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A infância oculta de Jesus

Textos apócrifos sobre os primeiros anos do Nazareno retratam um garoto de pavio curto - e revelam crenças do cristianismo primitivo.

Por Reinaldo José Lopes
Atualizado em 31 out 2016, 19h04 - Publicado em 13 Maio 2016, 18h45

Uma das características mais frustrantes dos Evangelhos canônicos – os quatro que foram incluídos no Novo Testamento – é a relativa economia de informações. Os autores simplesmente não se preocupam em escrever como um biógrafo de hoje, que toma o cuidado de descrever toda a vida de seu personagem com o máximo possível de detalhes. Os evangelhos de João e Marcos retratam Jesus como adulto logo de cara, como se ele tivesse surgido do nada. Mateus e Lucas até relatam histórias sobre o nascimento e a infância de Cristo, mas há um imenso buraco nessas narrativas: vemos Jesus bebezinho, depois temos um breve relato de uma passagem triunfal pelo Templo de Jerusalém, aos 12 anos de idade – e acabou. Nada mais se fala sobre o Jesus criança, adolescente ou de 20 e poucos anos.

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Essa escassez de informações estimulou todo tipo de hipótese estapafúrdia (na linha “Jesus foi estudar budismo no Tibete dos 12 aos 30 anos”). Mas os primeiros cristãos não resistiram à tentação de imaginar como era Jesus “antes da fama”, ou de especular sobre a vida miraculosa de Maria e José antes de eles se tornarem a célebre Sagrada Família. É essa curiosidade que estimulou a criação dos chamados evangelhos apócrifos da infância: o Evangelho da infância de Tomé e o protoevangelho de Tiago (o prefixo “proto-” se refere ao fato de que boa parte do texto versa sobre o nascimento e a infância da Virgem Maria; anterior portanto ao nascimento de Jesus).

Especialistas como bart Ehrman, professor de história do cristianismo antigo da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill (EUA), consideram que esses textos são uma forma cristã de midrash, como são conhecidas as narrativas judaicas que”completam” histórias do Antigo Testamento, como episódios das vidas de Abraão e Moisés que não estão descritos na bíblia.

No fundo, é um fenômeno não muito diferente das atuais fan fictions na internet – histórias escritas por fãs sobre personagens criados por outros autores; e que podem falar sobre a velhice de Harry poter ou a infância de sherlock Holmes. Curiosamente, talvez por versarem sobre um momento, esses apócrifos não estão cercados pela mesma fama de”herege” associada a outros textos não canônicos. Muito ao contrário, aliás: embora não constem da bíblia, os apócrifos da infância estão na origem de algumas das tradições mais queridas dos cristãos sobre a sagrada Família. os nomes dos pais de Maria (Joaquim e Ana) só aparecem nos apócrifos.

E são Joaquim e santa Ana são venerados a ponto de serem nome de cidade no brasil – e de estação de metrô em são paulo. o presépio também é apócrifo: não há na bíblia a menção de um boi e de um jumento no local onde Jesus nasceu. Há uma série de pistas indicando que tais narrativas são mesmo um tipo de midrash, e não relatos históricos independentes. os apócrifos da infância tendem, por exemplo, a apresentar histórias mais detalhadas e mais sensacionais, em oposição ao estilo relativamente contido e seco dos textos canônicos.

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Além disso, escorregam mais nos detalhes históricos e culturais – o conhecimento dos autores sobre costumes judaicos e geografia da Judeia, por exemplo, muitas vezes é sofrível. Finalmente, tendem a reciclar nomes próprios de personagens dos evangelhos canônicos e até trechos inteiros da narrativa, praticamente palavra por palavra (é o caso da conversa entre o anjo Gabriel e Maria no protoevangelho de Tiago, que o autor”copiou e colou” do Evangelho de Lucas).

Enquanto os polêmicos evangelhos gnósticos (leia mais sobre eles na página 22) só foram recuperados por golpes de sorte no século 20 e existem em apenas um ou dois manuscritos, tendo sido provavelmente ocultados ou mesmo destruídos por ordem da hierarquia cristã, os textos não canônicos que funcionam como”álbum de família” do Nazareno foram preservados em numerosas cópias e são estudados pela comunidade acadêmica há séculos. Esses manuscritos chegaram até nós em diversas línguas, das mais comuns na idade Média (latim e grego) às mais exóticas, como idiomas da Etiópia, da Europa oriental e da Geórgia. É o sinal mais claro de sua popularidade. Mas nem tudo são flores quando falamos desses textos – ao menos do ponto de vista do leitor moderno.

Os que abordam a vida de Maria têm, às vezes, uma obsessão quase ginecológica pela virgindade da mãe de Jesus. E o menino divino retratado por eles nem sempre é o que chamaríamos de bonzinho, usando seus poderes para fins aparentemente questionáveis. É essa a imagem temperamental do menino Jesus que o Evangelho da infância de Tomé, provavelmente escrito em meados do século 2, acaba traçando. A maior parte da história se passa no Egito, onde a sagrada Família havia se refugiado quando José ficou sabendo, graças ao aviso de um anjo, que o rei Herodes estava decidido a matar o menino Jesus. o pequeno Messias, tendo escapado desse perigo, parece ter resolvido descontar a perseguição nos coleguinhas.

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BULLYING

Veja-se, por exemplo, o que aconteceu quando um menino começou a desfazer as represas de brinquedo que o garoto divino tinha feito na beira de um riacho:”Jesus, então, irritou-se quando viu o que tinha acontecido e disse a ele: ‘Tolo injusto e irreverente! o que as poças d’água fizeram para te irritar? Eis que agora também tu secarás como uma árvore, e nunca terás nem folha, nem raiz, nem fruta’. No mesmo instante, o menino secou completamente”.

E essa não foi a única vítima entre os garotos da região.”Algum tempo depois, Jesus caminhava pelo vilarejo quando uma criança passou correndo e esbarrou em seu ombro. irritado, Jesus disse: ‘Não seguirás mais o teu caminho’. Naquela mesma hora, a criança caiu e morreu.” o menino divino ainda faz os aldeões que vão reclamar dele com José ficarem cegos e amaldiçoa um de seus professores. Por outro lado, ressuscita um amiguinho que caiu do telhado de uma casa, cura pessoas e faz a madeira crescer milagrosamente para que José consiga terminar um de seus trabalhos de carpintaria.

Levando em conta essa sucessão de histórias amalucadas, alguns especialistas, como o franco-alemão Oscar Cullman (1902-1999), quase chegam a agradecer a deus pela não inclusão do Evangelho da infância de Tomé no Novo Testamento – para Cullman, o texto sofria de”falta de bom senso, controle e discrição”. Apesar desses defeitos, uma das explicações para a popularidade da história, avalia bart Ehrman, é a própria concepção que as pessoas tinham sobre a infância na Antiguidade.

Explica-se: diferentemente de nós, os habitantes do império romano não acreditavam que as pessoas adquirissem lentamente suas personalidades e características ao longo da vida. para eles, um futuro rei, guerreiro ou filósofo manifestava desde sempre as qualidades de quem assumiria esses papéis na vida adulta.

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Retratar um Jesus superpoderoso desde pequeno era uma forma de prefigurar os poderes divinos do Nazareno quando crescido para audiências impérioromano afora. Seguindo esse raciocínio, as ações aparentemente violentas e arbitrárias do menino Jesus seriam apenas um sinal de como ele usaria sua potência sobre-humana para enfrentar as forças do mal.

A VIRGINDADE DE MARIA

No caso do protoevangelho de Tiago, a motivação do midrash talvez tenha sido outra: nada menos que a defesa da honra da Virgem Maria. É que, conforme as décadas passavam e os cristãos deixavam de ser uma minúscula seita judaica para se tornar um grupo razoavelmente numeroso e barulhento na sociedade do império romano, pensadores pagãos começaram a prestar atenção no movimento – e a tentar derrubá-lo por meio da sátira. Um desses polemistas anticristãos, chamado Celso, que escreveu nas últimas décadas do século 2, usou as histórias sobre o suposto”nascimento virgem” de Jesus para ridicularizá-lo.

Na verdade, dizia Celso, Maria teria concebido ao ser seduzida por um soldado romano, chamado pantera, e inventou a história do anjo para enganar o pobre José. Celso ainda aproveitou para apontar a condição humilde da família de Jesus: além de José ser um carpinteiro, Maria teria de trabalhar como tecelã para ganhar a vida. Ninguém de extração tão baixa poderia ser filho de um deus, argumentava o polemista pagão.

Os apócrifos contra-atacam afirmando que Joaquim, pai de Maria, era na verdade o homem mais rico da Judeia e que José, longe de ser um mero fabricante de cadeiras por encomenda, era um próspero empreiteiro (o termo grego que normalmente traduzimos como carpinteiro também pode ser equivalente a”construtor”, daí essa interpretação). de quebra, a virgindade de Maria é colocada acima de qualquer suspeita, com os evangelhos apócrifos contando como ela foi mandada por seus pais para viver no Templo de Jerusalém desde os três anos de idade, fiando a preciosa cortina do Templo (e não a roupa de reles mortais) e sendo alimentada pela mão de um anjo.

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Na ânsia de ressaltar a pureza de mãe de Jesus, esses textos cometem uma série de absurdos históricos, como a afirmação de que ela teria sido criada no chamado santo dos santos – a área mais sagrada e inacessível do Templo de Jerusalém, na qual, na verdade, só o sumo sacerdote judeu podia entrar, e num único dia do ano, o Yom Kippur ou dia do perdão. o ponto culminante da narrativa é a cena, um tanto constrangedora para as sensibilidades de hoje, na qual uma parteira cética chamada Salomé coloca seu dedo na genitália de Maria para se certificar que, de fato, ela não havia perdido sua virgindade ao dar à luz o salvador. Salomé é punida por deus por sua falta de fé: sua mão começa a queimar, mas ela se salva tocando o menino Jesus e adorando o pequeno Messias, seguindo as instruções dadas por um anjo (mensageiros celestiais, aliás, aparecem o tempo todo nesse apócrifo).

No Evangelho de pseudo-Mateus, o menino Jesus usa seus poderes divinos de forma bem mais benigna, em especial para agradar Maria e José. Numa cena que se tornaria famosa durante a idade Média, a sagrada Família vai descansar à sombra de uma palmeira, e Maria fica com vontade de comer os frutos da árvore. “Então a criancinha, sentada no colo de sua mãe, a virgem, gritou para a palmeira e disse: ‘inclina-te, árvore, e sacia minha mãe com teu fruto’. Imediatamente, ao chamado de Jesus, a palmeira inclinou-se aos pés de Maria.” Como se vê, segundo esse apócrifo, a capacidade de falar fluentemente ainda bebê era outro dos poderes do menino Jesus.

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LEIA MAIS sobre os evangelhos apócrifos nesta reedição da Série Grandes Mistérios. Já nas bancas. 

 

 

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