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A verdadeira profissão mais velha do mundo

Espionar os outros é algo muito mais antigo do que você pensa. A origem da espionagem se confunde com o próprio início da história da civilização.

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Atualizado em 31 out 2016, 18h25 - Publicado em 31 mar 2007, 22h00

Texto Tiago Cordeiro

A espionagem é tão antiga quanto a civilização. A partir do momento em que o ser humano se estabeleceu em um lugar fixo, ele logo percebeu que informação é poder e que alguns dados cruciais só podem ser conseguidos por via indireta. Espionagem é isso, a arte de obter informações sobre uma pessoa, um grupo ou uma empresa – geralmente sem pedir autorização e de preferência sem que a pessoa investigada sequer perceba o que aconteceu. “O resultado do trabalho de um bom agente pode ser um ataque militar ou mercadológico mais eficiente, ou então a melhor defesa”, afirma Rose Mary Sheldon, historiadora do Instituto Militar da Virginia, em um artigo sobre a espionagem na Roma antiga.

Desde que a prática surgiu, há pelo menos uns 4 000 anos, o campo de ação primário de um espião é militar. É em manuais e relatos de guerra que surgem as primeiras descrições dessa profissão. A Bíblia conta que, na luta para conquistar a Terra Prometida, o exército hebreu usou homens infiltrados entre os inimigos. A Ilíada, de Homero, menciona o uso de agentes entre os gregos e os troianos – isso por volta do ano 1300 a.C. No Oriente, estrategistas militares da Índia e da China, como Chanakya e Sun Tzu, dão muita importância aos espiões, e já no ano 2000 a.C. os faraós egípcios pagavam altos salários a seus agentes.

Paranóia investigativa

No Império Romano, a espionagem e a contra-espionagem faziam parte das atividades não só do governo mas de cada membro da elite. Desenvolveu-se então outra função para a atividade: a investigação contra as próprias pessoas. Senadores monitoravam os passos de outros senadores, mas também de seus empregados e das próprias esposas. Sistemas rústicos de escuta eram colocados nas cortinas dos quartos dos palácios; o arquiteto Livius Drusus fez sucesso oferecendo casas à prova de espionagem. O grau de paranóia chegou a tal ponto que, perto do fim do império, os romanos eram melhores em investigar o vizinho do que em saber o que estava acontecendo nas províncias dominadas.

A história dos romanos ensina que nem toda informação é fundamental. “É preciso saber interpretar os dados cruciais do inimigo – quem é, onde mora, como se movimenta, quais são suas capacidades. O resto tem que ser descartado para não confundir”, continua a historiadora Rose Mary Sheldon. “Outro componente crucial de um bom trabalho é o fator tempo. Boas fontes, dados precisos e ótima capacidade de interpretação e comunicação não são nada se, depois de tudo isso, a pessoa interessada ficar sabendo de tudo isso muito tarde.” Veja o caso de Júlio César. Sua rede de inteligência sabia que estava em curso um complô para assassiná-lo. Conhecia até quem iria traí-lo. Só que ele morreu dentro do Senado, assassinado por Brutus, sem ter tido acesso a nenhuma dessas informações. A mesma rede que havia garantido a vitória de César contra o general Pompeu, anos antes, desta vez cometeu um erro literalmente fatal.

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Agentes da fé

Durante a perseguição romana aos cristãos, os dois lados mantinham agentes infiltrados. São Ciprião quase foi preso por causa de um falso fiel, mas a contra-inteligência cristã descobriu a tempo e evitou a ação. Nos séculos seguintes, a espionagem foi para dentro das estruturas da Igreja. Pierre Cauchon (1371-1442), bispo de Beauvais, era um forte defensor dos interesses britânicos dentro da França, nos anos finais da Guerra dos 100 Anos. Além de fornecer informações ao inimigo, o bispo ainda se aproximou de Joana D’Arc. Alegava ser um admirador, mas, assim que conseguiu levantar os elementos necessários para fazer uma acusação contra ela, entregou-a à Inquisição no ano 1430. Poucos anos depois, o músico e compositor alemão Pierre Alamire (1470-1536) se aproveitou de seu trânsito entre as principais cortes da Europa para se tornar um espião terceirizado, que trabalhava para quem pagasse mais. Seu patrão mais duradouro foi o rei Henrique 8o, da Inglaterra. A relação da Igreja com a espionagem se mantém até hoje. O Vaticano continua mantendo espiões próprios e abrigando os de vários países. Durante a 1a Guerra Mundial, o assistente pessoal do papa Bento 15 era um agente secreto alemão.

No final do século 18, com o começo das guerras de independência das colônias espanholas da América do Sul, nosso continente passou a favorecer o surgimento de espiões. Por exemplo: a colombiana Policarpa Salavarrieta (1795-1817), conhecida como La Pola, trabalhou pelas forças revolucionárias que queriam a independência de seu país. Quando a Espanha iniciou uma guerra de reconquista do território, ela foi presa pelos europeus e executada em Bogotá. Hoje, é uma heroína nacional.

Técnicas modernas

Nos últimos 200 anos, a espionagem acompanhou a evolução da tecnologia e avançou muito na capacidade de enviar e decodificar mensagens cifradas. Bem antes de tudo isso, um britânico pioneiro antecipou essas duas tendências. Foi Francis Walsingham, chefe do serviço secreto da rainha Elizabeth 1a (leia mais no quadro abaixo). Séculos depois, durante a Guerra Civil Americana (1861-1865), essas estratégias de cifragem permitiram que o capitão Nathan Hale e o general Benedict Arnold atuassem como agentes duplos sem se comprometer.

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A necessidade de investir em tecnologia ficou muito mais forte durante a 2a Guerra Mundial e também depois, pela capacidade com que os espiões passaram a operar. Por exemplo, o alemão Erich Gimpel, espião que agiu em território americano, ganhou o respeito até dos homens que o interrogaram. Ele resistiu com tanta tenacidade à tortura que, quando contou alguma coisa, os americanos não acreditaram em suas palavras, porque acharam que eram informações que ele havia revelado para confundir. Nas 4 décadas de Guerra Fria, a espionagem se tornou questão de sobrevivência. Entre os agentes mais famosos dessa época estão o soviético Victor Kravchenko, que se tornou espião a mando da Europa Ocidental, e o inglês Donald D. Maclean, que virou agente da União Soviética.

Nas últimas décadas, o perfil do agente ideal mudou muito. A ordem é a discrição, e não o estilo espalhafatoso de personalidades do passado, como Margaretha Geertruida Zelle, a Mata Hari. Dançarina e garota de programa holandesa durante a 1a Guerra, ela foi executada sob a acusação de ser uma agente dupla entre a França e a Alemanha. Até que sua identidade fosse descoberta, ela circulou pelas camas de vários dos generais mais importantes dos dois lados do conflito (saiba mais sobre ela na página 59). Nada mais distante do comportamento discreto do russo Alexander Litvinenko. Depois de trabalhar para a KGB durante 11 anos, ele fugiu para a Inglaterra, onde denunciou um complô para tentar matar o empresário Boris Berezovsky, um dos primeiros bilionários da recente história capitalista do país. Viveu escondido, mas, em novembro do ano passado, Litvinenko morreu envenenado com uma dose letal de polônio.

Na indústria

Se a espionagem é tão antiga quanto a civilização, ela também surgiu junto com as primeiras empresas. No século 13, a busca pelo segredo da porcelana chinesa movimentou fortunas e provocou assassinatos. Para aumentar o suspense e o valor de seus produtos, os produtores alimentavam lendas a respeito da origem da porcelana e forneciam o produto a preços altíssimos. O segredo só acabou no século 18, graças ao padre d’Entrecolles, que acabou com o mistério – e com o monopólio – enquanto era missionário na China. Ele observou o centro real de manufatura e relatou o que viu em cartas enviadas à Europa. A borracha brasileira também foi vítima de um viajante. Por volta de 1850, no auge do sucesso do produto, quando o industrial americano Charles Goodyear inventou a borracha vulcanizada, um aventureiro inglês conseguiu levar do Brasil sementes de seringueira, que até então era exclusividade de alguns poucos países. Henry Wickham conseguiu produzir borracha em Londres e se tornou um grande fornecedor de matéria-prima para as colônias britânicas. Atualmente, a espionagem continua sendo parte importante do mercado. Grandes indústrias de automóveis, alimentos, computadores e softwares têm os próprios serviços de inteligência, geralmente ligados ao departamento de marketing.

Arapongas

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No Brasil, o serviço de inteligência ligado ao governo começou a existir em 1927. De acordo com o jornalista Lucas Figueiredo, autor de Ministério do Silêncio, o presidente Washington Luís começou com a prática quando criou o Conselho de Defesa Nacional. O órgão não foi capaz de perceber que uma revolução iria derrubar o presidente, mas mesmo assim continuou existindo, sem muito poder, no governo de Getúlio Vargas. Em 1946, tornou-se o Serviço Federal de Informações e Contra-Informação (Sfici) e ganhou um novo objetivo: identificar e perseguir comunistas. O órgão ganhou dinheiro e estrutura durante o governo de Juscelino Kubitschek, que chegou a investigar os funcionários que trabalhavam na construção de Brasília.

Por estranho que pareça, foi no governo civil de Jânio Quadros que o serviço de inteligência começou a ganhar a estrutura que teria durante a ditadura militar. Em 1961, o coronel Golbery do Couto e Silva começou a trabalhar no Sfici. Foi uma revolução. Golbery reorganizou o órgão e deu a ele uma nova dinâmica. Acabou saindo 7 meses depois, no começo do governo seguinte, o de João Goulart, mas voltou com tudo em 1964, quando foi criado o famigerado Serviço Nacional de Informações (SNI). O órgão foi extinto em 1990, mas o Brasil continua tendo seus espiões. Hoje eles trabalham a serviço da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Durante décadas, nossas escolas de espionagem tiveram como patrono um grego: Argus, o semideus espião. Sua lenda é significativa da importância do trabalho dos agentes mas também dos riscos que eles correm. Argus vivia na península do Peloponeso e dali criou uma rede de espiões que alcançou toda a Grécia. O deus Júpiter ficou interessado e fez dele o responsável por investigar o Olimpo. Para isso, deu a Argus 100 olhos. Só metade deles se fechava quando ele dormia. Mas Argus foi enganado por Plutão, que conseguiu fazer com que as trevas dominassem o Universo. E o herói que inspirou a palavra argúcia acabou assassinado, assim como muitos outros espiões ao longo de toda essa história.

Estratégia milenar

No clássico A Arte da Guerra, o general chinês Sun Tzu (544 496 a.C.) ensina a formar bons espiões. Para Tzu, é irracional atacar qualquer cidade sem primeiro levantar todas as informações possíveis sobre seus moradores, líderes e exércitos. Ele explica que existem 5 classes de espiões. Os nativos são contratados entre os moradores do local. O interno é um funcionário inimigo. O agente duplo é um espião adversário. Os liquidáveis são os responsáveis por transmitir informações falsas e o flutuante faz a comunicação entre todos. Sabiamente, Sun Tzu avisa: o espião tem que ser muito bem tratado e seu salário tem que ser dos mais altos do exército. Ou então ele vai querer mudar de lado.

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Espião mestre

De todos os espiões da história, poucos foram mais influentes do que o britânico Francis Walsingham (1532-1590). Admirador de Maquiavel, ele foi o chefe do serviço secreto da rainha Elizabeth 1a, e foi sob sua direção que o departamento criou algumas das técnicas modernas de espionagem. Uma de suas principais inovações foi criar e coordenar uma rede complexa de espiões, que incluía pessoas de todas as idades, países e estratos sociais. Walsingham também foi pioneiro no tratamento das mensagens cifradas, que ele sabia interceptar, interpretar e adulterar com precisão. Seus homens conseguiam abrir o lacre derretido que selava a carta, sem que o destinatário percebesse depois.

Espionagem em números

80 0 0 espiões, aproximadamente, viviam em Berlim na década de 1950.

26,7 bilhões de dólares são gastos pelos americanos com espionagem a cada ano.

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27 satélites espiões circulam sobre o planeta.

Ouro de tolo

O plano parecia perfeito: os serviços secretos americano e britânico construíram um túnel de 450 metros de comprimento para chegar ao subsolo de uma estação de operação soviética em Berlim, e ali, 6 metros abaixo do chão, instalaram equipamentos de escuta. Acontece que o agente inglês George Blake trabalhava a favor dos russos e avisou seus verdadeiros chefes na hora. A KGB resolveu deixar os ocidentais usar seu túnel e passou meses mandando, de propósito, mensagens falsas através dos telefones grampeados. A Operação Gold durou poucos meses em 1956, mas a decupagem das 50 000 horas de fitas custou 5 anos de trabalho. Só em 1961 os britânicos descobriram que os russos sabiam de tudo desde o começo.

Mudando de lado

O maior líder comunista da história do Brasil, Luiz Carlos Prestes (1898-1990), educou durante 15 anos sua filha Zoia Ribeiro no exílio, em Moscou. Lá, ela aprendeu o idioma russo. No ano 2000, Zoia tentou usar esses conhecimentos para se tornar espiã da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Ela não passou porque esqueceu de entregar um dos documentos necessários para participar do concurso. Para evitar a impressão de que foi barrada porque seu pai foi um dos homens mais investigados do Brasil durante décadas, Zoia foi recebida pessoalmente pelo diretor-geral da agência. Mesmo assim, a Abin manteve a decisão de não aceitá-la como candidata por causa da falta de papelada.

Como virar um espião

Uma opção é o concurso público. É por meio dele que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) contrata seus “analistas de informação” – é assim que são chamados os espiões brasileiros. Acredite, existe muita demanda para o posto: ao assumir a direção da agência, em 2004, Mauro Marcelo Lima e Silva disse que precisaria de 2 500 novos funcionários. Mas a legislação só permite que a Abin contrate 250 agentes por ano. Para concorrer a uma vaga, é preciso ter curso superior completo e conhecimentos básicos de pelo menos uma língua estrangeira. Também é necessário ter disponibilidade para viajar e capacidade de obter dados sigilosos, além de habilidade para interagir com pessoas e resistir a situações imprevistas. O salário inicial é de aproximadamente R$ 2 400.

Fora do governo, o mercado também precisa de bons espiões, capazes de antecipar as estratégias das empresas concorrentes. Não existem cursos técnicos nem faculdades para ser um “analista de informação” privado, e a maioria dos agentes que atuam fora do governo é formada em marketing e administração. Mas qualquer pessoa, de qualquer profissão, pode ter jeito para a coisa. No Brasil, existem espiões que são, originalmente, cientistas políticos, engenheiros, advogados e economistas. Psicólogos, por exemplo, têm a vantagem de perceber com mais facilidade se o interlocutor está mentindo. Já um engenheiro com experiência na área de medicamentos seria um candidato forte a fazer contra-espionagem industrial nesse ramo do mercado.

O Museu da espionagem

Sim, existem museus dedicados à espionagem ao redor do mundo. O maior e mais famoso deles fica em Washington. Fundado por uma cadeia de rádio e televisão de Cleveland, a Malrite Company, o International Spy Museum conta com a curadoria permanente de dois ex-diretores da Agência Central de Inteligência dos EUA (a CIA) e de Oleg Danilovich Kalugin, um major aposentado da KGB, a polícia secreta do governo soviético. Foi fundado em julho de 2002, é um dos poucos da cidade que cobram ingresso (que hoje está em US$ 16) e mesmo assim é um sucesso permanente de público. São 600 peças, espalhadas por uma área de 1 900 m2.

Entre as atrações está uma Sala de Disfarces, onde a pessoa recebe uma identidade falsa e tem 3 minutos para criar uma biografia completa para ela. Também existe uma Escola de Espiões, onde fica a maior parte do acervo do museu. A entrada é decorada por uma foto de Maxwell Smart, o atrapalhado Agente 86 do seriado de TV, falando em um telefone em forma de sapato. Esse é o espírito desse ambiente: misturar a realidade dos espiões com a ficção. Estão lá as canetas que viram canivetes e as pistolas em forma de cachimbo. Não falta nem mesmo um carro Aston Martin DB5, como o usado por James Bond no filme Goldfinger. Para quem quer começar a praticar operações secretas, os monitores levam o visitante a uma trilha de obstáculos dentro de uma tubulação apertada.

Na saída, é quase impossível não entrar na lojinha do museu. Por US$ 5 você leva um kit disfarce, com barba e bigode postiços. Por US$ 45, uma caneta que serve como gravador disfarçado. E, por US$ 639, um par de óculos de visão noturna.

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