Os Bestiários, manuais de criaturas, pretendiam ser tão sérios quanto os guias de zoologia de hoje. Confira a versão da Super, que vai de lobisomens à Baba Yaga.
Texto: Fábio Marton | Edição de Arte: Verúcio Ferraz
Design: Andy Faria | Imagens: Índio San
a Idade Média, fênix, dragões e unicórnios eram retratados ao lado de seres mundanos, como girafas, crocodilos e hipopótamos. Os Bestiários, manuais de criaturas, que também podiam incluir plantas e pedras, pretendiam ser tão sérios quanto os guias de zoologia de hoje. O que é até compreensível: para quem só conhecia elefante por relatos de terras estrangeiras, ele não devia soar menos exótico que um grifo. Ninguém realmente acreditava que havia um dragão no pátio do castelo — os autores de bestiário jogavam as criaturas mais escabrosas para terras muito, muito distantes, como a Índia ou a Etiópia.
E mesmo sobre os seres bem conhecidos, como o pelicano, eram contadas histórias fabulosas — a ave cortaria a si própria para dar seu sangue aos filhotes, por isso era comparada ao próprio Cristo. As morsas, que existiam na Groenlândia, mas nunca haviam sido avistadas pela maioria dos europeus, eram desenhadas como elefantes, porque delas se extraía marfim.
O nosso bestiário tem uma licença poética, já que vampiros e lobisomens não são espécies separadas dos homens e, por essa razão, geralmente não entravam nos guias medievais. E, claro, demos uma melhoradinha no visual. Mas respeitando as fontes originais.
Lobisomem
Eles já foram do bem
No começo, os lobisomens não eram tão ruins. O wulver celta era um homem-lobo que não atacava a não ser que fosse incomodado — mas já havia nascido assim e não mudava de forma. No poema francês Bisclavret, do século 12, um cavaleiro se transforma em um lobisomem bonzinho e quase é morto, por engano, numa caçada. A suposta condição de lobisomem do príncipe de Kiev, Vseslav de Polotsk (1039-1101), era orgulhosamente comemorada por seus súditos.
Foi só a partir do século 15 que lobisomens se transformaram em assassinos em série. Na época, acreditava-se que os lobisomens adquiriam a condição de propósito, por meio de um pacto com o demônio ou bruxaria. Qualquer crime tétrico, como o assassinato de crianças, acabava atribuído a lobisomens, e os suspeitos recebiam o mesmo tratamento que as bruxas, a confissão sob torturas, depois a fogueira. Centenas de “lobisomens” foram identificados e condenados.
Dragões
A Cuca já cuspiu fogo
A imagem geral dos dragões europeus mudou pouco desde a Idade Média: eram grandes lagartos, com chifres, quatro patas e asas. Moravam em cavernas, rios, lagos ou castelos abandonados. Em geral inteligentes, falavam e faziam as cidades de reféns, exigindo ouro ou sacrifícios humanos. Também havia as menos conhecidas serpes, dragões de duas patas e duas asas, às vezes com penas e bico, seres mais simples e animalescos.
No Leste Europeu, os dragões eram chamados zmey. Tinham várias cabeças, que cresciam de volta se cortadas, como a hidra dos gregos. Na Bulgária, os machos, de fogo, eram bons e as fêmeas, de água, malignas. Em Portugal, o dragão de São Jorge era — e ainda é — chamado Coca, ou também Cuca. O mito foi abrasileirado e o dragão virou jacaré.
Súcubos e íncubos
Sexy como o diabo
Se, na Idade Média, alguém chamasse o outro de filho do Diabo, era assunto sério. Demônios fêmeas e machos faziam sexo a torto e direito com as pessoas. As fêmeas eram os súcubos, moças muito bonitas que seduziam os homens e então revelavam pequenas deformidades, como caudas ou unhas afiadas. Entre suas diabruras estava — supremo horror! —pedir para a “vítima” fazer sexo oral nelas. Ninguém menos que um papa, Silvestre 2º (946-1003), haveria tido uma relação com um súcubo, ao que ele atribuiu seu sucesso na Igreja, mas se arrependeu no final.
A razão do súcubo fazer sexo com um homem seria coletar o sêmen para ser passado a um íncubo, a versão masculina, que era bem menos sutil e graciosa. Íncubos simplesmente atacavam mulheres no sono. O mago Merlin teria nascido dessa forma, e, em geral, isso explicaria a gravidez em moças solteiras. Não ria: isso era usado como álibi para estupradores reais, principalmente nas próprias famílias.
Cocatrice
O galo do terror
Também conhecido por basilisco. Tinha pernas e cabeça de galo, rabo de serpente, asas de dragão, e nascia de um ovo de galo (isso mesmo, o macho). Era um ser ridículo, mas a risada não duraria por muito tempo após se topar com um deles. Podia matar só com o seu olhar, destruía a grama ou qualquer outra coisa viva por onde andava, e era capaz de até mesmo incendiar pedras.
Era tão venenosa que se alguém, de alguma forma evitando seu olhar, conseguisse atingi-lo com uma lança, o veneno passaria pela arma e mataria o dono e o cavalo. Não havia vitória contra a cocatrice, no máximo empate. O único jeito de matar a criatura era com uma doninha: o cheiro a destruiria na hora, mas o pobre bichinho felpudo também morreria no processo. A crença era tão séria que “cinzas de cocatrice” eram vendidas como ingrediente alquímico.
Vampiros
Zero glamour
Quase todos os povos tinham alguma criatura que, de um jeito ou outro, parecia com um vampiro. A maioria das lendas era sobre um tipo de demônio. Foi no Leste Europeu que surgiu o vampiro como conhecemos, gente como a gente, que continua a viver depois de morto, e sai de noite para sugar o sangue dos vivos. Não havia nada de nobre ou glamuroso neles. Vampiros eram feios, com o aspecto de um cadáver inchado, de tanto beber sangue, e geralmente eram meros camponeses, que voltavam para suas tumbas em cemitérios comuns.
As causas podiam ser muitas: suicídio, bruxaria, heresia, possessão, ter nascido num dia azarado ou com deformidades. A solução — que realmente foi empregada até o século 20 — era desenterrar o corpo e matá-lo de novo. A estaca era só um dos métodos, valia também decapitação, cremação ou deitá-lo de bruços, para que cavasse para baixo.
Para quem não quisesse exumar corpos, havia um paliativo: espalhar sementes e um prego em volta da cova. O vampiro iria tentar contar as sementes, furar o dedo com o prego, perder a conta e ser obrigado a começar tudo de novo. Além de feios, os vampiros eram meio estúpidos.
Unicórnios
Caçá-los exigia um ritual curioso
Além do chifre, eram diferentes dos cavalos porque tinham os cascos duplos, em vez de um só. Também podiam ter barba de bode, ou mesmo serem bodes inteiros, ou burros, dependendo da inspiração de quem contava a história. O chifre do unicórnio seria capaz de tornar qualquer veneno inócuo, e também funcionar como afrodisíaco. Mas não era nada fácil caçar um.
Eram animais nobres e ferozes, que resistiam vigorosamente a um ataque. O único jeito de caçá-los era mandar uma virgem com os seios de fora para a floresta. O unicórnio iria tentar mamar na moça, dormir com a cabeça em seu colo, e então qualquer caçador poderia liquidá-lo.
Não faltavam chifres de unicórnio no mercado, supridos pelos nórdicos, que vendiam dentes de narval, uma baleia branca, como se fossem o ingrediente mágico. O suposto método de caça fez com que unicórnios se tornassem populares em quadros e tapeçarias como um símbolo para Jesus Cristo, um ser poderoso que pode ser alcançado por meio de uma virgem — Maria, no caso.
Banshee
A canção letal
Entre os celtas, um aes sidhe fêmea, isto é, uma fada grande e malvada, anunciava a morte com seu canto e choro — alguns diziam que era uma linda canção, outros, um barulho estridente, capaz de partir vidro. Geralmente era uma mulher velha, vestida de branco ou cinza, vista lavando as roupas sujas de sangue do morto. Outros acreditavam que seria um fantasma, não fada, o espírito de uma mulher que morreu no parto.
Em qualquer caso, ninguém queria ouvir uma banshee cantar, mas isso não deixava de ter certo status. Elas não cantavam para a morte de qualquer um: apenas famílias distintas eram honradas com seu canto. Na morte de reis, bispos e papas, muitas banshees podiam fazer-se ouvir ao mesmo tempo.
Fadas
Grandes e malvadas
As palavra “fada” vem do latim fata, que eram as três parcas do destino, as bruxas que compartilhavam um só olho na mitologia greco-romana. Como tudo no paganismo, as fatas latinas se transformaram em demônios aos olhos dos cristãos. Assim, na Idade Média, fadas eram anjos caídos, mas aqueles ficaram na Terra em vez de ir para o inferno — meios demônios e só meio malvados.
Tinham o mesmo tamanho de um adulto e não possuíam asas, voando magicamente. A origem da fada moderna está na Irlanda
e Escócia, onde eram chamadas aes sídhe e seriam um povo antigo, expulso pelos humanos, vivendo no subterrâneo ou num mundo invisível. Essas lendas acabaram misturadas aos elfos, goblins e outros seres minúsculos, criando as fadinhas dos contos.
Kraken
De caranguejo para lula
Uma velha lenda viking, passada a marinheiros de todas as nacionalidades, era um medo muito real ainda na era dos piratas. Vários afundamentos foram atribuídos a krakens. O monstro, que viveria entre a Groenlândia e as costas da Noruega, era confundido a distância com uma ilha, com 2 quilômetros ou mais de largura.
Esse kraken dos vikings era retratado como um tipo de baleia ou caranguejo, que podia ou engolir diretamente os navios ou causar um redemoinho gigante ao mergulhar, levando todo mundo ao fundo. O kraken mudou de forma quando marinheiros avistaram lulas gigantes, vivas ou mortas, e relacionaram à lenda. Assim o monstro tornou-se um molusco de dimensões descomunais. As lulas gigantes da vida real eram consideradas filhotes de kraken.
Cinocéfalos
Eles eram ferozes, mas podiam virar santos
Pessoas com cabeça de cachorro, perfeitamente capazes de empunhar armas e bastante competentes nisso, sendo extremamente ferozes em guerra, já que eram canibais e tão esfomeados quanto cães de verdade. Acreditava-se que diversos povos de terras distantes eram naturalmente assim. Marco Polo e Giovanni Carpini juravam de pés juntos que haviam conhecido os cinocéfalos em suas viagens para a Ásia.
A coisa era tão levada a sério que eles eram desenhados em mapas, e vários teólogos discutiram se eles eram mesmo humanos, se podiam ser salvos, e se eram descendentes de Adão. Até mesmo um santo, São Cristóvão, era tido como pertencente à espécie.
Sereias
Com dois rabos ou do tamanho de Godzilla
O mito nasceu na Grécia Antiga, mas é muito diferente do que era contado na Idade Média e sobreviveu até hoje. As sereias antigas, como na Odisseia, viviam no mar, mas tinham penas, asas e pernas de águia. Foi entre outros povos que elas ganharam a forma atual. Entre os celtas havia os merrow, um povo com rabo de peixe, que podia atingir dimensões colossais, mais de 60 metros de comprimento.
Mas também podiam se disfarçar de mulheres e geralmente preferiam os homens aos machos da própria espécie, que eram muito feios. Nessa forma, elas podiam até casar e ter filhos — e alguns nobres irlandeses juravam de pés juntos serem descendentes de merrows. Uma sereia irlandesa, Murgen, passou a ser vista como santa pelo povo, depois que os irlandeses se converteram ao cristianismo.
Na Europa continental havia Melusina, com duas caudas (origem do logotipo do Starbucks), que normalmente eram pernas, mas se transformavam quando entravam na água. A sereias modernas surgiram de misturar as da Antiguidade, que cantavam para matar marinheiros, com essas criaturas. Isso foi feito em grande parte por padres, que não gostavam da sensualidade toda do mito.
Trolls e ogros
Gigantes vikings, canibais cristãos
Trolls eram descendentes dos jotun, os gigantes extremamente feios que enfrentaram os deuses na mitologia nórdica, que viviam em montanhas, cavernas ou rochas. Eram geralmente hostis e, após a conversão dos nórdicos, dizia-se que seguiam a religião antiga. Ogros eram gigantes gordos, com tendências canibais.
Possivelmente a origem é bem cristã, derivada de Og, o rei gigante dos amoritas na Bíblia. Não eram muto falados na Idade Média, exceto por algumas lendas do Rei Arthur. No século 17, se tornaram populares, graças ao conto O Barba Azul, de Charles Perrault.
Golens
Robô medieval contra o antissemitismo
A lenda já existia entre os judeus desde o século 2, mas desenvolveu-se principalmente nas comunidades do Leste Europeu, em fins da Idade Média e Renascença. O golem seria um monstro criado de barro, animado por magia cabalística, por meio de palavras em hebraico, escritas em sua testa ou num pergaminho colocado em sua boca.
O gesto imitava a criação bíblica ser humano — a peça de barro que tornou-se Adão era chamada de golem pelos judeus. A criatura era posta em ação para proteger seu povo das perseguições, mas, quase invariavelmente, alguma coisa dava errado. Os golens podiam crescer até tornarem-se colossais, incontroláveis ou ameaçar inocentes. Às vezes, o criador acabava destruído pela criatura. Foi a grande inspiração para o monstro do Dr. Frankenstein.
Gnomos, elfos e outros tampinhas
Não estava muito claro quem era quem
Elfos surgiram no paganismo germânico, como pequenos demônios, geralmente invisíveis, que causavam doenças ao dispararem suas flechas. Os anões, trabalhadores que viviam em montanhas, minerando tesouros, descendiam dos vermes que comeram o cadáver do gigante Ymir, dotados de razão pelos deuses.
Principalmente depois da cristianização, os dois acabavam misturados frequentemente, como no goblin britânico, um elfo ganancioso. A palavra “gnomo” é criação do alquimista Paracelso (1493-1541), que os descreveu como elementais da terra, seres espirituais que viviam no subsolo, e também reuniam características de elfos e anões.
Baba Yaga
A terrível vovó da floresta
No folclore eslavo, era uma velhinha com aspecto aterrador, que voava num pilão, carregando o cabo ou uma vassoura na mão. Sua casa, escondida no fundo da floresta, se apoiava num pé de galinha gigante, podia se mover aos pulos, e não tinha portas ou janela — assim, só ela podia entrar, voando pela chaminé.
Baba Yaga — a primeira palavra querendo dizer “vovozinha” em russo e outras línguas eslavas, a segunda, um nome próprio — podia ser amigável, dividindo sua sabedoria ou fornecendo objetos mágicos aos heróis. Mas também maligna, tentando devorar as pessoas. A lenda provavelmente descende de uma deusa pagã da antiga religião eslava, tornando-se mais malvada com o cristianismo, mas mantendo ainda algo de sua função original, um espírito protetor da floresta.