 de Novembro – na época, um arremedo de Wall Street na capital paulista. Ele perguntou a um cliente, um cientista judeu ucraniano chamado Gleb Wataghin, o que ele podia fazer pelo menino.

Calhou que Wataghin havia acabado de fundar o curso de física da USP. Ele chegou em 1934 junto de uma leva de acadêmicos europeus para estabelecer a ciência de base no Brasil e criar cursos de graduação puros, como química, física e história natural (hoje, biologia).

Lattes se graduou na USP em 1943, com apenas 19 anos. Era o único formado em física naquele ano, e Wataghin fez dele professor-assistente. No porão da faculdade, com os colegas Ugo Camerini e Wataghinho (o filho do professor), Lattes construiu uma câmara de Wilson. Trata-se de uma caixinha transparente lacrada, tão saturada com vapor de água que surge uma pequena nuvem lá dentro. Se uma partícula energizada atravessa a nuvenzinha, ela deixa para trás um rastro de gotículas condensadas. O traçado do rastro identifica a partícula (algumas fazem zigue-zague, outras vão em linha reta etc.).

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Lattes mandou registros de suas trilhas de gotículas para o italiano Giuseppe Occhialini, que tinha sido seu professor na USP e agora estava em Bristol, na Inglaterra, também caçando partículas. Occhialini respondeu com imagens de rastros mais nítidos ainda, feitos não com nuvens, mas com placas fotográficas – que são as avós dos rolinhos de filme Kodak.

Essas placas eram peças de vidro revestidas com uma película de uma substância gelatinosa que contém brometo de prata. Grosso modo, quando o fotógrafo abria o obturador, as moléculas de brometo atingidas pela luz passavam por uma reação química que escurecia a superfície, e assim nascia o negativo. Os físicos experimentais logo descobriram que o brometo de prata não reagia só aos fótons, que são as partículas de luz, mas também a outras partículas, que deixavam rastros. Lattes babou, e Occhialini o convidou para ir a Bristol.

O brasileiro cruzou o Atlântico no porão do cargueiro Santo Rosário em 1946 – o primeiro a zarpar para a Inglaterra no pós-guerra. A cerveja acabou na primeira semana de viagem. Lattes receberia uma bolsa de £ 15 mensais, financiada pela empresa de cigarro Wills, para se unir a Occhialini em um grupo liderado por um certo Cecil Powell.

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A torre do cigarro

O laboratório de Powell ficava no quarto andar de um prédio construído por um filantropo da indústria do tabaco – e apelidado de “torre do cigarro”. Lá, o britânico usava um acelerador de partículas old school chamado gerador Cockcroft para colidir nacos de átomos e detectar os subprodutos da colisão usando as placas.

Antes de continuar, uma palavrinha sobre os nacos. Os átomos que formam você, este texto e tudo o mais têm duas partes. A primeira é uma nuvem de partículas insubstanciais com carga elétrica negativa, os elétrons. A segunda é o que fica no meio dessa nuvem: um núcleo compacto formado por partículas chamadas nêutrons, que têm carga neutra, e prótons, que têm carga positiva.

Se elétrons, prótons ou núcleos atômicos inteiros com muita energia colidem, eles se estilhaçam em uma chuva de partículas menores, que decaem em outras partículas. Esse borrifo subatômico, registrado por uma placa fotográfica, é uma ocasião fértil para descobrir partículas inéditas.

Powell originalmente fazia isso em laboratório, com um acelerador, mas colisões assim também rolam naturalmente no céu – quando as moléculas gasosas da nossa atmosfera levam uma pancada dos chamados raios cósmicos. Eles são núcleos atômicos ou prótons errantes de energia elevadíssima, que viajam pelo vácuo a uma velocidade próxima à da luz. Ou seja: há fenômenos cósmicos (como a morte de estrelas de alta massa) que aceleram partículas para nós. De brinde. E elas chegam à Terra milhares de vezes por segundo.

Foi por isso que, em 1946, Occhialini levou algumas placas para os Pirineus, onde passaria as férias esquiando. A ideia era deixá-las no topo do Pic-du-Midi, com 2.877 metros de altitude – um lugar privilegiado para registrar o chuveiro de partículas decorrente da chegada de um raio cósmico à nossa atmosfera. Algumas dessas placas tinham sido tratadas com borato de sódio (bórax), uma sugestão de Lattes para fixar melhor os rastros. Foi uma boa aposta: quando elas voltaram para a Inglaterra, havia uma surpresinha.

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Píon montanhês

Na física, os opostos se atraem – e os iguais se repelem. Positivo só anda com negativo, e corre de outros positivos. Como os prótons espremidos no núcleo de um átomo têm todos carga elétrica positiva, eles deveriam, em princípio, se repelir. E aí, bye-bye núcleo. Na prática, porém, sabemos que ele não se desintegra: se você e todas as coisas existem, é porque os núcleos estão muito bem, obrigado.

Isso só pode significar que existe uma força mantendo o núcleo unido – e que, naquelas distâncias minúsculas, essa força ganha o cabo de guerra contra o eletromagnetismo, que afasta os prótons.

Toda força tem algo chamado partícula mensageira. Para explicar esse conceito, vamos voltar um pouco no texto, quando dissemos que a luz é formada por partículas chamadas fótons. Pois é: os fótons são os mensageiros da força eletromagnética. Quando duas coisas de cargas opostas se atraem – ou de cargas iguais se repelem –, você pode imaginar que elas estão trocando fótons, e que esses fótons carregam o recado da atração ou da repulsão.

Entenda o Méson pi (π)

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1. Um núcleo de átomo é formado por nêutrons e prótons. Os prótons têm carga elétrica positiva (+), e por isso deveriam se repelir.

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2. A força eletromagnética que faz os prótons se repelirem atua por meio de uma partícula mensageira chamada fóton, que dá o recado para as cargas positivas se afastarem.

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3. O méson pi (ou píon) faz o contrário: é uma partícula que dá o recado para os prótons ficarem juntinhos. Ele é o mensageiro da chamada força nuclear.

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4. Alguns fenômenos cósmicos aceleram núcleos de átomo à velocidade da luz. São os raios cósmicos, que às vezes chegam à Terra e colidem com moléculas na nossa atmosfera.

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5. A colisão gera um chuveiro de partículas menores. Uma delas é o méson pi, que Lattes detectou usando placas fotográficas a 5.000 metros de altitude, nos Andes.

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Na década de 1930, o físico teórico japonês Hideki Yukawa considerou que essa força de atração que mantém o núcleo unido precisaria ter uma partícula mensageira também, e previu suas características. Era o méson pi (π), ou píon.

A ideia geral é a seguinte: no núcleo, os prótons ficam trocando fótons que dizem “sai pra lá”. Mas eles também trocam píons, que dizem o oposto: “vem cá”. E, nessa escala, os píons predominam. Era uma ótima ideia, e a única forma de comprová-la era encontrar um píon.

Quando as amostras com bórax voltaram dos Pirineus, Lattes e Occhialini encontraram rastros que correspondiam ao previsto por Yukawa para o píon. Todo o laboratório de Powell ficou ouriçado, mas apenas duas placas haviam registrado o dito-cujo – uma delas, parcialmente.

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Para obter registros melhores, Lattes foi mais alto: montou as placas por um mês em uma estação meteorológica no Monte Chacaltaya, a 5.000 metros de altitude, na Bolívia. Voltou em 1947 com 30 placas repletas de píons. Era a prova cabal.

Nos Andes, Lattes expôs placas fotográficas a 5 km de altitude para detectar o méson pi.
Nos Andes, Lattes expôs placas fotográficas a 5 km de altitude para detectar o méson pi. (Gustavo Magalhães/Superinteressante)

Em 1949, Yukawa recebeu o Nobel de Física pela sua previsão teórica, e em 1950 foi a vez de Cecil Powell pela descoberta experimental de seu laboratório. Lattes e Occhialini foram ignorados pelos suecos: na época, a praxe era conceder o prêmio apenas ao chefe do grupo de pesquisa. “Me tungaram duas vezes”, disse Lattes sobre o Nobel. A primeira foi essa. A segunda vem agora.

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California Dreamin’

Eugene Gardner era um veterano de pesquisas em energia nuclear. Teve até uma breve passagem pelo Projeto Manhattan – quando os EUA juntaram físicos talentosos numa base secreta em Los Alamos, no Novo México, para tirar a bomba atômica do papel antes de Hitler. Em 1948, Lattes encerrou sua temporada em Bristol e foi para a Universidade da Califórnia em Berkeley, nos EUA, trabalhar com Gardner em um acelerador de partículas que o New York Times descreveu como “o maior esmagador de átomos do mundo”.

Lattes com o acelerador em Berkeley.
Lattes com o acelerador em Berkeley. (Gustavo Magalhães/Superinteressante)

A engenhoca milionária estava em operação havia mais de um ano, mas os experimentos até então eram um mato sem cachorro. Em dez dias, Lattes, então com 23 anos, usou sua experiência prévia com as placas fotográficas para registrar píons. Foram os primeiros gerados em laboratório, sem o auxílio dos raios cósmicos.

O talento do rapaz latino-americano gerou um fuzuê. “Uma placa exposta por 30 segundos registrou cem vezes mais mésons pi do que nós obtivemos na Bolívia em 45 dias de exposição”, explicou Lattes na coletiva de imprensa. Ele apareceu na Life, no Times e foi capa da Science News. O Itamaraty mandou o vice-cônsul em Los Angeles entrevistar Lattes – era um diplomata mulherengo e poeta chamado Vinícius de Moraes, acompanhado pelo então correspondente da revista Cruzeiro nos EUA: Millôr Fernandes.

Vinícius de Moraes e Millôr Fernandes entrevistaram Lattes na Califórnia.
Vinícius de Moraes e Millôr Fernandes entrevistaram Lattes na Califórnia. (Gustavo Magalhães/Superinteressante)

A notícia saiu em março de 1948. Pouco depois, em 1951, Gardner morreria, aos 37 anos, vítima de efeitos colaterais da intoxicação por berílio – um elemento químico usado em suas pesquisas. A dupla era candidata forte ao Nobel. Mas Lattes, sozinho, não. E não existe Nobel póstumo.

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Conexão nipônica

Em 1949, Lattes escreveu em uma carta a seu colega José Leite Lopes: “Prefiro ajudar a construir a ciência no Brasil do que ganhar um Nobel”. Nessa época, além de fundar o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e o Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), Lattes chamou Yukawa para a colaboração Brasil-Japão de Raios Cósmicos (CBJ).

Com a parceria, Lattes convenceu um montão de cientistas japoneses a virem para o Brasil – e o choque cultural foi grande. Mitsuo Taketani chegou em 1958 da Universidade de Rikkyo para dirigir o Instituto de Física Teórica da Unesp, em São Paulo. Conseguiu multiplicar a verba do IFT por dez, mas não entendeu por que os brasileiros não estudavam muito em casa.

Bom seria se esse fosse o único problema do Brazilian way of life. Quando Lattes conseguiu levantar verba para construir um acelerador de partículas no CBPF, o tesoureiro torrou todo o dinheiro apostando em corrida de cavalos.

“Demorava para conseguir os compostos químicos necessários para revelação das fotos. No Japão, eles apareciam com um telefonema”, diz Akinori Ohsawa, 79, do Instituto de Pesquisa em Raios Cósmicos da Universidade de Tóquio. Akinori conheceu Lattes em 1968 durante seu doutorado, e deixou o Japão com sua família rumo ao Brasil.

Nessa época, Lattes foi menos herói e mais humano: tinha crises de depressão profundas, seguidas de surtos de produtividade, quando disparava telefonemas no meio da madrugada. Só pedia desculpas a uma pessoa, sua colega Neusa Amato, e seu grande amor era Gaúcho, um enorme cão perdigueiro que participava de aulas e bancas de doutorado.

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Lattes andava pela universidade com seu cão Gaúcho, que, diz a lenda, era o único que <em>realmente</em> entendia mecânica quântica.
Lattes andava pela universidade com seu cão Gaúcho, que, diz a lenda, era o único que realmente entendia mecânica quântica. (Gustavo Magalhães/Superinteressante)

Akinori conta que certa vez, ao final de um seminário, o mascote latiu enquanto os participantes aplaudiam: “Ele entende totalmente a mecânica quântica”. Depois, o Gaúcho caiu pela janela do carro numa curva – e estudou a mecânica clássica. “Agora ele aprendeu a força centrífuga.”

Após passar pela USP, Lattes terminou a carreira na Unicamp, no interior de SP. Era casado com a matemática pernambucana Martha Siqueira Neto, com quem passou 57 anos e teve quatro filhas.

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Ranzinza, cismou que Einstein era picareta e que o culpado pelo câncer era o filtro laranja na ponta do cigarro – que arrancava antes de fumar. No lobby de seu hotel favorito no bairro do Flamengo, onde era celebridade, não usava cinzeiro: deixava as cinzas se acumularem na barriga, e um rapaz passava com uma escovinha varrendo a pança de hora em hora.

No lobby de seu hotel favorito, Lattes fumava sem cinzeiro – um funcionário lhe varria a barriga.
No lobby de seu hotel favorito, Lattes fumava sem cinzeiro – um funcionário lhe varria a barriga. (Gustavo Magalhães/Superinteressante)

Uma vez playboy, sempre playboy. Era um rockstar cientista, na verdade; candidato ao Nobel sem nem ter doutorado. Mas não pensava grande coisa de si mesmo. Em 1997, admitiu à Super que seu negócio, mesmo, era o Gaúcho: “Fui arrastado pela história, e fiz o possível. Se eu tivesse que escolher, hoje seria veterinário”.

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Agradecemos Anna Endler, Akinori Ohsawa, Edison Shibuya, Yasumichi Aoki (que obteve o livro de Mitsuo Taketani), Hiroya Takagi (que o traduziu do japonês) e Cássio Leite Vieira, autor da biografia Lattes: nosso herói da era nuclear. Consultamos, entre outros, o acervo da antiga Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (FLC) da USP, a autobiografia de Cecil Powell e o livro César Lattes, a descoberta do méson π e outras histórias.

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