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A origem do mundo segundo a mitologia grega

O mundo já nasceu marcado pela confusão, pela brutalidade e pelo incesto. Mas as divindades primordiais também geraram a vida e a beleza.

Por José Francisco Botelho
Atualizado em 13 mar 2020, 16h50 - Publicado em 22 mar 2019, 16h05

No princípio de todos os mitos, houve um tempo em que nada existia no Universo além do Caos – a mais antiga, a mais inexplicável, a mais absurda das divindades. Nenhum poeta e nenhum filósofo grego imaginava o que teria existido antes dele: era o primeiro dos deuses, a sombra de loucura e confusão que está nas profundezas de tudo o que existe.

O Caos ocupava todo o espaço do Universo. Nele, estavam misturadas as sementes de todas as coisas futuras: mas não havia ordem alguma, apenas um turbilhão sem sentido e sem fim. No poema As Metamorfoses, escrito no século 1 a.C., o poeta romano Ovídio descreve assim a terrível divindade que deu origem a tudo: “Antes que a terra, o mar e o céu tomassem forma, a natureza tinha apenas uma única face, chamada Caos: uma massa crua e desestruturada, um conglomerado de matéria composta por elementos incompatíveis… Nenhum elemento estava em sua forma correta, e tudo estava em conflito dentro de um mesmo corpo: o frio com o quente, o seco com o molhado, o pesado com o leve”.

O Sol não iluminava o dia, e a Lua não brilhava à noite. Não havia chão para firmar os pés, nem mar para se nadar – todos os elementos estavam misturados num caldo primitivo. E as coisas, embora sempre em convulsão, não saíam do lugar: pois não havia sequer direita e esquerda, em cima ou embaixo, Norte ou Sul, dentro ou fora. O Caos era tudo e, ao mesmo tempo, nada.

Mas de repente, e sem qualquer explicação, brotou do Caos o primeiro sinal de um futuro menos caótico: uma deusa. Era a Terra, que os gregos chamavam de Gaia, “a de seios fartos”. Às vezes, Gaia era descrita como uma deusa com forma humana. Às vezes, ela se confundia ao próprio planeta – como outros povos antigos, os gregos acreditavam que a Terra flutuava suspensa no centro do Universo.

Seja como for, Gaia tinha uma forma fixa, estável, ao contrário do Caos. Sobre o imenso corpo fértil de Gaia, os elementos antes em confusão começaram a se organizar, ocupando cada um seu lugar correto. Fogo, terra, água e ar destilaram-se uns dos outros. Os elementos libertavam-se do confuso abraço mútuo. E as curvas generosas de Gaia iam dando origem a colinas suaves, vales profundos, montes e montanhas.

Tudo isso ocorreu de forma misteriosa, sem a intervenção direta de um ser bondoso e ordeiro. Os mitos gregos não explicam como a Terra surgiu das trevas e da confusão. “Ao contrário da tradição hebraica e cristã, não existia um Criador na mitologia grega”, explica o historiador Anderson Zalewsky Vargas, especialista em Antiguidade clássica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “O Caos é uma divindade negativa – mas, dele, nascem todas as coisas positivas. Essa é a ambiguidade do pensamento grego antigo: não existe maniqueísmo na concepção do mundo. Coisas boas podem vir de coisas ruins. E vice-versa”.

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Das profundezas do Caos, surgiram outros seres grandiosos, enigmáticos e tão antigos que a mente humana mal consegue compreendê-los. Um deles foi Eros (Amor, entre os romanos), o princípio da atração universal: graças a ele, elementos diferentes se uniam para gerar novos seres. Era uma divindade irresistível. Não era, ainda, o amor entre humanos, mas a força motriz que faz o próprio Universo seguir existindo.

Mas junto a Eros também surgiu Tártaro. Como Gaia, era tanto uma divindade quanto um lugar: um abismo obscuro, nevoento e infinitamente profundo. Na organização do Universo, Tártaro se fixou abaixo de Gaia. Dois mundos contíguos, mas distantes: se um buraco fosse cavado da superfície da Terra até o Tártaro, uma bigorna levaria vários dias para chegar lá em queda livre. No Tártaro, subsistia a confusão e as sombras do antigo Caos. Era um lugar horrendo, a mais profunda prisão onde os deuses jogavam seus inimigos. Do Caos, também nasceram outras duas divindades primordiais: Nyx, a Noite, e Érebo, a Escuridão.

Sob a influência de Eros, Gaia sentiu a pontada do desejo: queria que suas férteis curvas fossem cobertas pelo corpo vigoroso de um companheiro. Por isso, Gaia gerou e gestou – sozinha – dois filhos que seriam também seus amantes. Primeiro ela criou o Céu Estrelado, que os gregos e romanos chamavam de Urano. Em seguida, gerou o imenso e rumoroso Ponto – o Mar Salgado. Agora, o mundo da mitologia grega estava estruturado: no alto, o Céu; no meio, a fértil Gaia, com montanhas e planícies, banhada pelas ondas do mar; e, lá nas profundezas, o Tártaro sombrio. E assim o Caos ia se transformando em Cosmos – palavra que em grego significa “ordem”.

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O reinado de Urano

O Mar e a Terra se amaram apenas uma vez. Da união, surgiu uma vasta descendência de deuses e criaturas primordiais que viveriam nas profundezas do oceano. O primeiro filho de Ponto e Gaia foi Nereu, antiga divindade do mar Egeu, que os gregos chamavam de Velho do Mar. Ele tinha o poder de assumir a forma de todos os seres marinhos. Depois, vieram Fórcis e Ceto, encarnações dos perigos do mar, e ancestrais das criaturas gigantescas das profundezas aquáticas, como as baleias.

Mas o Céu Estrelado era mais faminto de amor. Enlouquecido pelo poder de Eros, Urano deitou-se sobre as curvas deliciosas de Gaia, numa febre sexual insaciável. E começou a fecundá-la sem descanso. Não queria ser apenas o amante de Gaia: queria dominá-la totalmente. Gemendo sob as arremetidas do Céu desvairado, Gaia sentiu o ventre inchar e, em seguida, deu à luz seis filhos e seis filhas, chamados de titãs e titânides: Oceano, Coios, Crios, Hipérion, Jápeto, Teia, Reia, Têmis, Febe, Tétis, Mnemósine e, por fim, Cronos, deus do Tempo, conhecido como Saturno entre os romanos. Poetas gregos o chamaram de “o mais terrível filho da Terra”. Desde o momento em que nasceu, Cronos sentiu um ódio inexplicável pelo pai. E ambos, de fato, estavam destinados desde sempre a se enfrentar.

Para Gaia, o que havia começado como prazer aos poucos se transformava em tortura. Loucamente amoroso, Urano prendia a Terra sob seu peso e mal a deixava repousar. E novos filhos eram gerados – rebentos cada vez mais monstruosos e colossais. Os titãs e as titânides eram seres grandiosos, às vezes violentos e terríveis, mas belos e com forma humana (embora naquela época ainda não existissem mortais para embasar a comparação). Depois deles, contudo, Gaia deu à luz os três ciclopes: Brontes, Estéropes e Arges, gigantes de mãos habilidosas. Com um único olho bem no meio da testa, eram talentosos artesãos: mais tarde, fabricariam muitas das armas usadas pelos deuses em suas disputas e peripécias. Em seguida, vieram mais três filhos descomunais: Coto, Briareu e Giges, os hecatônquiros, gigantes com cem braços e 50 cabeças.

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Urano não tinha afeto algum pelos filhos. Na verdade, detestava- os. Impiedoso, ele os condenava ao aprisionamento perpétuo assim que nasciam. “A todos os filhos que teve com a Terra, o Céu os odiava, desde o começo; nem bem vinham ao mundo, ele os encarcerava em uma cova na Terra, não permitindo que saíssem de lá, nem que vissem a luz do dia. E o Céu se alegrava com sua maligna obra”, escreveu o poeta grego Hesíodo na obra Teogonia, do século 8 a.C. Depois de tanta gravidez, Gaia sofria, atulhada com os 18 filhos presos em seu interior.

Lá em cima, Urano sorria ao ouvir os gemidos da prole encarcerada. Gaia resolveu pôr um fim ao domínio brutal de seu marido: arrancou, de seu próprio corpo, um veio de metal cinzento. Com ele, forjou uma foice: a primeira arma a ser fabricada. Em seguida, estendeu-a aos filhos prisioneiros. E incios a atacar o próprio pai.

A castração de Urano

Com a foice forjada por Gaia, Cronos, deus do tempo, cometeu o primeiro crime familiar: atacou e castrou seu próprio pai, o despótico Urano, deus do Céu Estrelado. (Mike Azevedo/Superinteressante)

Todos se encolheram de terror, menos Cronos. O terrível filho da Terra apanhou a foice, escapou da caverna subterrânea e ficou de tocaia, à espera de Urano. O Céu, que estivera descansando de seu amor furioso, veio descendo pelas encostas das montanhas, para mais uma vez se deitar sobre Gaia. Nisso, Cronos deu um salto e atacou. Os deuses são imortais, sim (com uma exceção: Pã, o deus que andava pelos bosques, tocava flauta e morreu em circunstâncias desconhecidas). Mas isso não significa que não possam ser feridos. Com a mão esquerda, Cronos agarrou a detestada genitália paterna. Com a direita, brandiu a foice. Pênis e testículos foram decepados.

Urano soltou um urro que ecoou por todo o Universo. Castrado, ele fugiu para as alturas, muito além do cume das montanhas, e nunca mais voltou a se deitar sobre sua amada Terra. No máximo, às vezes, envia rajadas de chuva para acariciá-la, lembrando-se talvez dos tempos em que eram marido e mulher. O reinado de Urano havia acabado e uma nova era começava. Mas, enquanto fugia, ele lançou contra Cronos e todos os titãs uma maldição terrível: “Um dia, todos vocês serão punidos por erguerem as mãos contra seu pai!”

Mesmo após a castração, a semente de Urano fecundou Gaia por uma última vez. Jorros de sangue saltaram da ferida no Céu e salpicaram a superfície da Terra. Das fumegantes poças vermelhas se levantaram, primeiro, três figuras de cabelos desgrenhados, cobertas por mantos escuros, com asas negras; serpentes sibilantes se enroscavam em seus cabelos e braços. Eram as Erínias, as pavorosas deusas da vingança. Sua função era punir todos os que quebrassem a ordem natural das coisas – perseguiam quem desrespeitasse juramentos e também quem cometesse crimes contra familiares.

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Embora elas próprias tivessem nascido a partir de um crime desse tipo, elas puniam com especial crueldade os filhos que atacassem os pais. Batendo suas asas negras e gritando de forma horrenda, levavam o criminoso à loucura e à desgraça. Além das implacáveis Erínias, o sangue de Urano também gerou os gigantes, seres descomunais e monstruosos, encarnações da violência bruta.

Como se vê, o mundo da mitologia grega nasceu em um festival de trevas, crimes, fúrias e paixões. “O temperamento irascível é uma característica forte dos deuses antigos. Eram divindades terríveis, sempre prontas a uma violência extraordinária”, resume o historiador Francisco Marshall, especialista em cultura grega antiga, também da UFRGS. Mas em meio à turbulência que cercou a queda de Urano, houve um momento de doçura transcendente.

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O pênis decepado, ao cair do céu, mergulhou no mar. Ao seu redor, espalhou-se uma espuma branca e suave, formada pelo esperma de Urano. E daquela espuma, pouco a pouco, surgiu a mais bela, a mais irresistível, a mais doce e também uma das mais poderosas divindades: Afrodite, deusa da atração física e do erotismo. Se Eros comandava a união dos elementos do Universo, Afrodite governaria a ligação dos corpos aqui na Terra. No futuro, ao longo de séculos, ela teria muito trabalho a fazer entre deuses e mortais.

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