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Sociedade

Marion Nestle: uma nutricionista de olho na indústria alimentícia

Nestle – não é Nestlé – explica como as gigantes da comida disfarçam marketing de pesquisa séria para ditar qual é o alimento saudável da vez.

por Mariana Weber Atualizado em 8 dez 2021, 16h43 - Publicado em
21 ago 2019
16h54

Texto: Mariana Weber | Edição: Bruno Vaiano | Design: Juliana Caro | Ilustração: Rafa Miqueleto


O saco de pancadas pendurado na porta do escritório de Marion Nestle tem a forma de uma lata de Coca-Cola. Com 82 anos e um cabelão grisalho fofo e cacheado, a professora de nutrição da Universidade de Nova York admite não socar o dito-cujo com frequência: “não quero machucar minha mão”.

Já faz algum tempo, porém, que ela sai no braço com a indústria alimentícia. Nos livros Food Politics (2002) e Soda Politics (2015) – ambos sem tradução no Brasil –, Nestle explica como as gigantes dos comes e bebes manipulam agências reguladoras, dobram normas sanitárias, fazem lobby no Congresso e investem uma soma obscena em publicidade para fazer você comer mais, mais caro e pior.

Teoricamente, há uma pedra no caminho desse Leviatã da junk food: a ciência. Afinal, não é difícil confirmar que açúcar ou gordura saturada fazem mal se consumidos em excesso. Basta realizar experimentos, que provavelmente vão repercutir nos jornais. É por isso que empresas do porte da Unilever, da Kellogg’s ou da Kraft contra-atacam nos mesmos termos: destinam uma fatia de sua verba de publicidade a patrocinar estudos que tragam conclusões favoráveis a seus produtos – sempre com a maior discrição possível.

Marion Nestle – cujo nome, pronunciado “néssol”, não tem nada a ver com os chocolates Nestlé – é uma Sherlock Holmes desse tipo de financiamento: a cada sete dias, em seu blog, escreve a coluna “estudo patrocinado da semana”, em que seleciona um artigo científico e explica em que trecho, exatamente, está a parte enviesada. De 168 papers analisados entre 2015 e 2016, 156 traziam conclusões favoráveis aos produtos do patrocinador. Em seu lançamento mais recente, Uma Verdade Indigesta, Nestle costura esses casos e oferece um panorama daquilo que, ao seu ver, é marketing disfarçado de ciência.

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Às vezes, o viés é óbvio. Vide a notícia de “Comer chocolate e amêndoas reduz o risco de doenças cardiovasculares”, que bombou em fevereiro de 2018. Ela foi baseada em uma pesquisa publicada em 2017 no periódico Journal of the American Heart Association. Com o patrocínio da Hershey’s, fabricante de chocolate, e da Almond Board, organização dos produtores de amêndoas da Califórnia.

Em outros, é mais discreto. Há, por exemplo, o caso da Rede Global de Balanço Energético, grupo de pesquisa financiado pela Coca-Cola. Eles concluíram que dar 7,1 mil passos ao dia era suficiente para que os participantes de um estudo equilibrassem a ingestão de calorias. “Esta pode parecer uma pesquisa básica sobre fisiologia do exercício, mas implica que a atividade física – e nem tanta assim – é tudo o que precisamos para controlar nossa saúde. Independente de quanta Coca a gente tome”, explica Marion.

Por fim, há as comidas que já são consideradas “do bem” – mas mesmo assim se beneficiariam de um empurrãozinho publicitário para ultrapassar a concorrência. É assim que nascem os tais superalimentos – cujas propriedades nutricionais, ao menos de acordo com publicações sensacionalistas, beiram a utopia. Aconteceu com as romãs. um estudo patrocinado por uma empresa que vende suco e suplementos da fruta citava seu superpoder antioxidante – que então foi parar em anúncios.

“Concordo que a romã pode ter alta atividade antioxidante [ou seja, de retardar o envelhecimento celular]”, diz Nestle, “mas comparada a quê? O autor não diz. Sempre que vejo estudos que defendem os benefícios de um único alimento para a saúde, quero saber quem patrocinou, se os resultados são biologicamente plausíveis e se a análise levou em consideração o estilo de vida dos participantes” – por exemplo, se eles são ativos ou sedentários.

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O efeito colateral mais grave das pesquisas realizadas com financiamento privado é que elas tiram a credibilidade das pesquisas realmente confiáveis (pagas, por exemplo, com verba de agências de fomento públicas, como o CNPq e a Capes no Brasil). Sabe aquela impressão de que alimentos como ovo, leite ou carne em um dia são recomendados pelos médicos e, no outro, declarados inimigos da vida saudável?

Pois é: não é só impressão. Em muitas ocasiões, esse cabo de guerra surge porque os interesses de uma empresa do setor alimentício estão em conflito com as conclusões de um grupo de pesquisa independente – ou mesmo com os de outra empresa, que também financia os próprios estudos para argumentar na direção oposta. O jornalismo flutua ao sabor dessas idas e vindas – e o público leigo fica tão confuso que desiste de entender se uma comida é “do bem” ou “do mal”.

Nestle já se viu presa em várias polêmicas desse naipe. Certa vez, recebeu uma carta ameaçadora do advogado da Associação do Açúcar dos EUA. Ele ameaçava processá-la por afirmar que refrigerantes contêm… açúcar. “Como é amplamente sabido por especialistas no campo da nutrição, refrigerantes não usam açúcar (isto é, sacarose) há mais de 20 anos”, dizia a correspondência.

Na verdade, alegou o representante, o que adoça a bebida é uma substância chamada xarope de milho rico em frutose (high fructose corn syrup – ou HFCS). Trata-se de uma bomba calórica que passou a ser empregada pela indústria como substituto barato da sacarose a partir da década de 1980.

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Master of puppets.
Master of puppets. (Rafa Miqueleto/Superinteressante)

“Na realidade, tanto a sacarose como o HFCS são açúcares. É melhor, portanto, consumir qualquer um deles em pequenas quantidades. A meu ver, a diferença mais clara entre a sacarose e o HFCS é que eles são representados por associações comerciais diferentes, que estão em conflito entre si”, diz Nestle em Uma Verdade Indigesta. Em suma: o pessoal do açúcar de cana não quer ser associado ao pessoal do açúcar de milho – e vice-versa.

Casos assim dão a impressão de que os nutricionistas agem de má-fé – aceitando suborno abertamente e ignorando dilemas éticos. Não é bem assim que funciona. “Os efeitos do financiamento são reais, mas, normalmente, ocorrem em um nível inconsciente”, diz Nestle. Para afirmar isso, ela se baseia também em estudos de outras áreas. Por exemplo: uma revisão de mais de mil pesquisas da área biomédica realizada em 2003 calculou que pesquisadores com conexões no setor privado eram quase quatro vezes mais propensos a tirar conclusões favoráveis à indústria do que os que não tinham esses laços.

Outro estudo, este de 2000, vasculhou 500 documentos e descobriu que presentes, refeições, pagamentos de viagem e visitas de representantes estavam relacionados ao aumento de prescrições de remédios de certas marcas por médicos. O viés pode surgir em vários estágios da aplicação do método científico – que envolve formular uma hipótese, planejar um experimento capaz de confirmá-la ou refutá-la, realizar esse experimento e analisar seu desfecho.

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Às vezes, a empresa determina qual será a hipótese antes de distribuir a bolsa. Por exemplo: os produtores de abacate Haas – aquele clássico, verde pálido com uma enorme semente – ofereceram um julho uma bolsa de US$ 50 mil para financiar uma pesquisa sobre  possíveis associações entre abacate e diabetes. Um dos critérios é que “toda pesquisa em nutrição deve ser motivadora e pertinente para o público-alvo consumidor de maneira a apoiar a missão de aumentar o consumo de abacate nos EUA”.

É em frases assim que está embutido o viés: a proposta escolhida acaba sendo a que oferece maiores chances de favorecer o abacate. E os pesquisadores correm o risco de analisar as conclusões de uma maneira que ajuda a fruta (por exemplo, atribuindo um caráter positivo a um dado que não é negativo – perceba que “fazer bem” é diferente de “não fazer mal”).

“Escrevi esse livro um pouco para que meus colegas tenham mais consciência do problema. Boa parte dos nutricionistas vê as companhias de alimentos como parceiras”, diz Nestle.

Mas se até para os nutricionistas é difícil enxergar a influência da indústria nas pesquisas, que conselho dar para o público leigo? “É preciso usar o bom senso”, diz a cientista sobre o sensacionalismo nas notícias. “Se soa inacreditável, provavelmente é inacreditável. A ciência se move de forma incremental, em passos pequenos. Os grandes avanços são extremamente raros. Seja cético.”

E quanto a ter uma alimentação equilibrada, bem… essa é a parte mais fácil. Marion diz comer muitos vegetais, junk food de vez em quando e doces nem tão de vez em quando. “Comer de forma saudável é simples. Eu sigo o conselho do escritor Michael Pollan: coma comida, não muita, na maioria plantas.” S

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