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A experiência mais comentada, polêmica – e furada – de todos os tempos

Realizado em 1971, ele chocou a sociedade, transformou a filosofia, trouxe a resposta para um enigma milenar. Só tinha um problema: era armação.

Por Tiago Cordeiro e Bruno Garattoni
Atualizado em 7 Maio 2020, 22h44 - Publicado em 24 jul 2018, 14h11
A experiência mais comentada, polêmica -e furada- de todos os tempos
(Marcus Penna/Superinteressante)

Todo ser humano nasce bom, mas acaba sendo corrompido pela sociedade? Ou todo mundo nasce egoísta e mau, e a sociedade só reflete isso? Essa é uma das maiores e mais polêmicas discussões da história da filosofia. Em 1642, o filósofo inglês Thomas Hobbes defendeu a tese da maldade essencial (“o lobo é o lobo do homem”). E foi contestado, no século seguinte, pelo suíço Jean-Jacques Rousseau, que pôs a culpa na sociedade (com sua tese do “bom selvagem”).

Em 1971, uma experiência realizada na Universidade Stanford parecia comprovar, sem margem de dúvida: Rousseau tinha razão. A maldade seria uma construção social, e o ambiente uma força capaz de transformar qualquer pessoa, até a mais bondosa, em sádica. O Stanford Prison Experiment (SPE), como o teste ficou conhecido, se tornou o estudo de psicologia mais influente de todos os tempos. Ao longo das décadas seguintes, foi citado em centenas de trabalhos científicos, analisado em dezenas de livros, recontado em mais de dez filmes e documentários. Seu autor, Philip Zimbardo, virou celebridade e referência no estudo dos instintos humanos. Mas havia um grande porém: na verdade, ele havia manipulado tudo.

A cadeia experimental

A experiência começou no dia 15 de agosto, um domingo, no porão da faculdade de psicologia de Stanford, onde havia sido construída uma pequena prisão, com três celas. Nove voluntários, estudantes que tinham se candidatado a participar, foram presos de manhã, fichados, vestidos com uniformes de presidiário e trancados nas celas. Outros 12 voluntários, também estudantes, fizeram o papel de guardas, que se revezavam em turnos. Todos os participantes eram homens, passaram por testes psicológicos prévios e não usavam nenhuma droga. Cada voluntário receberia o equivalente a US$ 90, em valores atuais, por dia. O teste estava previsto para durar duas semanas.

No primeiro dia, nada de anormal aconteceu. No segundo, os prisioneiros se rebelaram: empilharam as camas na parede e deixaram de responder às ordens dos carcereiros, que reagiram descarregando um extintor de incêndio sobre os presos. Aí a coisa degringolou.

Os guardas começaram a castigar fisicamente os detentos, que foram obrigados a pular e fazer exercícios, e proibidos de urinar ou defecar (a não ser em um balde dentro da cela, que não era permitido esvaziar). No terceiro dia, um deles teve um surto psicótico. Os guardas tomaram os colchões, obrigando os presos a dormir no chão de concreto – alguns deles nus. Forçaram os prisioneiros a participar de contagens sem sentido, inclusive no meio da madrugada, a cantar hinos repetitivos e a engraxar seus sapatos (que os agentes sujavam novamente).

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A gota d’água foi uma noite em que os detentos tiveram que andar em roda, um atrás do outro, simulando sexo anal. Zimbardo percebeu que a situação estava indo longe demais e resolveu encerrar o teste, depois de seis dias. Os carcereiros ficaram desapontados; estavam adorando tudo.

Zimbardo apresentou tudo como prova da sua tese: nas condições certas, qualquer pessoa se tornaria capaz dos piores gestos de crueldade. Um voluntário em especial, David Eshelman, chamou a atenção. Universitário e filho de um professor de engenharia de Stanford, ele se destacou por criar as punições mais cruéis, como exigir que os presos fizessem flexões com outra pessoa sentada sobre suas costas (foi dele a brincadeira de andar em roda).

Após a divulgação dos resultados do estudo, Zimbardo se tornou uma figura muito popular – as rebeliões de presos em San Quentin (Califórnia) e em Attica (Nova York), ambas em 1971, aumentaram o interesse sobre seu trabalho. Em 2003, quando agentes da CIA torturaram detentos da prisão de Abu Ghraib, no Iraque, o caso foi comparado com o experimento de Stanford. Década após década, a realidade confirmava a teoria de Phil Zimbardo.

Foi assim até junho de 2018, quando tudo desmoronou.

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A experiência mais comentada, polêmica -e furada- de todos os tempos
(Marcus Penna/Superinteressante)

O lobo oculto

Vasculhando os arquivos da Universidade Stanford, o pesquisador americano Ben Blum encontrou gravações até então desconhecidas, que registraram pontos cruciais da experiência. E elas pintavam um cenário totalmente diferente. A crueldade dos carcereiros não havia surgido naturalmente, como consequência do poder que tinham. Pelo contrário: eles foram orientados a agir daquela forma.

Antes do início do teste, os pesquisadores selecionaram quais participantes fariam o papel de guardas e quais seriam os detentos. Os guardas foram convidados para uma reunião de orientação na véspera. Ali, receberam uma lista com 17 regras de conduta – 11 delas, aliás, copiadas de um experimento muito parecido (e bem menos famoso), realizado três meses antes, também em Stanford, por um estudante de Phil Zimbardo chamado David Jaffe. As regras indicavam que os presos andariam com correntes presas ao pé e deveriam ser submetidos a rotinas humilhantes. Ou seja: os participantes do estudo sabiam os objetivos da pesquisa e o que se esperava deles. Era um jogo de cartas marcadas, com papéis pré-definidos.

“Minhas instruções para os guardas eram de que eles deveriam manter a lei e a ordem e também exigir o respeito dos presos. Os guardas deveriam ter quase todo o poder e os prisioneiros, quase nenhum”, afirma Zimbardo em nota à SUPER.

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Mas tudo indica que as orientações iam além disso. Há poucos registros da experiência – apenas seis horas de vídeo e oito de áudio, das quase 150 horas que durou a pesquisa. Mas alguns deles comprovam claramente que os voluntários eram orientados a atuar de forma violenta.

“Nas gravações, um membro da equipe de pesquisadores de Zimbardo [seu aluno David Jaffe, o mesmo que organizara um estudo parecido meses antes] fala com um participante que recebeu o papel de guarda”, explica David Amodio, que é psicólogo na Universidade de Nova York e estuda as bases neurológicas do comportamento social. “Ele [o tal guarda] não estava sendo duro o suficiente com os detentos”, prossegue Amodio. “O assistente então tentava convencê-lo a entrar no papel, orientava como ele deveria agir e usava como argumento o impacto que a experiência poderia ter numa eventual reforma prisional.”

O autor do estudo se defende – mas, ao fazer isso, acaba admitindo o problema. “David Jaffe, no papel de carcereiro-chefe, chamou um dos guardas de lado e o repreendeu por não ser ‘duro’. [Mas] não disse como ele deveria ser duro”, diz Zimbardo. O problema é que, mesmo que não tenha dito ao guarda exatamente o que fazer, o pesquisador influenciou o comportamento dele.

“O experimento é uma mentira, pois Zimbardo manipulou a forma como ele foi conduzido e narrado”, diz o economista francês Thibault Le Texier, professor da Universidade de Nice e autor de um novo livro sobre o caso, Histoire d’un Mensonge (“História de uma mentira”, não lançado em português).

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Os carcereiros receberam uma instrução clara: eles tinham que agir com crueldade contra os presos, pois isso ajudaria o estudo a provar sua principal teoria

A divulgação dos resultados também foi questionável. Para que seja aceito pela comunidade científica, qualquer estudo precisa ser submetido à chamada “revisão por pares”: especialistas no tema leem o trabalho, analisam seus métodos e conclusões, e dizem se ele tem validade ou não. Com o Stanford Prison Experiment, isso nunca ocorreu. “Meus colegas e eu publicamos muitos artigos sobre a experiência em uma série de jornais e livros, tanto para audiências acadêmicas quanto para o público em geral”, diz Zimbardo, sem responder diretamente à questão.

O ponto mais crítico é que, desde a década de 1970, outros estudos tentaram reproduzir a experiência de Stanford, mas não alcançaram os mesmos resultados. O mais famoso foi realizado em 2002, e publicado no British Journal of Social Psychology. Alguns guardas se tornaram violentos, mas outros não apresentaram nenhum sinal de sadismo.

“Os resultados [do teste britânico] parecem desafiar o estudo de Stanford porque os guardas demonstraram pouca violência. Na verdade, aconteceu o contrário. Os prisioneiros dominaram os guardas”, afirma  Zimbardo. Segundo ele, isso é prova de que ambos os estudos teriam chegado à mesma conclusão. Não é bem assim. No experimento inglês, houve casos pontuais de agressividade, sem domínio explícito de nenhum lado.

Em suma: a conclusão do Stanford Prison Experiment não se sustenta. A sociedade não é capaz de corromper qualquer pessoa e torná-la má; muita gente permanece boa, mesmo nas condições mais sinistras. O comportamento humano é mais complexo do que qualquer teoria filosófica – mesmo quando vinda de mentes tão brilhantes quanto as de Hobbes e Rousseau. Ou da experiência mais ousada, e agora sabidamente furada, de todos os tempos.

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