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Espionagem: a arte da traição

Com tecnologias avançadas e mentiras elaboradas, os espiões mudaram a história do mundo.

Por Rafael Kenski
Atualizado em 25 nov 2016, 12h12 - Publicado em 31 dez 2002, 22h00

Esta é uma matéria sobre a segunda profissão mais antiga do mundo. Em toda a história sempre existiram pessoas se esforçando para conseguir informações que lhes dessem vantagens e usando disfarces para iludir os outros. Enfim, sempre existiu quem praticasse a espionagem. Na Bíblia, por exemplo, o diabo se mascara de serpente e consegue convencer Eva a comer uma maçã proibida. Em outro episódio (Números, 13), Deus diz a Moisés que envie 40 agentes para espiar Canaã e obter informações sobre o terreno, os habitantes e as defesas que eles teriam contra invasões (perceba que até Deus, em sua onisciência, precisava de agentes secretos). A espionagem é praticada há tanto tempo que pode ser a primeira carreira inventada pelo ser humano. “A prostituição é supostamente a profissão mais antiga do mundo e seus praticantes também usam fraudes e disfarces.

Além disso, alguém sempre precisou obter informações a respeito da localização e da tarifa dos bordéis”, diz Antonio J. Mendes, ex-oficial da Agência Central de Inteligência americana (CIA) e consultor do Museu Internacional de Espionagem, em Washington, Estados Unidos.

Não fosse o esforço milenar do ser humano em passar a rasteira no adversário, muitas das tecnologias que hoje utilizamos – de satélites a redes de computador ou equipamentos eletrônicos portáteis – não existiriam. Tanto investimento em serviços de inteligência tem um motivo: os governantes sempre souberam que informações, verdadeiras ou falsas, representam poder. No século 13, o imperador mongol Gengis Khan utilizava espiões para facilitar a invasão de regiões na Europa oriental e na Ásia. Eles observavam as fraquezas e os planos dos habitantes e espalhavam entre eles o boato de que os invasores seriam piedosos se a cidade se entregasse sem resistir. Na verdade, os mongóis matavam a maioria dos homens que se rendiam. Onde havia resistência, eles massacravam todos.

Os primeiros espiões provavelmente eram viajantes que, ao voltar, reportavam o que haviam visto, mas a pouca quantidade de informações trazidas dessa forma logo fez surgir técnicas mais sofisticadas. Uma das primeiras pessoas a entender a enorme importância de conhecer em detalhes o inimigo (e impedir que ele conheça você) foi o estrategista chinês Sun-Tzu. Em sua obra A Arte da Guerra, escrita há mais de 2 500 anos, ele afirma que “um exército sem agentes secretos é como um homem sem olhos ou ouvidos”. Além de obter informações sobre as fraquezas do inimigo, um serviço de inteligência bem-feito precisa esconder dele o lugar onde pretende atacar. A estratégia obriga o adversário a se fortificar em muitos lugares e não ser especialmente poderoso em nenhum deles.

O trabalho de agentes secretos sempre envolveu traição e alto risco. Ser descoberto era quase certeza de uma condenação à morte e, para evitar problemas, logo se desenvolveram técnicas para garantir que os recados fossem transmitidos em segurança. A primeira era simplesmente esconder a mensagem – na Grécia antiga, por exemplo, o historiador Heródoto conta a história de um mensageiro que raspou a cabeça, escreveu a mensagem no couro cabeludo e esperou o cabelo crescer novamente. Outra técnica era usar tintas invisíveis – feitas de materiais orgânicos como extrato de plantas e até urina – que escureciam quando aquecidas e revelavam a mensagem.

A técnica era um tanto perigosa em mensagens que não poderiam de forma alguma cair em mãos inimigas. Nesses casos, o melhor era transmiti-las de forma cifrada, o que deu origem à ciência da criptografia. Os romanos da época de Júlio César adotaram um sistema em que cada letra do alfabeto era substituída por outra, de uma maneira acertada previamente. Apesar do número gigantesco de combinações, filósofos árabes descobriram, no século IX, um método para quebrar esse sistema. O segredo é pesquisar as letras mais comuns em cada língua e substituí-las pelos caracteres que aparecem com mais freqüência no texto decifrado.

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No mundo da espionagem, poucas coisas são mais úteis que quebrar o código de um adversário: de uma hora para outra, todos os espiões dele se transformam em agentes duplos, fornecendo dados a respeito das estratégias e da quantidade de informações que conseguiram reunir. Para evitar essa tragédia, surgiram códigos ainda mais complexos, em que palavras inteiras eram trocadas por símbolos ou em que o código mudava ao longo do texto. Mesmo assim, todo sistema de criptografia tem fraquezas que podem ser exploradas. “Os codificadores têm buscado criar códigos cada vez mais fortes para defender as comunicações, enquanto os decifradores inventam métodos mais poderosos para atacá-los”, diz o físico Simon Singh em O Livro dos Códigos.

Os agentes, no entanto, são apenas uma das formas de obter informações. Durante as Guerras Napoleônicas, os franceses empregaram uma nova arma para saber o que acontecia além do horizonte: balões. O primeiro serviço militar aéreo, inaugurado em 1794, permitia que generais subissem em balões de hidrogênio e acompanhassem os movimentos da batalha de uma posição privilegiadíssima. Além disso, qualquer camponês poderia fornecer informações sobre o movimento dos exércitos, o local dos acampamentos e os equipamentos que carregavam. Generais ingleses pagavam altas somas por quem trouxesse informações interessantes a respeito do exército de Napoleão, o que também tem seus riscos. “Lidar com diferentes fontes de informação traz o problema de saber quais são confiáveis”, afirma David Owen, autor do livro Hidden Secrets (“Segredos escondidos”, inédito no Brasil). O agente pode estar trabalhando para outros governos como também pode ter sido descoberto e estar recebendo apenas as informações que interessam ao adversário

Os segredos trazidos pelos espiões também podem fazer parte de uma grande farsa. Um dos golpes mais célebres foi dado em 1704 pelo general inglês John Churchill, duque de Marlborough. Ele pretendia invadir a França mas, antes, era preciso atravessar o rio Reno, na atual Alemanha. Ele o cruzou em uma ponte feita com barcos e mandou construir outra, muito melhor, mais de 190 quilômetros acima. O general francês tomou conhecimento da nova passagem por meio de um de seus espiões e mandou para lá suas tropas. Quando os franceses perceberam o erro, Marlborough estava a mais de 800 quilômetros dali, preparando-se para uma vitória fácil contra o exausto exército francês, que precisou correr atrás dos invasores.

Todas as modalidades da arte de espionagem se desenvolveram intensamente no século XX. Não era para menos: duas guerras mundiais forçaram países de todo o mundo a buscar o máximo de informações sobre os seus vizinhos. Quando elas acabaram, a disputa por áreas de influência entre Estados Unidos e União Soviética transformou os espiões em verdadeiros soldados: grande parte da Guerra Fria consistia em conhecer a verdadeira capacidade do adversário e saber quais seriam as conseqüências de um ataque.

As principais nações não tiveram muita dificuldade para conseguir agentes. Os russos encontraram com facilidade espiões entre os simpatizantes do comunismo em todo o mundo. Por outro lado, dissidentes do socialismo e do nazismo garantiam informantes valiosos a países como Estados Unidos e Inglaterra. Mesmo assim, a necessidade de ter informações era tanta que, a partir dos anos 50, a CIA criou formulários para que turistas com destino à União Soviética reparassem em alguns detalhes ao longo da viagem, como a cor da fumaça na chaminé de uma fábrica ou os códigos do avião em que voavam. “Era uma espécie de espionagem para as massas”, afirma David Owen.

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Até mesmo defuntos foram usados como espiões. Na Segunda Guerra Mundial, as forças aliadas na África pretendiam invadir o sul da Europa a partir da Sicília, mas queriam dar aos alemães a impressão de que o ataque aconteceria na Grécia. Como, na época, os documentos mais importantes eram levados por agentes algemados às suas valises, os aliados simularam a queda no mar de um avião com um mensageiro a bordo. Pegaram um defunto, colocaram credenciais de oficial em seu bolso e o amarraram a uma valise com cartas, dados bancários e uma série de documentos que afirmavam que a invasão da Sicília havia sido substituída por um ataque à Grécia. O corpo foi deixado próximo à praia por um submarino e encontrado pelos alemães. Como resultado, a resistência à invasão foi mínima.

Os equipamentos usados pelos agentes se sofisticaram muito ao longo do século. Registrar conversas, lugares e documentos sigilosos ficou mais fácil com a invenção de máquinas fotográficas e microfones. Em 1953, por exemplo, quando os americanos construíram uma embaixada em Moscou, os russos se adiantaram e esconderam mais de 40 microfones no prédio – até no selo do governo americano, pendurado na parede atrás da mesa do embaixador.

Surgiram também novos meios de transmitir a informação até os oficiais. Uma técnica de muito sucesso durante a Segunda Guerra, chamada microponto, utilizava a fotografia para reduzir uma página de texto a um filme com menos de 1 milímetro de diâmetro, que podia ser escondido no ponto final de uma carta e transportado. O rádio, por sua vez, permitiu que as mensagens fossem passadas de qualquer lugar, sem a necessidade de uma rede de mensageiros. Ele tinha, no entanto, duas grandes fraquezas: aparelhos capazes de medir a intensidade do sinal conseguiam localizar o local da transmissão e, além disso, o recado poderia ser interceptado por qualquer um, o que obrigava os espiões a criptografá-lo.

Para que as mensagens não fossem lidas, surgiram sistemas capazes de mudar as freqüências da voz durante uma transmissão de rádio ou telefone, a ponto de torná-las incompreensíveis. Na maioria das vezes, no entanto, as medidas eram mais simples. Nas batalhas da Segunda Guerra no oceano Pacífico, americanos empregavam índios navajos como operadores de rádio. A etnia utiliza uma língua extremamente complexa, quase impossível de ser entendida por pessoas não nascidas na tribo (apenas 28 antropólogos ou missionários haviam conseguido aprendê-la). Além disso, na maioria das vezes os nativos conheciam uns aos outros e saberiam identificar uma farsa. Os alemães, por sua vez, submetiam a maior parte de suas comunicações a uma máquina chamada Enigma, capaz de codificar mensagens utilizando sinais elétricos.

Cada letra passava por uma seqüência de três ou quatro rotores que mudavam de posição quando acionados – apertar a tecla A várias vezes seguidas resultaria em uma longa seqüência de letras diferentes. A mensagem só poderia ser decodificada por quem tivesse outra máquina e soubesse a configuração inicial dos rotores. Mesmo assim, os ingleses investiram contra as fraquezas do sistema e, com a ajuda de computadores, conseguiram decifrar as mensagens.

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Esconder segredos ficou especialmente difícil com a invenção dos aviões. Fotos aéreas tiradas em vários ângulos e tipos de filme revelavam até as defesas mais escondidas do inimigo. Nos anos 50, os americanos desenvolveram o primeiro avião-espião, o U2, que voava a mais de 20 quilômetros de altura, muito acima das defesas antiaéreas da época. Quando, a partir de 1960, caças e mísseis chegavam a essa altitude, foram desenvolvidos aviões velozes como o SR-71, três vezes mais rápido que o som.

Para driblar a espionagem aérea, a solução era investir em técnicas de camuflagem. Armas podiam ser cobertas com folhas, tanques disfarçados de caminhões e prédios serem pintados com tintas especiais. Também era possível fazer o adversário ver o que não existia – uma estratégia que foi essencial no desembarque das forças aliadas na Segunda Guerra. Para não revelar que a invasão aconteceria na Normandia, ingleses e americanos fizeram tanques, caças e armas falsas, feitos de madeira e pano, e os colocaram próximos a um outro alvo possível. Os aviões viram ali uma concentração de forças típica de uma invasão. Junto com o trabalho de agentes duplos agindo entre os alemães, o truque permitiu que a invasão fosse bem-sucedida.

O jogo entre visão aérea e camuflagem ganhou ainda mais força quando os satélites começaram a operar acima do alcance de qualquer defesa. Eles também deram impulso a um novo tipo de espionagem, baseado nas telecomunicações. O Parlamento Europeu divulgou, em julho do ano passado, um relatório em que denuncia uma enorme rede de espionagem eletrônica feita pelas agências de inteligência dos Estados Unidos, Inglaterra, Nova Zelândia, Canadá e Austrália. Apelidada de Echelon (escalão), ela utilizaria satélites-espiões, grampos em cabos submarinos, aparelhos de escuta em embaixadas e receptores de rádio para enviar dados para as centrais desses países. As informações seriam filtradas por sistemas eletrônicos e apenas uma pequena parte do fluxo de informações – a mais promissora – seria analisada por agentes humanos. Ao contrário da espionagem com fins militares feita até então, o Echelon se concentraria em comunicações privadas e comerciais.

Sob o pretexto de evitar o suborno de autoridades estrangeiras, os donos da rede estariam bisbilhotando os planos de grandes empresas e até roubando segredos industriais. Mesmo assim, os Estados Unidos até hoje negam a existência do Echelon.

Os atentados de 11 de setembro de 2001 trouxeram um novo problema para as agências de inteligência. Organizações terroristas são fechadas e recrutam seus participantes em um círculo muito pequeno de pessoas. Isso dificulta a infiltração de agentes no grupo e, para piorar, programas simples e baratos de criptografia podem garantir um nível bastante seguro nas comunicações entre os membros espalhados por todo o mundo. Para sair do impasse, o governo americano chegou a propor a criação de um banco de dados que reunisse informações – como compras com cartão de crédito, e-mails, páginas visitadas na internet e diplomas obtidos – de todos os cidadãos, em busca de padrões que se assemelhassem ao de um terrorista. O projeto dá uma idéia da grandeza e das possibilidades hoje à disposição dos serviços de inteligência, mas foi abandonado em novembro, depois de uma forte reação da sociedade, que vê nela uma ameaça à privacidade.

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As tecnologias de espionagem mais avançadas de hoje provavelmente estão escondidas – por sua própria natureza, elas só se tornam conhecidas quando falham ou se tornam obsoletas. Uma amostra de como ela é praticada hoje veio a público no início de 2001. Robert Hanssen, um alto funcionário do FBI, foi pego e acusado de trabalhar para os russos em troca de dinheiro. Durante grande parte dos seus 27 anos de serviço na agência, ele teria entregado vários dados sigilosos, entre eles a identidade de três agentes duplos a serviço dos americanos chamados de volta à Rússia (dois deles foram executados e o terceiro, preso). Hanssen armazenava alguns dados em computadores de mão tipo Palm e, às vezes, fazia contatos por meio de redes de computador, mas a maior parte das informações era transmitida com uma das técnicas mais antigas que se conhece: pacotes deixados em parques ou embaixo de pontes.

É muito difícil saber qual é o futuro das tecnologias de espionagem. Já é possível, por exemplo, esconder mensagens no DNA de alguns organismos, mas não sabemos se alguém conseguiu usar a técnica com sucesso. Pode ser que algum governo tenha computadores muito mais potentes que os atuais, capazes de quebrar em pouco tempo os métodos de criptografia utilizados. Também pode ser que as agências estejam presas a uma enorme estrutura burocrática e sejam muito menos eficazes do que imaginamos. A única certeza é que, qualquer que seja a tecnologia usada, sempre existirão pessoas dedicadas a passar anos disfarçadas, a trair seus empregadores e a entregar informações de valor incomensurável ao inimigo.

Heróis desconhecidos

Os maiores espiões da história provavelmente eram tão bons que nunca vieram a público. Abaixo, alguns dos principais agentes que se tornaram conhecidos

Juan Pujol

Um dos mais bem-sucedidos agentes duplos da história, foi contratado pelos alemães durante a Segunda Guerra e, depois, ofereceu seus serviços aos ingleses. Teve um papel fundamental para despistar os nazistas durante o desembarque aliado na Europa.

Chevalier D’Eon

Contratado como espião francês em 1754, passava tanto por homem quanto por mulher com a mesma facilidade. Com seus truques, conseguiu por duas vezes que os russos rompessem com a Inglaterra e se aliassem à França.

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Harry Gold

Trabalhou como o principal contato dos soviéticos com uma rede de cientistas infiltrados nos projetos atômicos americanos. Graças ao sucesso do seu trabalho, os soviéticos conseguiram pular várias etapas no desenvolvimento da bomba atômica.

Oleg Penkovskiy

Tido pelos russos como um de seus agentes mais confiáveis, começou a colaborar com o governo britânico a partir de 1961 por acreditar que os russos levariam o mundo a uma guerra mundial. Passou detalhes a respeito de mísseis russos, mas acabou descoberto e executado.

Círculo de Cambridge

Um quinteto de estudantes da Universidade de Cambridge, Inglaterra, liderado pelo professor Anthony Blunt, que viraram espiões soviéticos por serem simpáticos ao comunismo. Nos anos 40 e 50, assumiram cargos em embaixadas e serviços de inteligência ingleses e americanos.

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