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Ciência

Inconsciente – O iceberg sob a água.

Nossa concepção de mente nunca mais foi a mesma depois de Freud. Ficou repartida entre inconsciente e consciente, e povoada de desejos proibidos.

por Alexandre Carvalho Atualizado em 17 ago 2020, 19h00 - Publicado em 8 Maio 2020 11h12

Nossa concepção de mente nunca mais foi a mesma depois de Freud. Ficou repartida entre inconsciente e consciente, e povoada de desejos proibidos.

Texto: Alexandre Carvalho | Edição de arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens: Getty Images e Wikimedia Commons


“He kept us out of war!”. Esse slogan – “Ele nos manteve fora da guerra” – funcionou que foi uma beleza na campanha de reeleição do presidente Woodrow Wilson em 1916, garantindo aos Democratas mais quatro anos na Casa Branca. O sucesso da plataforma pacifista era uma confirmação: o povo americano não queria se meter no imbróglio da Primeira Guerra Mundial, lá do outro lado do Atlântico. Enquanto a carnificina traumatizava a Europa, os Estados Unidos adotavam uma posição de neutralidade pragmática: não disparavam nem recebiam um tiro sequer, mas turbinavam a própria economia com as oportunidades comerciais abertas pelo conflito. Afinal, a Tríplice Entente – aliança militar entre França, Reino Unido e Império Russo – tinha urgência de mais armas e alimentos.

Basta lembrar que o combate tinha começado em 1914 para ver que esse arranjo ideal – paz na sua terra e lucro com a guerra – durou bastante. Pelo menos até um ponto em que não deu mais pé. Em 1917, os EUA se viram obrigados a mudar de estratégia, fazendo sua primeira entrada tardia e salvadora num conflito internacional do século 20. Mas quais os motivos dessa mudança de planos?

Primeiro porque a tal neutralidade era espalhafatosamente da boca para fora: o país enviava recursos e fazia empréstimos financeiros só para um dos lados da contenda – o que, claro, não deixava alemães e austríacos, o outro lado, exatamente felizes com os americanos. Além disso, os EUA também começaram a desconfiar que seus clientes poderiam acabar perdendo a guerra, e isso talvez levasse a uma situação que, aos olhos do capitalismo, é pior que a morte: a malfadada inadimplência.

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Quem pagaria pelos capacetes, canhões, roupas e toda a comida que o país vinha exportando, se tudo nesses países virasse terra arrasada? Mas a gota d’água só pingou quando a Alemanha achou por bem autorizar seus submarinos a violar leis de não agressão marítima, afundando navios americanos em águas internacionais. Motivo para partir para a briga não faltava. O que faltava mesmo era combinar com os pais dos soldados americanos. Se Wilson tinha sido reeleito garantindo que não mandaria seus jovens para a matança na Europa, como convencer a população de que ir à guerra tinha propósitos mais valiosos que qualquer promessa de campanha?

Então, para passar uma borracha no que foi dito e mexer com a cabeça da sociedade, a administração federal se empenhou em criar a maior máquina de propaganda política já vista no planeta – um bombardeio agressivo de mensagens, diretas e subliminares, em favor da guerra, louvando os ideais de patriotismo, democracia e liberdade. Daí nasceram incontáveis filmes, livros, pôsteres e folhetos, além de anúncios e artigos publicados nos principais jornais do país. Nesse esforço de convencer a opinião pública, o governo ainda recrutou celebridades, pastores e professores para advogar pela causa, patrocinando palestras e debates. Com isso tudo, o governo ganhou com folga a guerra dentro de casa. O povo foi convencido, e 4 milhões de militares foram mobilizados – desses, 116 mil não voltariam vivos.

O resultado, você sabe: com a ajuda fundamental dos americanos, a Tríplice Entente venceu a guerra em 1918, e os alemães tiveram de engolir as restrições impostas pelo Tratado de Versalhes. No ano seguinte, o presidente dos EUA foi à França participar da Conferência de Paz que estabeleceria as condições aos derrotados, e o que se viu foi uma recepção calorosa e vibrante dos parisienses. Ainda com a propaganda americana reverberando, Wilson foi aclamado como o grande libertador do povo europeu – o líder de um novo mundo, democrático e de livre comércio, salvo da ameaça dos impérios totalitários.

Quem viu toda essa empolgação de perto foi Edward Bernays (1891-1995), que tinha feito parte da engenharia de convencimento, e por isso foi convidado pelo governo americano para ir à França na ocasião. Aos 28 anos, esse jornalista – que se tornaria pioneiro da função de relações públicas no mundo – ficou maravilhado com o poder da propaganda de mexer com as emoções das massas. E então chegou a uma reflexão que mudaria o seu destino dali para a frente: se é possível introduzir uma sugestão na cabeça de milhões de pessoas num período tão complicado como a guerra, com certeza dá para fazer em tempos de paz. Mas como?

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Uma vez em Paris, Bernays – filho de imigrantes austríacos – aproveitou a estada na Europa para se conectar com a família que tinha ficado no continente. E mandou um presente para um tio querido, irmão de sua mãe: uma caixa de charutos cubanos. Em retribuição, recebeu do tio uma cópia de um livro escrito por ele: Conferências Introdutórias à Psicanálise. Bernays de cara ficou fascinado pela obra, especialmente pela ideia desse seu tio, Sigmund Freud, de que o ser humano é dominado por desejos irracionais – que permanecem numa parte obscura da mente, respondem pelos nossos comportamentos e, mais importante ainda, por nossas escolhas. Foi aí que Bernays teve a grande ideia de sua vida: fazer dinheiro explorando as descobertas do seu parente amante de charutos, influenciando operações mentais que a maioria das pessoas nem tinha noção de que existem.

Outro grande teórico das relações públicas, o americano Scott Cutlip (1915-2000), escreveu: “Quando alguém se encontrava com Bernays, não demorava nada até que seu tio fosse trazido à conversa. A relação dele com Freud estava sempre na vanguarda do seu pensamento”. Agindo assim, Edward Bernays tornou-se figura-chave por trás do impulso ao consumismo nos EUA na primeira metade do século 20. E foi logo chamando a atenção da indústria com uma campanha revolucionária – curiosamente, relacionada ao hábito de fumar, tão caro ao tio Sigmund.

Contratado por George Hill, presidente da corporação americana de tabaco, Bernays recebeu uma missão que parecia impossível à época: quebrar o tabu de que mulheres fumando em público era uma coisa grotesca, um atentado à moral e à decência. Empolgadíssimo com as ideias de Freud, Bernays pediu ajuda a um dos primeiros psicanalistas dos EUA, Abraham Arden Brill (1874-1948) – porque seu tio mesmo nunca quis se envolver com a mercantilização das próprias teorias. O que o sobrinho queria descobrir, via psicanálise, era o que o cigarro significava para as mulheres, e o que poderia vir a significar.

Brill, que foi tradutor de obras de Freud, do alemão para o inglês, respondeu com um simbolismo que hoje é clássico, mas na época podia ser tão surpreendente quanto ultrajante: o cigarro simbolizava o pênis e, consequentemente, o poder masculino sobre a mulher. Bernays entendeu, então, que o desafio estava em mostrar às consumidoras que fumar representaria se contrapor ao domínio do homem, porque “a mulher teria seu próprio pênis”.

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Para chamar atenção do país inteiro a essa ideia, Bernays organizou um manifesto fake, em 1929, durante um dos eventos mais midiáticos daqueles tempos nos EUA: a Parada de Páscoa em Nova York. Pegando carona no movimento sufragista, que tinha recém-conquistado o direito de voto às mulheres, ele convenceu um grupo de debutantes ricas a esconder cigarros sob as roupas. Elas deviam juntar-se ao desfile e, num determinado momento, sob o comando de Bernays, acender seus cigarros Lucky Strike todas ao mesmo tempo, e da maneira mais teatral possível. Sim, era um flash mob. Mas antes ele havia preparado a imprensa: espalhou que um grupo de feministas estaria armando um escândalo bem no meio da parada. Um protesto chamado “Tochas da Liberdade”.

A encenação, claro, foi um sucesso. Avisados sobre o “protesto”, os fotógrafos ficaram a postos, de modo que não faltaram registros daquelas mulheres jovens e bonitas fumando. E a notícia viralizou – tanto quanto seria possível com os meios de comunicação da época. Os nova-iorquinos haviam testemunhado um grito impactante de igualdade entre os gêneros, e os costumes nunca mais seriam os mesmos.

A partir daquele ato histórico, mais e mais mulheres começaram a fumar sem disfarces nos EUA, e a publicidade do cigarro passou a ser dirigida para elas também. Assim, o público-alvo da indústria tabagista dobrou de tamanho. E o sobrinho de Freud se consagrou. Tanto que não parou mais de usar as teorias do tio para aquecer o comércio – associando mercadorias e serviços aos desejos sobre os quais não temos uma elaboração racional.

Essa “psicanálise do consumo” transformou toda a propaganda nos EUA e, posteriormente, no resto do mundo. Até então, a ideia geral era de que, se você expusesse ao consumidor todos os fatos e informações técnicas sobre um produto, isso seria suficiente para convencer as pessoas a colocar a mão no bolso. A grande contribuição de Edward Bernays ao capitalismo foi uma mudança do conceito de “você precisa desse produto” para o de “esse produto vai melhorar sua autoestima”.

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Afinal, a ideia de que, ao fumar, as mulheres se tornariam mais poderosas e livres é completamente irracional – e até absurda. Fumar só deixa a gente sem fôlego, com a pele ruim e provoca câncer. Mas, de fato, na época, e até bem pouco tempo atrás, essa “conquista” deu às mulheres um sentimento de independência.

Mexer com as nossas emoções ocultas foi tão importante para a economia naquelas primeiras décadas do século passado quanto ainda é hoje. E isso se comprova com uma simples ida ao supermercado. Você acha mesmo que faz decisões racionais quando está rodeado por centenas ou milhares de produtos? Não é bem assim: diante de cada barra de chocolate ou macarrão instantâneo na prateleira, nosso cérebro toma uma decisão de compra antes que a consciência entre em ação. O núcleo accumbens, que é a parte cerebral responsável por fabricar boas sensações, avisa baixinho que você gosta muito de miojo sabor galinha caipira. Ele sabe que você adora aquele gosto ultraforte de tempero químico e então inunda seu cérebro com dopamina – o hormônio do prazer. Você não pensa conscientemente em nada disso. Só tem uma sensação boa e decide pegar logo cinco pacotes de miojo (é tão baratinho…).

Repare também que as frutas e legumes costumam ficar bem na entrada do Pão de Açúcar. É assim porque produtos saudáveis logo de cara aplacam os opositores da nossa mente. No córtex insular, responsável por estímulos emocionais e respostas fisiológicas, processamos um sentimento de rejeição a tudo o que é ruim no mercado: cheiro de peixe podre, preços altos e comida que faz mal. Se essa parte do cérebro fica agitada, não compramos nada. Mas a entrada do mercado cheia de “produtos paz e amor” dá uma anestesiada nesse desmancha-prazeres. Então assumimos que ali é lugar de gente feliz e enchemos o carrinho também nas seções de produtos industrializados – e bem mais caros.

Se desconfiasse que suas ideias acabariam virando isca em ações promocionais do varejo, para vender de lingerie a carro usado, Freud talvez jogasse tudo o que escreveu na lixeira. Mas ele teve reconhecimento ainda em vida pelo alcance muito maior de suas teorias, de modo que provavelmente morreu satisfeito com sua criação. O fato é que a investigação moderna sobre os nossos processos mentais, e especialmente sobre como eles influenciam nossas emoções e comportamentos – no uso do cartão de crédito, no tesão, na paz e na guerra –, só chegou a esse patamar sofisticado graças à principal contribuição de Sigmund Freud para o pensamento do século 20: o inconsciente.

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O poço dos desejos

Tudo o que você já leu ou ainda vai ler sobre Freud passa pela ideia do inconsciente. Complexo de Édipo, mecanismos de defesa do ego, pulsão de morte… nenhuma dessas coisas aconteceria de forma consciente na cabeça da gente. Você nunca pensa, entre uma estação e outra do metrô, “opa, agora me deu uma vontade meio louca de matar o meu pai e casar com a minha mãe. Mas, como isso é bizarro, vou só falar mal dos discos de bolero que o velho gosta”. Ou então: “Meu marido é um traste, me trai toda sexta-feira, quando diz que vai jogar bola com os amigos, mas eu finjo que não sei para preservar a minha saúde mental dessa situação degradante”. Segundo Freud, embora esses desejos e autodefesas existam e influenciem as nossas atitudes e até a nossa personalidade, na maior parte do tempo eles ficam reclusos lá no fundão da nossa mente – uma parte que, aliás, toma conta do negócio todo.

Hoje, mais de um século depois dos primeiros postulados de Freud sobre o assunto, está claro para qualquer um que, uma hora ou outra, somos traídos por desejos secretos, fantasias e medos que não admitimos nem para nós mesmos. Por outro lado, essa compreensão da influência do inconsciente é motivo de esperança: a de que nossas ansiedades, timidez, maus comportamentos, nossas relações pessoais e até o empenho diante de objetivos de vida… tudo isso pode ser mais trabalhado. Quiçá na terapia.

Mas essa descoberta do pai da psicanálise nunca teria existido se não houvesse, antes, uma filosofia toda dedicada a escrutinar os mistérios do pensamento. “Poetas e filósofos descobriram o inconsciente antes de mim; o que eu descobri foi o método científico para estudá-lo”, Freud admitiu. Bom, nem sempre era tão científico assim. Mas o que importa agora é que ele tinha razão ao reconhecer que, se foi o grande teórico do inconsciente, não foi seu inventor.

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Filosofia da mente

Artistas e pensadores já especulavam sobre o inconsciente antes de Freud. Uma rica herança que foi base de sua teoria.

Essa história toda de inconsciente começou lá na Grécia Antiga, quando Platão (427 a.C.-347 a.C.) disse que o corpo pertence ao mundo material, enquanto a mente – que ele chamava de alma – era outra coisa: pertencia ao mundo das ideias. Formava-se ali uma noção primitiva de consciência, que ficou muito mais bonita quando, no século 17, o filósofo René Descartes (1596-1650) fez sua própria descrição da relação entre corpo e mente. Descartes imaginava uma mente imaterial que ficaria instalada, veja só, na parte do fundo do cérebro, enquanto o corpo seria um sistema operado por fluidos que provocam os movimentos. “Há uma alma racional nessa máquina”, ele diria. “Sua morada é o cérebro.” Já havia ali, portanto, uma localização da mente no órgão que temos dentro da cabeça – não pensamos com o estômago, mesmo quando estamos famintos –, uma percepção que teria reflexo na própria origem da neurociência.

Mas, ainda antes que essa divisão de tarefas fosse proposta por Descartes, o suíço Paracelso (1493-1541) apresentou a primeira descrição médica do inconsciente. Mais do que isso, ele praticamente abriu caminho para o que viria a ser a psicanálise, associando sintomas físicos a transtornos mentais inconscientes. “A causa da doença chorea lasciva [um distúrbio de movimentos involuntários do corpo, que ele julgava associado à excitação sexual] é uma mera opinião e ideia, assumida pela imaginação, afetando aqueles que acreditam em tal coisa.” Antecipando Freud, Paracelso defendia que há duas vidas distintas no homem: a racional e a instintiva, e que a última estaria ligada a estados alterados da consciência, como o sonho.

Desde então, sempre houve, na filosofia, teorias sobre a existência de uma parte oculta da mente. No século 19, um alemão, Johann Friedrich Herbart (1776-1841), também estudioso do funcionamento da mente, proporia um modelo que depois seria aprimorado por Freud. Ele se perguntava como não ficamos malucos tendo de guardar na cabeça o zilhão de pensamentos que temos ao longo da vida. Onde caberiam tantas ideias, sentimentos, lembranças? Herbart então sugeriu um esquema mental que funcionaria assim: as ideias conteriam energia, e resistiriam entre si quando discordantes, causando um efeito de afastamento. Quando temos duas ideias antagônicas, acabamos automaticamente favorecendo uma delas, que se torna perceptível na nossa mente. Já a ideia perdedora seria repelida e expulsa para fora da consciência, para um lugar que ele chamou de “estado de latência” – mas que você pode chamar de inconsciente.

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Também é impossível falar sobre a influência da filosofia em Freud sem citar Arthur Schopenhauer (1788-1860). Mais um alemão nessa história, o autor de O Mundo como Vontade e Representação dizia que temos uma Vontade, irracional e “fora de nossas representações cognitivas” – algo muito semelhante à noção freudiana do inconsciente e seus impulsos. A semelhança entre o pensamento desses dois gigantes chega a ponto de Schopenhauer dizer que a Vontade impediria que alguns pensamentos chegassem ao nosso intelecto, porque seriam inaceitáveis – em alguns casos, poderiam nos levar à loucura. Eis aí a própria base da repressão na psicanálise.

Ou seja, quando Sigmund Freud começou a prática clínica, nos anos 1880, a intelectualidade europeia já estava ocupadíssima com discussões sobre o inconsciente. Um livro de Eduard von Hartmann, Filosofia do Inconsciente, era tão popular na época quanto os livros com “foda” no título são nos dias de hoje: ganhou nove edições, um fenômeno paulocoelhiano para o século 19. E a própria literatura já conquistava público trabalhando o tema de forças inconscientes que se impõem sobre a porção mais racional do indivíduo. Foi assim com O Médico e o Monstro (The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde), obra de Robert Louis Stevenson (1850-1894). Nesse clássico da literatura de terror, o drama gira em torno da divisão da mente de um indivíduo em duas personalidades, uma toda certinha – o respeitável Dr. Jekill – e outra impulsiva e agressiva – Hyde, o psicopata –, uma elaboração que encontra paralelos nos conflitos psíquicos de que Freud falaria mais tarde.

Nesse contexto, de muita especulação filosófica e artística, Freud foi o primeiro a se comprometer integralmente com o assunto, usando essas teses anteriores como escafandro para mergulhar nas profundezas abissais do inconsciente. Quando emergiu de volta, trouxe consigo uma topologia para a mente humana, com localizações e funções distintas para cada parte do nosso aparelho psíquico. Foi assim que transformou a noção de onde vem cada emoção e decisão que tomamos na vida. De verdade, foi a partir daí que Freud começou a construir uma parte significativa da autopercepção de qualquer indivíduo: a concepção moderna do que há de mais humano – falível e ardente de desejo – dentro de nós. É o que vamos ver abaixo.

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Santíssima Trindade Psíquica

O primeiro mapeamento da mente descrito por Freud dividiu-a em consciente, pré-consciente e — o todo-poderoso — inconsciente.

Para Sigmund Freud, o que chamamos de consciência – a parte operacional da mente, que nos dá uma compreensão direta das coisas ao longo das experiências do dia a dia – é só a ponta de um imenso iceberg. Toda a parte do iceberg que está “abaixo do nível do mar” é o inconsciente. Aliás, numa primeira etapa, Freud disse que a mente tem dois tipos de inconsciente: o inconsciente propriamente dito, formado por pensamentos inacessíveis, e, no meio de campo, um pré-consciente, cujas excitações podem, sim, chegar à nossa compreensão. Esse conceito da mente dividida em três instâncias – consciente, pré-consciente e inconsciente – ficou conhecido como a “primeira tópica freudiana”.

Então vamos lá. Quando você ouvir falar de “tópica”, no sentido da psicanálise, é isto: cada uma das elaborações teóricas de Freud sobre a divisão da mente. O termo vem do grego topos (lugar), e por isso tem a ver com a tal topologia da mente. A primeira, Freud apresentou no finzinho de 1899, com a publicação do livro A Interpretação dos Sonhos. Ele se apegou a essa divisão até que, nos anos 1920, lançou uma segunda tópica, quando a mente ganhou uma nova repartição: id, ego e superego (que também vão render assunto mais para a frente neste dossiê).

Para não se embaralhar muito com as ideias freudianas, tente guardar uma coisa: durante toda a sua vida, Freud foi mexendo bastante nas próprias teorias, acrescentando assuntos e corrigindo o que lhe parecia ultrapassado – ou errado mesmo.

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Voltando às divisões da primeira tópica, uma analogia razoável dessa geometria mental pode ser a televisão. Isso mesmo. Comece pensando o seguinte: quando o aparelho está desligado, não quer dizer que não haja atividade acontecendo no universo televisivo. Você sabe que há toda uma galáxia de programas sendo exibidos, mas há um portal mágico chamado controle remoto entre você e esses conteúdos ocultos. Já com ela ligada, você só vê um bocadinho do que as empresas de TV prepararam – mas, claro, não vê como é feita essa preparação.

Bem por trás dos pixels que chegam à sua sala de estar, há bastidores de filmes, telejornais, novelas e séries, onde esse material está sendo produzido, escrito, editado, discutido… É o tal do making of. Tudo isso é inacessível à sua percepção. Além disso, enquanto você vê um jogo de futebol, há uma penca de outros programas passando ao mesmo tempo, mas que também não estão acessíveis nesse momento, porque você – por algum motivo claro ou obscuro – decidiu pousar o controle remoto no bendito Guarani x Botafogo de Ribeirão Preto. (Talvez tenha a ver com um desejo inconsciente de aproximação com seu pai, que sempre foi boleiro; talvez seja a afirmação de uma heterossexualidade contra impulsos internos que você prefere rejeitar.)

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Pois bem, todo esse universo que acontece nos bastidores da TV, ao qual você não tem acesso, seria o inconsciente; a programação dos outros canais, à qual você pode ter acesso dependendo de algumas circunstâncias – no caso, um clique no controle remoto –, seria o pré-consciente; e aquilo que você está mesmo assistindo (o jogo do Guarani) seria a parte mais conhecida dessa história toda: a consciência.

O consciente

Apesar de a psicanálise ser uma teoria do inconsciente, isso não quer dizer que Freud não desse bola para a consciência. Pelo contrário, os psicanalistas partem justamente do que chega à consciência de seus pacientes para acessar os processos ocultos que levam a pessoa a buscar terapia. Mas essa parte da mente – Freud explica, e a ciência atual concorda – é só a pontinha do iceberg: hoje, cientistas estimam que apenas 5% dos nossos processos cognitivos sejam conscientes, passando pelo nosso controle racional. Todos os outros 95% são domínio do inconsciente – exatamente o que Freud afirmava.

Apesar dessa aparente desvantagem, sem a consciência não haveria como explorar a perigosa e fascinante pedrona de gelo que se esconde ali. Tanto que Freud afirmou que o consciente “permanece sendo a única luz que ilumina nosso caminho e nos conduz através da obscuridade da vida mental”.
A grande diferença pré e pós-Freud é que, antes, o senso comum dizia que o consciente era o chefão dos nossos pensamentos. E aí o nosso Sigmund mudou a hierarquia entre os estados mentais. Para ele, o consciente é apenas o programa que você está vendo no televisor da sua vida naquele momento.

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A teoria de Freud também lembra que tudo aquilo que nós vemos nessa TV Consciência passa voando, numa fração de segundo: é o seu caráter transitório. “Em geral, a consciência é somente um estado extremamente fugitivo. O que é consciente só o é por um momento.” (Essa afirmação de Freud bate com a teoria atual do psicólogo Daniel Kahneman, Prêmio Nobel de Economia. Segundo ele, estamos sempre pulando da nossa percepção de presente para uma de passado porque, para o nosso cérebro consciente, o agora não dura mais que 3 segundos.)

Hoje os cientistas acreditam que o córtex pré-frontal é o maestro dos nossos pensamentos e percepções conscientes. Se você quiser saber a localização da consciência na sua cabeça, ela está logo atrás da sua testa, onde fica essa parte marota do cérebro.

O pré-consciente

Nesse aparelho psíquico de Sigmund Freud, o pré-consciente é um sistema intermediário. O termo surgiu pela primeira vez em 1896, numa carta dele ao amigo Wilhelm Fliess (1858-1928). Segundo Freud, no pré-consciente, “os fenômenos de excitação podem chegar à consciência sem maior demora, desde que sejam atendidas outras condições, como um certo grau de intensidade, uma certa distribuição da atenção”.

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Traduzindo: o pré-consciente é já uma parte do inconsciente, mas com uma diferença importante – os pensamentos que estão ali podem vir à tona mais facilmente, desde que despertos por algum motivo especial. É aí que ficariam as suas memórias acessíveis, como um aroma que acaba remetendo a um prato que só sua avó sabia fazer, ou uma foto que o faça lembrar a primeira vez em que a sua filhinha disse “papai” ou “mamãe”.

Sua majestade, o inconsciente

E a maior parte desse iceberg? O pensamento ocidental, ao longo do século 19, afirmava que as pessoas podiam acumular conhecimento sobre si mesmas e tomar decisões racionais com isso. Decisões conscientes, que fique claro. Mas Freud estragou essa ilusão de poder quando colocou seu periscópio para examinar a parte do iceberg escondida abaixo do nível do mar. Disse que não sabemos por que pensamos o que pensamos. E que geralmente agimos por razões que desconhecemos. Razões chacoalhadas nesse oceano submerso.

O inconsciente carrega, segundo Freud, as principais determinantes da personalidade e as fontes da nossa energia mental. Esse é o lado bom. Porque lá também estão nossos medos, nossas motivações egoístas, desejos irracionais, impulsos sexuais dos quais você não se gabaria numa mesa de bar, além de umas tantas experiências traumatizantes.

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E aí vem um detalhe essencial: Freud explica que todo esse lado ruim fica reprimido por um mecanismo da própria mente para que nossa consciência não viva em estado de perpétuo assombro. Ou seja, temos um vasto material censurado no inconsciente, que não vem à consciência nem se nós quisermos nos lembrar dele. (Só surge mediante as condições muito especiais de que vamos tratar nos próximos capítulos.)

Se você sente uma raiva tremenda de um familiar a ponto de desejar que ele morra, é comum que você não tenha consciência desse desejo – afinal, você não julga querer nem a morte de um marimbondo pentelho, muito menos de um parente seu. Então esse desejo fica guardado no inconsciente. Mas você acaba tendo reflexos dele de alguma forma, por uma coisa que Freud chamou de “formação de compromisso”.

Esse conceito é um tipo de acordo que sua mente faz com ela mesma para conciliar seus desejos secretos com aquilo que seria aceitável, tanto pelos padrões da sociedade quanto em prol do seu equilíbrio mental. Nos sonhos, por exemplo, a formação de compromisso se dá quando um desejo indecente seu aparece de uma forma tão disfarçada que você não suspeita que fosse motivo de vergonha. E alguns dos nossos comportamentos podem ser a expressão – ainda que irreconhecível, adaptada à realidade – desses impulsos proibidos.

Reprimidos

Freud descobriu que lembranças e desejos podem ser tão apavorantes ou dolorosos que não dá para a gente pensar neles. Por isso, a mente criou um mecanismo de preservação da nossa sanidade mental, emparedando esses pensamentos no nosso inconsciente, fora do nosso alcance.

Esse é o famoso processo que Freud chamou de repressão – um dos grandes conceitos da psicanálise. Mas essa inacessibilidade não significa que esses pensamentos não tenham efeitos sobre nós. Como são pensamentos carregados de desejo, eles querem vir à tona, sair de trás dessa parede onde estão presos – afinal, queremos que nossos desejos sejam satisfeitos… mesmo que eles sejam terríveis.

Por isso, a repressão demanda muita energia psíquica para cumprir com suas atividades de carcereira mental. Parece ruim à primeira vista – vá chamar alguém de reprimido para ver se a pessoa gosta. Mas não é. Toda essa ação existe para nos poupar do sofrimento. O problema é quando esses sentimentos ocultos, na ânsia de virem para a consciência, acabam mexendo com a nossa saúde psicológica. E aí, haja sessão de psicanálise para poder lidar com isso.

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O cego que via sem ver

Um estudo do fenômeno chamado “blindsight” comprova: o inconsciente tem mais poder — e mistérios — do que a ciência atual é capaz de identificar.

Embora tenhamos muito a descobrir ainda a respeito do inconsciente, a ciência atual tem confirmado algumas das elaborações de Sigmund Freud. Por exemplo, o austríaco dizia que, apesar de a consciência bater o cartão quando você apaga a luz para dormir, o inconsciente trabalha sem parar. Hoje a neurociência está cheia de validações dessa atividade constante do inconsciente, que nos permite funcionar como seres humanos. E essas comprovações, vira e mexe, chegam a revelações extraordinárias – que deixariam o próprio Freud de boca aberta (cuidado para o charuto não cair!).

Uma descoberta recente, e que parece coisa de filme, é uma capacidade chamada blindsight, “visão às cegas”. Tudo começou quando um homem na Suíça sofreu um derrame que desligou as áreas do lobo occipital do cérebro responsáveis pela visão: o indivíduo ficou completamente cego. Com um detalhe, seus olhos não tinham problema nenhum, permaneceram saudáveis. O sistema óptico continuava captando e registrando luz, mas o córtex visual não conseguia mais processar os dados enviados pela retina. Esse homem cego pela hemorragia cerebral virou então objeto de pesquisa, passando por uma série de testes. Desses, dois apresentaram resultados que parecem sobrenaturais.

O indivíduo pesquisado, então com 54 anos, foi posto diante de um laptop que mostrava uma sequência de rostos zangados e felizes. Os pesquisadores iam passando as imagens e perguntando se ele achava que a face na tela estava zangada ou feliz. Parece até brincadeira de mau gosto, perguntar isso a um cego, certo? Mas o pesquisado acertou dois terços das vezes. Muito mais que uma mera questão de sorte.

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Impressionados com esse desempenho, os estudiosos então colocaram o homem para caminhar, sem bengala, por um corredor cheio de objetos espalhados pelo chão. E aí a surpresa: o cego caminhou pelo corredor desviando corretamente de todos os obstáculos, como se enxergasse tanto quanto eu e você. Não tropeçou em nada e conseguiu evitar esbarrões numa lata de lixo, num cesto de papel e em várias caixas deixadas ali de propósito pelos pesquisadores.

Não era truque nem feitiçaria. Foi a tecnologia do cérebro comprovando que nosso inconsciente tem mais cartas na manga do que sonha nossa vã neurociência. O estudo demonstrou que, embora a parte do cérebro responsável pela percepção consciente da visão estivesse arruinada, o inconsciente daquele homem era capaz de receber as imagens (lembrando que os olhos estavam perfeitos) e influenciar suas ações com base no que “via”.

Esse caso pode, talvez, ser o primeiro passo de um caminho para a ciência pesquisar outras alternativas de tratamento para a perda da visão – embora ainda faltem muitas evidências sobre o fenômeno do blindsight para que surjam práticas clínicas ou medicamentos a partir dele. Mas, se um dia der certo, a descoberta terá cumprido com o objetivo primordial de Sigmund Freud, que começou suas investigações do inconsciente com uma única coisa em mente: melhorar a qualidade de vida das pessoas. Então não perca as cenas do próximo capítulo.

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