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A saga do sultão Suleiman, o Magnífico

Ele estendeu as fronteiras do Império Otomano desde a Hungria até o litoral da Índia. Criou leis, estimulou as artes, mas também foi cruel no jogo do poder

Por Pedro de Souza
Atualizado em 28 set 2018, 12h15 - Publicado em 31 Maio 1988, 22h00

Matéria publicada originalmente na SUPER de junho de 1988. O texto foi preservado em sua forma original.

No domingo, 30 de setembro de 1520, Suleiman foi entronizado sultão do Império Otomano, na capital, Constantinopla, hoje Istambul. Quarenta e seis anos ele ficaria no poder: sob seu comando os turcos otomanos viveriam um período inigualável da sua história. Conduzidos por Suleiman — o Magnífico, para os ocidentais, e Kanuni, o Legislador, para seus súditos —, eles conquistaram Budapeste, capital da atual Hungria, e chegaram às portas de Viena no que hoje é a Áustria. De Argel, na África do Norte, a Bahrein no golfo Pérsico, de Áden, na Arábia, a Diu, na Índia, as tropas de Suleiman expandiram as fronteiras do império e a fé em Alá.

Os otomanos, assim chamados por causa de seu primeiro sultão, Osman, eram de fato um povo guerreiro. E foi como guerreiros que irromperam na história do mundo ao aniquilar o Império Romano do Oriente. Originários dos remotos montes Altai, ao sul do lago Baikal, quase onde a Rússia e a Mongólia se encontram—portanto sem parentesco étnico com os povos árabes do Oriente Médio—, os turcos durante séculos travaram intermináveis batalhas por todo o vasto mundo das estepes russas, chegando às fronteiras da China. No século XIII aparecem às portas do decadente Império Romano do Oriente velho de 1 100 anos. Em 1453 chefiados por Mehmed II, bisavô de Suleiman, conquistam Constantinopla e transformam em mesquita a imponente catedral de Santa Sofia.

O progresso otomano pode ser medido pela própria Constantinopla: no ano da ascensão de Suleiman, com seus 400 mil habitantes, era uma das maiores metrópoles do planeta. Suleiman nasceu provavelmente a 6 de novembro de 1494 em Trebizonda, atual Trabzom, na costa nordeste da Turquia, no mar Negro. Era um importante porto por onde circulava boa parte do comércio entre o mundo mediterrâneo e o Oriente. Seu pai, que passaria à história como Selim, o Severo, então ainda herdeiro do sultanato, governava a rica província. A mãe, Hafsa, descendia do khan dos tártaros da Criméia, de onde se supõe que o sangue de Gengis Khan corria nas veias do fabuloso chefe militar que viria a ser Suleiman.

E certo, em todo caso, que ele foi educado na estrita observância da lei muçulmana, segundo a qual a primeira obrigação de um soberano é combater os infiéis. Suleiman tratou de cumprir esse mandamento sem perda de tempo. A 6 de fevereiro de 1521, com menos de cinco meses no poder, partiu em campanha rumo ao norte. Importante ponto de travessia do Danúbio, nos Bálcãs, Belgrado [hoje capital capital da Sérvia] resistiu três semanas antes de cair nas mãos dos turcos. A noticia dessa primeira proeza de Suleiman espalhou rapidamente o medo nos reinos cristãos da Europa central: a porta para a conquista da Transilvânia, de Budapeste e Viena, estava aberta.

A Europa que os otomanos avinham ameaçar era um mundo em conflito. Tanto que as profundas rivalidades dinásticas, territoriais, comerciais e religiosas entre os cristãos impediriam que o Ocidente enfrentasse unido o avanço dos soldados do islamismo. Em 1509 tinha chegado ao poder na Inglaterra Henrique VIII, que em breve romperia com o papa e criaria a religião anglicana. Em 1515, é coroado na França Francisco I, que tentará, por todos os meios, sem excluir uma aliança com o próprio Suleiman, resistir ao poder da vizinha Espanha. Em 1516 é a vez de Carlos V subir ao trono da Espanha recentemente unificada. Quatro anos depois — e 22 dias após a posse de Suleiman, – ele será eleito imperador do Sacro Império Romano-Germânico, reunindo sob sua autoridade desde os até então dispersos principados alemães e grande parte da península italiana.

Ao mesmo tempo, a Europa vivia também uma fase de rápidas transformações econômicas, fruto da expansão comercial gerada pelos descobrimentos. Em 1498 o português Vasco da Gama chega a Calicute, na Índia.

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Rapidamente os portugueses instalariam fortalezas não só na costa indiana, mas também na entrada do golfo Pérsico e no mar Vermelho, tentando controlar o comércio de especiarias que por ali transitava. Isso iria abrir uma nova frente de batalha para os otomanos, cuja hegemonia em toda essa região já era disputada pelos persas, do ramo xiita do islamismo.

A saga do sultão Suleiman, o Magnífico
O jovem Suleiman (Reprodução/Wikimedia Commons)

Como bom muçulmano sunita, Suleiman provavelmente detestava os xiitas mais que os próprios cristãos, mas o seu grande inimigo político era o espanhol Carlos V, cujo título de imperador Suleiman, não reconhecia. “Eu sou o sultão dos sultões, o soberano dos soberanos, o distribuidor das coroas aos monarcas do globo a sombra de Deus sobre a Terra…” escrevia ele numa carta a Francisco I da França. Assim, ao longo do seu reinado, Suleiman, ou a Espada do Islã. ano após ano dirigiu seus exércitos para o norte, sempre com o objetivo de atrair Carlos V à luta direta.

As suas vitórias foram muitas — embora o alvo maior não fosse alcançado: em 1526, na batalha de Mohács, derrotou os húngaros; logo depois invadiu a cidade de Buda (atual Budapeste). Em 1529, cercou Viena e por pouco não a ocupa. Três anos depois, de novo na Áustria, chega às portas de Graz. Em 1541 volta a submeter a Hungria, então formalmente anexada ao Império Otomano. Na realidade, as únicas forças que se opunham ao avanço do exército de Suleiman eram as da natureza, especialmente o frio. E as distâncias. Para vencer, por exemplo os 1500 quilômetros entre Constantinopla e Belgrado, os turcos chegavam a gastar dois meses.

De qualquer forma, o exército otomano era o instrumento militar mais poderoso que o mundo tinha conhecido até então. Artilheiros, especialistas em minas, morteiros, bombas davam às tropas de Suleiman um poder bélico incomparável. Somavam-se a isso a agilidade e a ferocidade dos janízaros, a elite combatente formada por ex-escravos, a maioria deles, por sinal, de origem cristã. Convertidos ao islamismo, o janízaros cultivavam uma lealdade cega ao sultão. O temível poder ofensivo desse exército era garantido por uma disciplina de ferro, que nunca deixou de surpreender os cristãos.

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No seu apogeu, o Império Otomano abrangia os territórios onde hoje se encontram mais de 25 países. Neles, viviam povos de etnias, costumes e religiões muito diversas. Sobre os Estados vassalos o domínio turco tomava formas brandas, limitando-se em muitos casos à cobrança de impostos, desde que a paz fosse preservada. Geralmente, mantinha intacta a organização social anterior à conquista. Quando a modificava, por vezes trazia até certas vantagens para a população. Sob os turcos, os camponeses eram homens livres, ao contrário do que acontecia na Europa Oriental cristã onde subsistiam a servidão e as arbitrariedades dos senhores feudais.

Os cristãos ortodoxos, aliás muita numerosos no império, tinham completa liberdade religiosa—desde que não desrespeitassem o islamismo. E os judeus, mais que tolerados, foram até encorajados a se instalar no império; sua presença era considerada extremamente benéfica para a economia otomana.

Se esse mosaico de povos se manteve unido ao longo dos séculos, apesar das periódicas rebeliões, aliás implacavelmente castigadas, isso se devia certamente a uma organização econômica, social e jurídica extremamente complexa. Um ditado turco exprime essa idéia com clareza: `Não há Estado sem exército, não há exército sem dinheiro, não há dinheiro sem bons súditos, não há bons súditos sem justiça—e sem justiça não há Estado”.

A mais perfeita expressão da civilização turca forjada na era Suleiman foi sem dúvida a justiça—mas na política as arbitrariedades eram muitas. Suleiman, que detinha o poder de vida e morte sobre seus súditos, era duro e cruel quando seu mando pessoal estava em causa ou quando se deixava envolver pelas intrigas da corte. Por volta de 1530, ele recebeu de presente para seu harém de trezentas mulheres uma jovem chamada Roxelana, de origem rutena, povo dos confins do império, entre a Hungria e a Moldávia. Como numa lenda das mil e uma noites, ela encantou o sultão, apaixonado pelos seus “olhos de antílope”. Em breve Roxelana se viu na condição de favorita.

Sem perder tempo, afastou de Suleiman sua primeira esposa e instalou-se no próprio Palácio Topkapi—uma verdadeira cidade dentro de Constantinopla, com seus 3 mil residentes, a começar do sultão, e onde funcionava o Divan, órgão central do poder (de onde vem a palavra divã). Transformado em museu, o Topkapi é atualmente uma das maiores atrações de Istambul.

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A influência política de Roxelana custaria a vida ao grão-vizir Ibrahim, uma espécie de vice-sultão. De origem grega e extremamente humilde—ao que tudo indica era um escravo capturado na infância—, subiu todos os degraus do poder, graças a seus méritos pessoais e à intima amizade que o ligava desde a juventude ao sultão.

Ibrahim apareceu morto na cama, na manhã de 15 de março de 1556, sem que se conheçam as razões que teriam levado Suleiman a mandar assassiná-lo. Mas a mão de Roxelana, a cujo poder ele fazia sombra, não deve ter andado longe das pontas da corda de seda que o estrangulou. Ela voltaria a agir mais adiante, com conseqüências não menos terríveis. No começo da década de 1550, quatro dos oito filhos de Suleiman ainda viviam: Mustafa, da primeira esposa; e Selim, Bayazid e Cihangir, de Roxelana. Suleiman tinha perto de 60 anos, para a época uma idade avançada— era, portanto, necessário resolver logo o problema da sucessão.

A saga do sultão Suleiman, o Magnífico
Ilustração otomana mostra o sultão ordenando a execução de rebeldes de Belgrado. A pena: esmagamento por elefantes. (Reprodução/Wikimedia Commons)

O direito turco, ao contrário do que prevalecia nas monarquias ocidentais, não assegurava a primazia absoluta do primogênito. Por isso, as sucessões eram extremamente tumultuadas. Para evitar a dispersão do poder, o sultão Mehmed II, bisavô de Suleiman, havia legitimado o assassínio dos irmãos entre os herdeiros do sultões. Roxelana sabia que, se o primogênito Mustafa tomasse o poder após a morte do pai, os filhos dela seriam assassinados e ela mesma, no melhor dos casos, exilada. Então a brutal máquina sucessória entrou em funcionamento.

Em 1552, o próprio Suleiman manda assassinar Mustafa e o filho dele, Murad. Pouco depois morreria Cihangir, ao que parece de morte natural. Em 1558, morre Roxelana; seus dois filhos ainda vivos se envolvem numa luta sem perdão. Três anos depois, Bayazid e quatro dos seus cinco filhos são estrangulados por ordem de Suleiman. O quinto, de três anos, sucumbirá pouco depois nas mãos de um eunuco. Selim seria o sucessor de Suleiman com o nome de Selim II. Como tão primitiva violência podia coexistir com o requinte e o luxo da estranha civilização otomana? Durante o sultanato de Suleiman, de fato, a arte e a cultura atingiram ali o auge.

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Os turcos, povo de origem nômade, nunca haviam desenvolvido a arquitetura civil. Mas nas cidades do império ergueram magníficas mesquitas, muitas delas assinadas por um grande arquiteto protegido de Suleiman, Sinan. As mais notáveis são sem dúvida a de Suieymaniye. em Constantinopla, e a de Selimiye, em Edirna, também na Turquia. A época de Suleiman é também a do apogeu de uma arte maior entre os turcos: a cerâmica. Os objetos de uso cotidiano e os “azulejos” de revestimento, utilizando predominantemente motivos florais, atingem uma perfeição e uma delicadeza de traço e colorido incomparáveis. Enfim, calígrafos, ourives, tapeceiros, miniaturistas, pintores e poetas fizeram do longo reinado de Suleiman a idade de ouro da civilização otomano.

No dia 1 de maio de 1566, Suleiman sai de Constantinopla à frente do exército, na sua décima terceira incursão rumo ao norte. Em meados de agosto, é alcançado um dos objetivos da campanha, a destruição da cidade húngara de Szigetvár, onde um conde havia assassinado um dos governadores de Suleiman. Então, durante 43 dias, só alguns próximos do sultão são autorizados a penetrar na sua tenda. Oficialmente, Suleiman estava doente. Depois, instalado numa liteira fechada, é conduzido de volta a Constantinopla, via Belgrado, aonde acorreria Selim. Na realidade era um corpo embalsamado que seguia viagem. Suleiman, o Magnifico, morrera na noite de 5 para 6 de setembro, dois meses antes de completar 72 anos. O império lhe sobreviveria por mais três séculos.

Pequeno grande homem

Assim que se tornou sultão, Suleiman mandou libertar 1500 pessoas encarceradas por ordem do pai. O povo comentou: “Uma ovelha mansa está no lugar do leão feroz”. Num dos muitos poemas que escreveu em persa com esmerada caligrafia, ele se definiu: “Sou o sultão do amor”. Os poemas eram assinados Muhibi, amigo gentil. Ao conquistar a fortaleza cristã de Rodes, autorizou seus defensores a partir, sem lhes fazer mal. Suleiman vinha de Salomão, o sábio rei dos hebreus—e os otomanos diziam que ele fazia jus ao nome. Era um homem pequeno e magro —o oposto do sultão de caricatura —, mas a fragilidade era enganadora: o rosto exprimia um rigor que nunca o abandonou, provavelmente herança do temperamento da mãe e do convívio com o pai.

Foi educado para ser muçulmano e exercer o poder. Sultão, orava cinco vezes por dia na mesquita particular do palácio— menos às sextas-feiras, quando, cercado de pompa, ia rezar na grande mesquita de Constantinopla, a antiga catedral de Santa Sofia. Mas a tolerância de que fez prova diante de outras religiões e o gosto pelas discussões teológicas levam a crer que não era um fanático. Ainda jovem aprendeu tudo que a tradição recomendava: ourivesaria e História, religião e esgrima, governo e equitação, ciência e astrologia, poesia e arco e flecha. Falava fluentemente, além do turco, persa, árabe—e chegava a conversar com dignitários das terras conquistadas nos Bálcãs nos dialetos deles.

Culto—sem dúvida mais culto do que os reis cristãos do Ocidente —e sensível à beleza das artes, Suleiman tinha, porém, uma personalidade inescrutável, que não se dava a conhecer. Fazia questão de produzir relatos impessoais das campanhas que comandava, cavalgando sua montaria negra selada em ouro: seus diários de guerra eram escritos sempre na terceira pessoa. O luxo de que fazia rodear os desfiles militares abismava os cristãos: vestido de cetim branco com botões que eram na realidade grandes pérolas, ele encabeçava as tropas, trazendo no turbante uma rosa de ouro e um enorme rubi. Da orelha direita pendia uma pérola em forma de pêra.

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Não menos requintados eram os rituais no Palácio Topkapi, a residência oficial do sultão. O cerimonial das refeições, por exemplo, era extravagante: das portas das cozinhas ao salão, os pratos passavam de mão em mão por uma cadeia de duzentos servidores até chegar ao provador oficial que experimentava qualquer iguaria antes do sultão. A dieta de Suleiman era simples, porém: frutas, saladas, cereais e aves, sobretudo pombos, tudo regado a água perfumada. O vinho, proibido pela religião, jamais era consumido em público. No fim da vida, Suleiman suprimiu-o completamente, da mesma forma como mandou trocar o serviço de porcelana chinesa por pratos comuns de cerâmica.

 

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