Chernobyl – O dia em que a Terra tremeu
Entenda o que causou o acidente nuclear mais grave da história e conheça os bastidores da série da HBO sobre o caso e seus protagonistas.
Texto: André Bernardo | Edição de arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria
No dia 29 de novembro de 2016, TVs do mundo inteiro noticiaram a inauguração da nova cúpula de segurança do reator 4 da usina nuclear de Chernobyl, distante 130 km de Kiev, a capital da Ucrânia. Apelidada de “Arca”, a redoma de aço mede 108 m de altura, 250 m de largura e 150 m de comprimento.
Orçada em US$ 1,7 bilhão, a Arca tem espaço para abrigar um prédio de 36 andares. Pesando 36 mil toneladas, o domo foi construído sobre o antigo sarcófago de concreto, com o objetivo de impedir novos vazamentos radioativos. Passados 30 anos, a antiga estrutura de contenção, erguida em volta do que sobrou do reator que explodiu na madrugada de 26 de abril de 1986, à 1h23min40, durante um teste de segurança, apresentava rachaduras e ameaçava ruir.
A nova cúpula foi projetada para durar 100 anos. “Até hoje, os russos custam a acreditar no que aconteceu. Para eles, seus reatores nucleares estavam entre os mais seguros do mundo”, afirma o escritor e jornalista britânico Adam Higginbotham, autor de Midnight in Chernobyl: The Untold Story of the World’s Greatest Nuclear Disaster. “A hipótese de explosão era algo ridículo, impensável. Foi esse excesso de confiança que nos levou ao maior desastre nuclear de todos os tempos.”
O roteirista americano Craig Mazin, de 48 anos, foi um dos telespectadores que, naquela noite de 2016, assistiram às imagens transmitidas da antiga república soviética. Em sua casa em Pasadena, na Califórnia, não parou mais de pensar no assunto: “Se você perguntar a qualquer um como o Titanic afundou ou como JFK morreu, todo mundo vai responder. Mas, e Chernobyl?”.
Quando um dos quatro reatores da usina de Chernobyl voou pelos ares, lançando pedaços de grafite altamente radioativo sobre os arredores da usina e liberando uma nuvem tóxica, que se espalhou por 12 países da Europa e causou irreparáveis danos à saúde de seus habitantes, Mazin tinha acabado de completar 15 anos e cursava o ensino médio na Freehold High School, em Nova Jersey. Do que ele se lembrava? Praticamente nada.
Foi quando teve a ideia de escrever uma minissérie sobre o pior acidente nuclear da história. “Chernobyl é um misto de falha humana e erro de projeto. No início, a culpa foi atribuída os operadores. Passados alguns anos, o governo admitiu que uma falha no reator RBMK-1000 contribuiu”, explica Claudio Ubirajara Couto, da Associação Brasileira de Energia Nuclear (ABEN).
Últimos moradores
Daquela noite em diante, Craig Mazin aproveitou o tempo livre para pesquisar sobre Chernobyl. Viajou até a Ucrânia. Na zona de exclusão de 2,6 mil quilômetros quadrados criada ao redor da usina, visitou a cidade-fantasma de Pripyat e conversou com os últimos de seus 48 mil habitantes. Apesar do risco de contaminação, cerca de 150 pessoas, todas na casa dos 70 anos, ainda moram lá. São os chamados samosely. “A evacuação de Pripyat e de outros vilarejos vizinhos aconteceu somente 36 horas depois da explosão do reator”, afirma a física nuclear Emico Okuno, da Universidade de São Paulo (USP). “Pediram aos moradores que levassem apenas documentos, pertences e, por precaução, alguma comida. Disseram, também, que a evacuação seria temporária. Eles nunca mais voltaram.”
Um dos livros que Mazin leu para escrever a minissérie foi Vozes de Chernobyl – A História Oral do Desastre Nuclear, da bielorussa Svetlana Aleksiévitch. Resultado de 20 anos de pesquisas, o livro-reportagem levou a autora a visitar a região do acidente muitas vezes. Sempre que chegava à zona de exclusão, ouvia as mesmas recomendações: é proibido arrancar flores, sentar na relva ou beber água dos mananciais. Até os gatos, avisavam, deixaram de comer os ratos mortos. “A morte está por toda a parte”, descreve a autora.
Foi de Vozes de Chernobyl que Mazin tirou dois dos principais personagens: o bombeiro Vasily Ignatenko, de 25 anos, um dos primeiros a chegar à usina, e sua mulher, Lyudmilla, de 23. Naquele dia, Vasily não estava de plantão. Ele e a mulher viajariam para Bielorrússia, onde moravam os pais dele.
“No meio da noite, ouvi um barulho. Olhei pela janela. Ele me viu: ‘Há um incêndio na central. Volto logo’”, relata a viúva no livro. Vasily nunca voltou. Da usina, foi mandado direto para um hospital em Moscou, onde morreu 14 dias depois. Segundo dados oficiais do governo, Vasily Ignatenko é um dos 31 mortos no acidente nuclear de Chernobyl. Segundo estimativas extraoficiais, o número de mortos varia de 4 mil (segundo a Organização das Nações Unidas) a 100 mil (para o Greenpeace).
A própria Svetlana perdeu uma irmã, médica, e a mãe, professora, após a tragédia. Desconfia que as duas foram vítimas do acidente. Mas a inspiração para escrever o livro surgiu mesmo em 1988, quando recebeu um telefonema de Eduard Boríssovitch Korotkóv. Do outro lado da linha, um dos pilotos de helicóptero que sobrevoaram a usina, jogando uma mistura de boro, areia e chumbo sobre o reator em chamas, pediu a ela que fosse vê-lo depressa.
“Tenho pouco tempo de vida e gostaria de contar o que sei”, adiantou. Alguns de seus colegas já tinham morrido. Outros, tirado a vida. Os pilotos ficaram conhecidos como “Falcões de Chernobyl”. Não fossem eles, a tragédia teria sido muito pior.
Acidentes anteriores
Mas, afinal, o que aconteceu em Chernobyl? Como um simples teste de rotina desencadeou a maior tragédia nuclear da história?
O reator 4 da usina foi desligado na madrugada de 26 de abril, para que os técnicos pudessem avaliar por quanto tempo as turbinas continuavam girando em caso de corte de energia elétrica. O mesmo teste havia sido realizado no ano anterior, e os resultados tinham sido insatisfatórios. Novos componentes haviam sido instalados e precisavam ser submetidos a um novo teste.
Acontece que os operadores cometeram erros graves. Desativaram o mecanismo de desligamento automático do reator e desativaram metade das oito bombas de refrigeração. Ao perceber o problema, tentaram conter o dano lançando gás xenônio para dentro do reator. Não funcionou. Inseriram então hastes com boro. Tampouco adiantou. As reações atômicas dentro do reator saíram de controle e parte da água do sistema evaporou subitamente, gerando uma pressão que soltou a placa de cobertura do reator, que pesava mais de mil toneladas.
Seguiram-se duas explosões, sendo que a segunda lançou o grafite aquecido, altamente radioativo, para fora da estrutura do reator. O núcleo fundiu e pegou fogo. Demoraria dias para o incêndio ser contido graças ao esforço de pessoas como os Falcões de Chernobyl.
A falha dos operadores não foi a única causa do acidente. “Aquela não foi a primeira vez que um reator RBMK-1000 apresentou falhas”, afirma o doutor em Física Nuclear Luís Antônio Albiac Terremoto, do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). “Antes de Chernobyl, houve dois acidentes semelhantes na antiga URSS: um na Rússia, em 1975, e outro na Lituânia, em 1983. No entanto, nada fizeram para corrigir essas falhas. O acidente de Chernobyl poderia ter sido tranquilamente evitado.”
No momento do acidente, a usina utilizava quatro reatores desse gênero, desenvolvidos três décadas antes e que, somados, geravam 10% da eletricidade consumida pela Ucrânia na época. Mas o modelo se tornava instável quando operava em baixas potências, porque o grafite passava a gerar calor excessivo, capaz de transformar a água do interior do reator em vapor submetido a alta pressão. Nos anos que se seguiram ao acidente, os reatores RB-MK foram submetidos a revisões de segurança. A Rússia utiliza poucos desses modelos, mas eles agora são mais estáveis.
Fungos radioativos
Exibida entre 6 de maio e 3 de junho de 2019 pela HBO, a série Chernobyl arrancou aplausos até mesmo na Rússia. Poucos, verdade, mas arrancou. O político ucraniano Vladimir Medinsky é dos que elogiaram a produção. Seu pai, ainda vivo, foi um dos 600 mil “liquidadores” que, mesmo trabalhando em condições insalubres e sem roupas de proteção adequadas, evitaram o pior.
O ministro da Cultura do governo Putin, porém, não é regra. É exceção. Em geral, os russos não gostaram nada do que viram. Alegaram, em sua maioria, distorção dos fatos. Tanto que pretendem, eles mesmos, contar sua versão da história. A missão está a cargo do cineasta russo Aleksey Muradov que, em entrevista ao jornal mais lido da Rússia, o Komsomolskaya Pravda, declarou que o roteiro vai girar em torno do suposto envolvimento de espiões da agência de inteligência americana (CIA, na sigla em inglês) na tragédia. “Há uma teoria de que os americanos se infiltraram na usina de Chernobyl. Muitos historiadores não descartam a possibilidade de que, no dia da explosão, um agente dos serviços de inteligência do inimigo estivesse na estação”, discorreu o diretor.
“A KGB chegou a investigar a hipótese de atentado terrorista, mas nada descobriu”, afirma o historiador Serhii Plokhii, da Universidade de Harvard, e autor do livro Chernobyl – The History of a Nuclear Catastrophe (ainda inédito no Brasil). A verdade é que tentar jogar a culpa em espiões americanos não faz o menor sentido. “A suspeita de que há envolvimento da CIA no acidente tem mais a ver com a atmosfera política da Rússia de 2019 do que com a da antiga União Soviética de 1986”, diz ele.
A vida na região foi transformada pela tragédia. Em 2008, um grupo de pesquisadores identificou 37 espécies mutantes se desenvolvendo em Chernobyl, incluindo um fungo que se especializou em se alimentar de materiais contaminados. Apesar de todos os riscos, milhares de pessoas fazem turismo em Prypiat; só em 2019, a área já recebeu mais de 85 mil visitantes – que podem, inclusive, entrar na sala de controle onde tudo deu errado. É preciso ser maior de 18 anos e não se pode permanecer na sala por mais do que cinco minutos.