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Um campo de concentração no interior de Minas

A rotina de vida e morte no Hospital Colônia de Barbacena, onde o descaso das autoridades matou 60 mil pessoas.

Texto: Leonardo Pujol | Edição: Bruno Garattoni | Design: Estúdio Nono | Fotos:Arquivo Abril/Luiz Alfredo


À força, de trem, amontoadas, famintas. Era assim que a maioria das pessoas chegava àquele campo de concentração. O padrão de desembarque não mudava: conduzidos em fila indiana até a triagem, os indivíduos tinham roupas, calçados e objetos pessoais confiscados pelos guardas. Em seguida, eram separados de acordo com sexo, idade e características físicas. Os homens tinham o cabelo raspado e recebiam uniformes idênticos que, com o tempo, viravam trapos. Em vez de providenciarem roupas novas, os vigias obrigavam as pessoas a ficarem nuas, mesmo em noites geladas. Por esse motivo, era normal que dormissem aglomeradas nos pavilhões. Ou mesmo no pátio. Já a comida, tão ruim e escassa, desesperava os prisioneiros a ponto de fazê-los comer ratos e beber a própria urina. Os mais resistentes eram forçados a trabalhar como escravos. Muitos morriam. O ambiente parece com o dos campos nazistas de Auschwitz, na Polônia, construídos na década de 1930. Mas esse palco do terror ficava bem longe da Europa. Estava em Barbacena, cidade de 125 mil habitantes no interior de Minas Gerais.

“O que acontece no Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada. Tira-se o caráter humano da pessoa, e ela deixa de ser gente.” A afirmação é de Ronaldo Simões Coelho, médico que ajudou a denunciar o dia a dia do Hospital Colônia de Barbacena. Seu depoimento é um dos tantos recuperados pela jornalista Daniela Arbex no livro Holocausto Brasileiro, de 2013. A obra é um profundo mergulho na história do maior e mais brutal hospício do País. Nele, morreram pelo menos 60 mil pessoas.

O manicômio tinha 16 pavilhões distribuídos em uma área equivalente a um campo de futebol. A inauguração do complexo aconteceu em 1903. Naquela época, médicos e políticos optavam por construir instituições psiquiátricas fora de grandes centros urbanos. Nos anos seguintes, mais seis sanatórios foram instalados no município – o que levou Barbacena a ganhar o apelido de Cidade dos Loucos.

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Estima-se que só 30% dos internos tinham doenças mentais. Os outros eram homossexuais, negros, prostitutas e militantes políticos.

Projetado com apenas 200 leitos, o Colônia – como era chamado – chegou a abrigar 5 mil pessoas ao mesmo tempo. A maioria estava longe de sofrer de doenças mentais. Estima-se que apenas 30% delas sofriam de distúrbios psiquiátricos. O restante era formado por uma massa de “indesejados”: homossexuais, mendigos, negros, pobres, epiléticos, prostitutas, militantes políticos, mulheres confinadas para que seus maridos vivessem com amantes e até mesmo filhas de fazendeiros desvirginadas antes de casar. Longe da proposta inicial, o hospital cumpria a função de higienizar a sociedade. Isso se tornou ainda mais evidente a partir da década de 1930, quando Getúlio Vargas sancionou uma lei que permitia a internação compulsória “mediante simples atestação médica”.

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Genocídio sistemático

Conhecido como Cabo, Antônio Gomes da Silva foi uma das vítimas do Colônia. Desempregado e viciado em álcool, ele se meteu em uma série de confusões até ser preso, em 1969, aos 25 anos. Da cadeia, um delegado o encaminhou ao hospital psiquiátrico, onde ficaria internado por décadas. No local, Cabo foi submetido a todo tipo de tortura. Entre elas, sessões de eletroconvulsoterapia, nome dado ao tratamento de eletrochoque. O procedimento é feito com a colocação de eletrodos nas têmporas do paciente. Dali saem choques elétricos que provocam crises convulsivas, atenuando quadros de depressão, bipolaridade e esquizofrenia. Se Cabo estivesse mesmo doente, o eletrochoque faria sentido – até hoje o recurso é usado para fins terapêuticos. Mas no Colônia as sessões eram desumanas, sem anestesia, para intimidar os pacientes. De tão frequentes, as descargas chegavam a derrubar a rede elétrica do município. Para evitar que se debatessem, as pessoas tinham mãos e pés amarrados ao leito. Além disso, um pedaço de borracha entre os lábios impedia o sujeito de gritar e morder a língua. Durante o tratamento, muitos desmaiavam. Outros sucumbiam, sufocados ou vítimas de parada cardíaca.

Também era comum morrer de hipotermia ou pelas mais diversas doenças. Além de tomarem banhos coletivos em duchas geladas (quando havia permissão), muitos internos perambulavam sem roupas pelo pátio. “No começo, incomodava ficar nu, mas com o tempo a gente se acostumava”, relembra Cabo, que deixou o Colônia para viver em uma residência terapêutica, em Barbacena. Durante o dia, na tentativa de se aquecer, os pacientes ficavam aglomerados em grandes grupos. De tempo em tempo, os que estavam mais para dentro da roda iam para fora. E passavam horas assim, se revezando para que todos recebessem um pouco de calor. À noite, juntavam trapos para acender fogueiras. Dormiam empilhados, uns sobre os outros. Com a pele sempre exposta ao sol e ao frio, os corpos enchiam-se de feridas, atraindo moscas, ratos e até urubus, que ficavam à espreita. Entre as décadas de 1930 e de 1980, morreram no Colônia, em média, mil pessoas ao ano.

Os funcionários obrigavam os próprios internos a enterrar as pessoas que faleciam em covas rasas, num  cemitério ao lado do hospital. Mas pelo menos 1,8 mil corpos tiveram outro destino: foram vendidos para faculdades de medicina entre 1969 e 1980. Só a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) adquiriu 543 corpos. Cada um era vendido por cerca de 50 cruzeiros. Em valores corrigidos pela inflação, isso equivale a R$ 288. Ou seja, o Hospital Colônia de

Barbacena faturou pelo menos R$ 533 mil com a venda de corpos. Quando o negócio minguou, a instituição ofereceu um novo produto às faculdades: ossos. Para isso, a carne dos mortos era dissolvida em ácido, dentro de tonéis que ficavam à vista de qualquer um, no pátio, inclusive dos pacientes. E tudo isso acontecia sem que nenhum familiar tivesse autorizado o procedimento. Até porque nem teria como, já que a instituição sequer sabia quem era quem. A falta de organização começava quando a pessoa desembarcava no hospital. Naquele momento, ela tinha os documentos recolhidos e a identidade acabava se perdendo, relegada para sempre entre arquivos e gavetas. Os internos, então, eram rebatizados pelos funcionários. Foi assim que Antônio da Silva ganhou o apelido de Cabo.

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Gestão do holocausto

O café da manhã era servido às 8h, mas quem dormia nos pavilhões precisava acordar às 5h. Em seguida, uma multidão de sujeitos esquálidos preenchia o pátio. Fizesse chuva ou sol, frio ou calor, permaneciam ao relento até a hora de dormir – ociosos, sem fazer absolutamente nada além de ruminar e degenerar, física e mentalmente. Os mais fortes eram convocados para trabalhar no campo, plantando e colhendo milho, batata-doce, feijão e outros alimentos. A mão de obra dos internos também era usada na limpeza do hospital, no conserto de vias públicas, na preparação de doces. Nenhum deles recebia qualquer tipo de remuneração.

Todos os dias, a direção do Colônia disponibilizava 120 quilos de arroz e 60 quilos de feijão. Era tão pouco para alimentar 5 mil pessoas que o caldo do feijão tinha que ser encorpado com farinha de mandioca. Quando havia carne, uma raridade, os cortes eram feitos no chão. A comida tinha aspecto repugnante, além de ser rala e insossa. Na época de colheita de milho, o cardápio era levemente incrementado. O leite chegava em tambores, apenas uma vez por semana. Os internos podiam beber à vontade. Não por gentileza, mas porque os recipientes deveriam voltar vazios. Como não havia utensílios nem local para armazenagem no hospital, os funcionários permitiam que as pessoas ingerissem a bebida até vomitar. O que sobrava ia para o ralo. Facas e garfos eram proibidos, e todo alimento devia ser consumido em cumbucas de alumínio, individuais. Se alguém perdesse a sua cumbuca, não recebia outra – a solução era comer na mão.

Para abrigar uma população 25 vezes maior do que a capacidade, o Colônia abriu espaço trocando as camas por capim espalhado pelo chão. A degradação podia ser vista pelo pátio e pelos pavilhões: sem água encanada, as pessoas eram forçadas a beber e até a se banhar no esgoto a céu aberto. O fedor era insuportável. Mulheres grávidas que eventualmente dessem à luz no hospital tinham seus bebês recolhidos. Ao longo dos anos, várias crianças foram encaminhadas à adoção e nunca mais viram suas mães biológicas. “É compreensível que, depois disso, muitas mulheres tivessem, de fato, enlouquecido”, escreve Daniela Arbex. Uma dessas mulheres era Sueli Rezende. Dez dias após o parto da filha, ela teve a bebê arrancada de seus braços. Os prontuários do hospital mostram que Sueli lembrou de cada um dos 22 aniversários da garota – ela celebrava rezando. “Uma mãe nunca se esquece da filha, mesmo quando não está mais com ela”, dizia Sueli. A mulher ainda teve outra menina no hospital, também criada por uma família adotiva. A interna morreu sem jamais voltar a vê-las.

Outras crianças, cerca de 30, acabaram transferidas para o Colônia em 1976 – após o fechamento de um hospital infantil. O tratamento dado a elas era igual ao dos adultos, com eletrochoques, camisa de força, encarceramento. E morte. Numa manhã, uma funcionária recém-contratada pelo Colônia entrou na ala infantil e encontrou o corpo de um garotinho no chão, enrijecido, ao lado da cama. A mulher se desesperou. “Ele está morto, gente”, gritou. “Você vai ter que se acostumar. Acontece toda hora”, respondeu uma colega. O descaso, a loucura e a morte acompanharam o Hospital Colônia de Barbacena por gerações. A história de horror só veio a público em 1961, após uma reportagem publicada na revista O Cruzeiro. O Brasil se comoveu, os políticos prometeram dar fim à situação, mas quando o calor da notícia diminuiu tudo permaneceu como era. Quase 20 anos depois, o Colônia foi objeto de novas reportagens. A repercussão foi maior e ensejou a reforma psiquiátrica no Brasil – o começo do fim dos manicômios. Em 1980, o Colônia passou por uma reformulação. Foi transformado em hospital psiquiátrico e seguiu abrigando gente, mas não mais de forma desumana. 

Alguns pacientes foram transferidos para residências terapêuticas. Os sobreviventes tiveram que aprender coisas básicas – do uso do banheiro ao modo de usar talheres. Tentaram reconstruir suas vidas com o pouco de dignidade que receberam. É o caso de Sônia Maria da Costa. Ela chegou ao Colônia em 1961, aos 11 anos, rejeitada pela família que a criava. Ficou internada em hospícios por quatro décadas, até 2003. Acolhida em um programa federal, teve a identidade recuperada e, mesmo sem saber ler e entender os números direito, aprendeu a usar o dinheiro que recebe do benefício. Vaidosa, gosta de comprar brincos, batons, vestidos e sapatos. Um luxo para quem passou a vida inteira nua e descalça.

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